Doutor em Física confirma que culto ao Sol foi a motivação de Copérnico para propor o sistema planetário heliocêntrico

A PREMISSA METAFÍSICA DA REVOLUÇÃO COPERNICANA

(The metaphysical premise of the Copernican revolution
Recebido: outubro de 2002. Aceito: novembro de 2002.)

Contribuição ao artigo A invisibilidade dos pressupostos e das limitações da teoria copernicana nos livros didáticos de Física (Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 19, n. 1: p. 29-52, abr. 2002).

Fernando Lang da Silveira
Instituto de Física UFRGS
Porto Alegre RS

O artigo aponta, de forma clara e consistente, a omissão dos livros-texto de Física para o ensino médio em explicitar os pressupostos da teoria copernicana, bem como as críticas que o heliocentrismo sofreu. [1] As objeções ao movimento anual da Terra (translação em torno do Sol) e diário (rotação em torno do seu pró prio eixo), como bem destacam os autores, não foram resolvidas por Copérnico e tiveram que aguardar pelo desenvolvimento da Mecânica por Galileu, Newton e outros cientistas nos séculos seguintes. [2]

Os autores arrolam um conjunto de sete pressupostos astronômicos, sobre os quais o sistema copernicano foi erigido. O objetivo do presente comentário é destacar que, a esse conjunto de sete pressupostos astronômicos, adita-se uma tremenda premissa metafísica (Burtt, 1991; p. 40), certamente não cogitada em nenhum dos livros-texto. Na verdade as sete conjeturas astronômicas somente foram possíveis como consequência dessa premissa. O que levou Copérnico a tirar o centro do mundo da Terra e colocá-lo nas proximidades do Sol? Vejamos como alguns autores se pronunciam sobre esta pergunta:

“Sua ideia de colocar o Sol, em lugar da Terra, no centro do Universo, não resultou de novas observações, mas sim de uma nova interpretação de fatos bastante conhecidos há muito tempo, à luz de concepções semi-religiosas, platônicas e neoplatônicas.” (Popper, 1982; p. 214. Grifo no original.). Para os platônicos e neoplatônicos, o Sol “tem a mesma função no Universo das coisas visíveis do que a ideia do bem no universo das ideias.” (Popper, 1984; p. 214). O Sol, por conferir luz, vitalidade, crescimento e progresso à s coisas visíveis, deve ocupar o status mais elevado na ordem das coisas da natureza. “Se o Sol tinha um papel tão importante, se merecia o status de divino (…), nã o poderia girar em torno da Terra. O único local apropriado para uma estrela de tal nobreza era o centro do Universo. Por isso, a Terra devia girar em volta do Sol.” (Popper, 1984; p. 214).

“Certamente nenhuma posição inferior no espaço ou no tempo podia ser compatível com a dignidade do Sol e com sua função criativa. (…) As suas fontes (fontes de Copérnico) imediatas sã o neoplatônicas” (Kuhn, 1990; p. 155). A motivação de Copérnico para rejeitar a hipótese geocêntrica era metafísica pois “nenhuma descoberta astronômica fundamental, nenhuma espécie nova de observação astronômica, persuadia Copérnico da imperfeição da antiga astronomia ou da necessidade de uma mudança” (Kuhn, 1990; p. 157). A teoria heliocêntrica decorreu da concepção neoplatônica de Copérnico.

“É evidente, então, que a pergunta que Copérnico respondeu facilmente dessa maneira (tomando o Sol como referencial) trazia consigo uma tremenda premissa metafísica. E ela foi logo percebida (…) É legítimo tomar qualquer outro ponto de referência astronômico que não seja a Terra? (Burtt, 1991; p. 40. Grifo no original.)

Uma passagem do próprio Copérnico explicita de maneira indubitável a sua inspiração metafísica ao colocar o Sol no centro do Universo:

“No meio de todos os assentos, o Sol está no trono. Neste belíssimo templo poderíamos nó s colocar esta luminária noutra posição melhor de onde ela iluminasse tudo ao mesmo tempo? Chamaram-lhe corretamente a Lâmpada, o Mente, o Governador do Universo; Hermes Trimegisto chama-lhe o Deus Visível; a Electra de Sófocles chama-lhe O que vê tudo. Assim, o Sol senta-se como num trono real governando os seus filhos, os planetas que giram à volta dele.” (Copérnico apud Kuhn, 1990; p. 155)

A mesma fundamentação metafísica — o neoplatonismo — decidiu que, posteriormente a Copérnico, Kepler e Galileu abraçassem as ideias copernicanas. Um texto de Kepler serve de exemplo desta corrente neoplatônica:

“Em primeiro lugar, a menos que talvez um cego possa negá-lo perante ti, dentre todos os corpos do Universo, o mais notável é o Sol, cuja essência integral nada mais é que a mais pura das luzes (…), a fonte da visã , pintor de todas as cores (…), denominado rei dos planetas (…), coração do mundo (…), olho do mundo; por sua beleza, é o único que podemos considerar merecedor do Deus Altíssimo (…) Pois se os germânicos elegem como César o que tem o poder máximo em todo o império, quem hesitaria em conferir votos dos movimentos celestes àquele que já vem administrando todos os demais movimentos e mudanças por graça da luz, que é a sua posse exclusiva? (…) Nenhuma parte do mundo e nenhuma estrela é merecedora de tão grande honra; então, pelas razões mais elevadas, voltamos ao Sol, o único que parece, em virtude de sua dignidade e poder, adequado a essa missão motora e digno de tornar-se a morada do próprio Deus.” (Kepler apud Burtt, 1991; p. 45-46)

Diversos historiadores e epistemólogos têm mostrado que a revolução científica — na qual Copérnico foi um dos principais protagonistas no século XVI, culminada com a Mecânica Newtoniana no século XVII — somente foi possível graças a uma mudança das concepções metafísicas, de uma retomada do platonismo.

A importância das ideias metafísicas no desenvolvimento da ciência, de um modo geral (não apenas no Renascimento), levou Popper a definir um programa metafísico de pesquisa:

“Ao empregar este termo, pretendo chamar a atenção para o fato de que, em todas as fases do desenvolvimento das ciências, estamos sob influência de ideias metafísicas, isto é, ideias não testáveis, ideias que não só determinam os problemas de pesquisa que vamos escolher, como também os tipos de resposta que vamos considerar corretos, satisfatórios ou aceitáveis e como melhoramentos ou progressos relativamente às respostas anteriores.” (Popper, 1989; p. 169. Grifo nosso.)

Conferir visibilidade à premissa metafísica que está na gênese da revolução copernicana colabora com o intuito dos autores de “melhorar o atual tipo de abordagem do modelo heliocêntrico conferido pelos livros-texto” (Medeiros e Monteiro, 2002; p. 46), mostrando que o conhecimento científico não está isento de influências contextuais e sócio-históricas.

Cad. Brás. Ens. Fís., v. 19, n.3: p.407-410, dez. 2002.
 

Referências;

{1} Uma pesquisa em livros-texto de Física Geral para o ensino superior certamente chegaria a um resultado semelhante.

{2} A prova do movimento anual da Terra a paralaxe das estrelas fixas foi somente observada em 1837, por Bessel. A prova do movimento diário da Terra aconteceu mais tardiamente: em 1851, Foucault construiu o pêndulo que leva o seu nome, demonstrando experimentalmente que, devido à rotação da Terra, o plano de oscilação do pêndulo (no sistema da referência da Terra) se altera. Entretanto, muito antes da ocorrência de tais provas, a resistência à teoria copernicana já não mais existia. Uma explicação para tal atitude pode ser encontrada em Lakatos (1989).

Bibliografia

BURTT, E. A. As bases metafísicas da ciência moderna. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.

KUHN, T. S. A revolução copernicana. Lisboa: Ed. 70, 1990.

LAKATOS, I. Por qué superó el programa de investigación de Copérnico al de Tolomeo? In: LAKATOS, I. La metodología de los programas de investigación científica. Madrid: Alianza, 1989.

MEDEIROS, A. E.; MONTEIRO, M. A. A invisibilidade dos pressupostos e das limitações da teoria copernicana nos livros didáticos de Física. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 19, n. 1: p.29-52, abr. 2002.

POPPER, K. R. Conjecturas e refutações. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1982.

POPPER, K. R. A teoria dos quanta e cisma na Física. Lisboa: D. Quixote, 1989.

Fonte: https://periodicos.ufsc.br/index.php/fisica/article/view/6614

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