Revista Vinde, agosto de 1999: Religião, por Carlos Fernandes

Bem que o presidente Fernando Henrique Cardoso tentou remediar, mas ao declarar ter formação cartesiana com “elementos do vodu e do candomblé”, mesmo que em tom de brincadeira, sua imagem perante a comunidade evangélica brasileira ficou arranhada, justamente no momento em que seu índice de aceitação popular circula ínfimos 12%. A declaração, feita no encerramento da Cimeira _ encontro de chefes de Estado realizado no Rio, em junho _, teve ampla divulgação em todo o país e acendeu a ira santa de gente como o governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, crente de carteirinha, e que não escondeu seu descontentamento com a fala de FHC.

“Fiquei muito triste quando ouvi o presidente dizer que era ateu e gostava de vodu e candomblé. Como é que o país pode ir para a frente?”, indagou Garotinho, diante de uma platéia de 15 mil pessoas, durante um evento evangélico no estado do Rio, no mês passado. No dia seguinte ao pito, Fernando Henrique apressou-se em minimizar a própria fala. “O que fiz foi uma referência do ponto de vista cultural, no sentido de que, como brasileiro, sempre tive certa flexibilidade. Não falava de religião.” O presidente garantiu que tudo não passou de uma “má interpretação” de Garotinho.

Na verdade, esta não foi a primeira vez que FHC causou constrangimento com sua incontinência verbal. Certa vez, afirmou que, para governar o Brasil, era preciso “uma pitada de candomblé” – sem falar de tiradas célebres, como chamar aposentados de vagabundos e afirmar que a vida de rico é muito chata (ver quadro). O presidente da República até hoje é obrigado a desmentir uma declaração a ele atribuída ainda na disputa pela prefeitura de São Paulo, em 1985, quando teria dito que não acreditava em Deus. A afirmação foi apontada como um dos motivos de sua derrota naquele pleito, tido como ganho a apenas uma semana da votação.

EFEITO COLATERAL
É longa a lista de frases de efeito do presidente Fernando Henrique Cardoso que soaram mal aos ouvidos de muita gente. Veja algumas:

“Pessoas que se aposentam com menos de 50 anos são vagabundas, que se locupletam de um país de pobres e miseráveis” (Defesa desastrada da reforma da previdência que criou mal-estar no governo e várias tentativas por parte de FHC de remendar a frase. Maio de 1998)

“Não dá para transformar todo mundo em rico. Nem sei se vale a pena porque vida de rico é muito chata” (afirmação feita de palanque aos moradores da favela Parque Royal, na Ilha do Governador, que havia sido urbanizada pela prefeitura do Rio de Janeiro. Agosto de 1998)

“Além do português, as pessoas vão querer dominar duas linguagens: uma da Internet – a informática – e outra, a do inglês. É a demanda das populações mais carentes” (trecho do discurso de encerramento da Cimeira, em que, segundo analistas, FHC quis descrever um Brasil de sonho. Junho de 1999)

Derrapagem – Em entrevista exclusiva concedida a VINDE em setembro de 1998, FHC garantiu que nunca foi ateu e disse que “religião é coisa que se guarda no coração; o que vale é a prática”. Mas a verdade é que a ascensão política fez o intelectual ceder espaço para o eclético. E é aí, justamente, que ele costuma derrapar nas palavras. “Essa frase só serviu para mostrar que o presidente está completamente perdido, sem referenciais”, avalia o bispo metodista Adriel de Souza Maia, presidente da Associação Evangélica Brasileira (AEVB). Na sua opinião, além de revelar insegurança, a frase não ajudou em nada o presidente. “O fato repercutiu muito mal, e pode ser analisado como um desrespeito ao povo evangélico.”

Adriel entende que, para fazer bom trabalho, um governo não deve, necessariamente, ser conduzido por um crente. “O fundamental é que o governante tenha visão humana e trabalhe com dignidade”, pondera. O bispo alerta, no entanto, para o perigo de agradar um segmento em detrimento de outro. “Os adeptos do candomblé certamente gostaram, mas a declaração ofendeu muitos crentes.” O curioso, para Adriel, é que Fernando Henrique tenha demonstrado afinidade com o terreno religioso. “Não é próprio da sua formação.”

Seja motivada por interesses políticos ou não, a mudança ideológica de Fernando Henrique já se fez notar em suas duas campanhas vitoriosas à presidência, quando fez questão de cortejar os evangélicos, principalmente nas últimas eleições. De olho nos votos dos crentes, ele recebeu diversos pastores e marcou presença em vários cultos e eventos evangélicos, como o 2º Encontro Mundial das Assembléias de Deus, realizado em setembro de 1997, a um ano de sua reeleição. Em seu discurso, o presidente citou Deus diversas vezes, ao contrário do que normalmente faz em suas aparições públicas.

Indecisão – Até o fechamento desta edição, José Wellington Bezerra, presidente da denominação – a maior do país – ,não foi localizado por VINDE para comentar as declarações do presidente. Mas o pastor Vandir Steuernagel, da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e dirigente da Visão Mundial, deixa clara sua posição. “A declaração do presidente atesta publicamente, especialmente aos cristãos, que ele não é um cristão.” Segundo o pastor, ao declarar-se um cartesiano que integra elementos do candoblé, ele deixou claro que tem dificuldade de tomar decisões claras e incisivas.

“A fé cristã pauta-se por outra lógica, na qual Deus é Deus e as pessoas aprendem a dizer `sim’ e `não'”, continua Steuernagel. Ele entende que Fernando Henrique, do ponto de vista cristão, é motivo de intercessão, amor e missão. E deixa um recado: “Em qualquer convite a ele estendido para participar de eventos cristãos não se deve esperar outra coisa, nem induzi-lo a uma declaração diferente. Esta atitude seria hipócrita em ambas as direções.”

GLOSSÁRIO IDEOLÓGICO
Entenda o que significam os elementos combinados pelo presidente Fernando Henrique em sua frase.

Cartesianismo – Doutrina elaborada pelo pensador francês René Descartes (1596-1650) que influenciaria profundamente a filosofia e as ciências exatas nos anos seguintes. É de Descartes a célebre frase “penso, logo existo”, que encerra o fundamento que criou para distinguir o verdadeiro do falso, a chamada dúvida metódica. Só é verdadeiro o que se apresenta com clareza e distinção. Nem por isso o método cartesiano exclui, por exemplo, a idéia de Deus. Para Descartes, Deus tem atributos tão fora de nossa experiência cotidiana, como a eternidade, que só poderiam ter sido inculcados no intelecto humano pelo próprio Senhor.

Candomblé – Manifestação religiosa originada na África, introduzida no Brasil pelos nativos trazidos de lá como escravos. Na Bahia, a proibição à prática de sua religião induziu muitos africanos a simular rezas e cultos aos santos católicos para encobrir a fé nos orixás, entidades imateriais identificadas com elementos da natureza. Com o tempo, a identidade dos santos fundiu-se à dos orixás para os adeptos do candomblé. A dança, o toque de tambores e os sacrifícios de animais são marcas dos cultos, durante os quais os orixás usam o corpo de adeptos para se manifestar.

Vodu – Religião afro-americana que se desenvolveu no Haiti e tornou-se atrativo turístico naquele país. O vodu é caracterizado pelo sincretismo, e resulta de mistura entre o catolicismo dos colonizadores franceses e as crenças dos africanos levados para aquele país como escravos. Os adeptos do vodu acreditam em um deus acima dos demais. Aos deuses menores (os loas), recorre-se com mais freqüência. Há os loas protetores e os capazes de atos prejudiciais aos adeptos. Podem apresentar traços característicos de santos católicos ou de divindades africanas. Nos cultos, caracterizados por dança e música vigorosas, oferendas de alimentos e sacrifícios de animais, os loas manifestam-se por possessão. A palavra vodu é derivada de vodun, vocábulo do dialeto fon (uma das etnias africanas levadas para o Haiti) para espírito ou deus.

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