Você é o Homem...

 

Em 16 de março de 1905, o presidente Daniells, da Conferência Geral, escreveu para o pastor William White, que então estava na Califórnia, a respeito de um problema perturbador. Um ministro, recentemente enviado para a Inglaterra como evangelista e superintendente da missão, havia começado a dizer algumas coisas estranhas sobre a doutrina do santuário - idéias semelhantes àquelas que tinham posto D. M. Canright fora da igreja dezoito anos antes. Aparentemente o evangelista estava atraindo uma quantidade significativa de adeptos; igrejas na Irlanda , País de Gales, norte da Inglaterra - em quase todo lugar que o homem tinha estado - estavam agora em tumulto. Em Birmingham e outros lugares, os ministros estavam tendo "dificuldades sérias" com "alguns irmãos de influência, sobre o assunto do santuário" - Carta de A.G. Daniells a W.C. White, 116/03/1905). O pastor W. Farnsworth, tentando desesperadamente consertar o estrago, estava quase fora de si, e tinha escrito para Daniells pedindo ajuda. Nas próprias palavras de Farnsworth, citadas por Daniells em sua carta para White:

"O irmão Ballenger chegou a uma condição de mente que me parece desqualificá-lo inteiramente para pregar a mensagem. Ele tem estudado muito o assunto do santuário ultimamente, e chegou à conclusão... de que quando Ele (Cristo) ascendeu, foi imediatamente ao lugar santíssimo e que Seu ministério tem aí sido levado avante desde então. Ele toma textos tais como Hebreus 6:19 e os compara com vinte e cinco ou trinta expressões do mesmo caráter no Velho Testamento onde ele diz que em cada exemplo o termo 'dentro do véu' significa o lugar santíssimo... Ele vê claramente que sua opinião não pode ser harmonizada com os testemunhos, ou pelo menos admite francamente que é totalmente incapaz de assim fazer, e mesmo em sua própria mente... há uma diferença irreconciliável" - Idem

               

                Assim o problema foi apresentado para o presidente da Conferência Geral por Farnsworth, um homem que tinha sido batizado no final do inverno em Washington, New Hampshire, num orifício de aproximadamente 60cm perfurado através do lago de gelo, e que não tinha intenção alguma de se tornar confuso sobre alguma coisa tão fundamental como o santuário. E Daniells, tendo considerado isto e muito mais, estava escrevendo para o Pastor White, imaginando em alta voz como a denominação devia lidar com o problema. "Estarei contente de tê-lo fora da Grã-Bretanha", meditou, "mas o que podemos fazer com ele aqui é mais do que posso dizer no presente. ... Parece estranho que um homem que tem estado nesta mensagem toda sua vida se desvie em uma tal questão. O santuário é a coluna central de todo este movimento; remova isto, e tudo cai. Por acaso conheceis este irmão, e tendes algum conselho para dar?" - Idem

               

                De fato, o pastor White, bem como Ellen White, conheciam muito bem Albion Ballenger, com respeito a este assunto. Ele era um homem simpático, com um vasto e abundante bigode e um carisma que podia levar muitas pessoas com ele, e esta não era sua primeira desventura em falsificar artigos básicos da fé. Poucos anos antes, enquanto era editor assistente da revista denominacional sobre liberdade religiosa, tinha amadurecido a idéia de que a igreja devia fazer-se mais simpática, deixando de dar ênfase a doutrinas distintivas tais como o sábado. O resultado tinha sido uma visão que Ellen White recebeu quando estava em Salamanca, Nova York, e que ela finalmente revelou sob as mais impressivas circunstâncias. (Ela tentou repetidamente relatar a visão, mas toda vez desaparecia de sua memória; somente mais tarde foi capaz de recontá-la - no mesmo dia em que Ballenger fez suas observações numa reunião de comissão). Ballenger tinha dado atenção à mensagem divina naquela ocasião, confessado em lágrimas que estivera errado. Mas agora um problema completamente novo estava fermentando, e ele foi trazido da Inglaterra enquanto os irmãos imaginavam o que, exatamente, fazer com ele.

               

                Ellen White tinha pouca dúvida. Em meados de maio de 1905 ela assistiu à sessão da Conferência Geral em Takoma Park. Enquanto andava no saguão do dormitório do colégio, que servia como aposento dos hóspedes, ela eventualmente viu Ballenger, e tinha uma penetrante mensagem para transmitir. "Você é aquele homem que o Senhor apresentou diante de mim em Salamanca", ela declarou, então prosseguiu dizendo algumas coisas que somente podemos deduzir através de seu diário. "E agora novamente nosso irmão Ballenger está apresentando teorias que não podem ser fundamentadas pela palavra de Deus. ...Eu declaro em nome do Senhor que as mais perigosas heresias estão buscando encontrar entrada entre nós como um povo, e o pastor Ballenger está fazendo espólio de sua própria alma... suas teorias, as quais têm multidões de finas malhas, e precisam de tantas explicações, não são verdadeiras, e não devem ser trazidas para o rebanho de Deus... Deus proíbe seu modo de agir - fazendo com que as sagradas escrituras, ao você agrupar passagens à sua maneira, testifiquem e construam uma falsidade. Sejamos todos fiéis à verdade estabelecida do santuário" Ellen White, manuscrito 59, 1905

               

                A resposta de Ballenger foi encontrar-se com uma comissão de vinte e cinco líderes denominacionais, de onde resultou um documento que ele chamou "As Nove Teses". As crenças adventistas com relação ao santuário estavam erradas em "quase todos os pontos fundamentais", afirmou, e ele particularmente argumentou contra a aplicação do ministério do primeiro compartimento ao período após a ascensão de Cristo. ( A.F. Ballenger, "the nine Theses", p.1,4). Caso se seguisse o raciocínio de Ballenger, a profecia dos 2300 dias desmoronava, a mensagem de 1844 ai junto com ela, e o juízo investigativo repentinamente tornava-se um embaraço teológico do qual era preciso se livrar. Como A.g. Daniells colocou o assunto tão habilmente: "Tudo desmorona"; e ninguém viu isso mais claramente do que Ellen White.

               

                "Em linguagem clara e distinta, digo àqueles que assistem a esta conferência que o irmão Ballenger tem permitido a sua mente receber e crer em erros ilusórios", ela disse justamente poucos dias mais tarde. "Esta mensagem, se aceita, minaria os pilares de nossa fé". E então referiu-se propositalmente ao capítulo sete de Mateus: "Acautelai-vos dos falsos profetas que se apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores" - Ellen White, manuscrito 62, 1905

               

                "Aqueles que tentam trazer teorias que removeriam os pilares de nossa fé concernente ao santuário ou à personalidade de Deus ou de Cristo, estão agindo como homens cegos", ela continuou. "eles estão buscando trazer incertezas, e colocar o povo de Deus desgovernado, sem uma âncora...

               

                "Nosso instrutor dirigiu palavras ao pastor Ballenger: 'Estás trazendo confusão e perplexidade por tuas interpretações das escrituras. Pensas que te tem sido dada nova luz, mas tua luz se tornará em trevas para aqueles que a receberem...

               

                "Para exatamente onde estás; pois Deus não te deu esta mensagem para levares ao povo" - Idem

               

                Há aqui um perigo muito maior do que a confusão de um homem sobre o que constitui basicamente o adventismo. Albion Ballenger era uma pessoa extremamente persuasiva, um homem agradável e de boa aparência que escrevia ocasionalmente poesia e que falava com tão calmante brandura que não crer nele parecia quase repudiar a própria percepção. Para muitas pessoas tudo isto parecia transmitir uma simples pergunta: Como poderia o pastor Ballenger estar errado?

               

                Há reconhecidamente certo risco envolvido em demorar-se sobre os argumentos de um homem que a mensageira divina disse que cria em "erros ilusórios", mas talvez por um breve momento esse risco é justificado para se obter uma idéia da capacidade persuasiva que os adventistas tiveram de enfrentar em 1905. Escrevendo para a Sra. White, Ballenger insinuou que ele tinha de escolher entre crer nela ou na bíblia, e finalizou como se segue:

               

                "Quando estivermos lado a lado diante do grande tono branco; se o Mestre me perguntar por que ensinei que 'dentro do véu' era o primeiro compartimento do santuário, que responderei? Devo dizer, 'Porque a irmã White, que afirmava estar comissionada a interpretar as escrituras para mim, falou-me que esta era a verdadeira interpretação, e que se eu não a aceitasse e ensinasse eu permaneceria sob Tua condenação?'

               

                "Oh, Irmã White, quem dera esta resposta pudesse ser agradável ao Senhor. Então eu me submeteria ao seu testemunho. Então a senhora voltaria a me dizer palavras de encorajamento. Então meus irmãos, com quem tenho mantido agradável troca de idéias, não mais me evitariam como a um leproso. Então eu apareceria outra vez na grande congregação, e choraríamos, oraríamos e louvaríamos juntos, como antes" - A.F. Ballenger, Cast Out for the Cross of Christ, p 112

               

                Ballenger era capaz de usar poderosamente palavras e emoções, e entender claramente que as pessoas apoiarão instintivamente o que se porta com vítima, às vezes mesmo em face de verdades religiosas. Isto em si mesmo era surpreendente, porque a mesma tática estava sendo usada por John Harvey Kellogg, que, após arrebatar da igreja o sanatório de Battle Creek, podia ainda falar persuasivamente em se abaixar "com o rosto em terra e chorar" sobre as injustiças supostamente feitas a ele pelo pastor Daniells e Willie White. Canright tinha também representado um pouco de martírio ao deixar a fé adventista, e o uso de Ballenger da mesma técnica deveria logo ser evidente no título de seu livro 'Cast out For the Cross of Christ' (Expulso por causa da cruz de Cristo). De uma maneira interessante, os homens que deixaram a igreja por causa desse debate, geralmente seguiam o mesmo comportamento: Prometiam solenemente não causar problemas para a igreja, somente para iniciar depois um intenso ataque ao adventismo logo após abandoná-lo. Ballenger não seria diferente, e sua carta aparentemente dócil para Ellen White diz completamente o oposto quando colocada ao lado de alguma da estridente linguagem em 'the Gathering Call', um jornal no qual ele e seu irmão proclamavam material anti-adventista, de sua sede, próxima à principal nova escola médica da denominação.

               

                Mas isso poderia ser visto somente no futuro. Em 1905 os adventistas individualmente não podiam saber quão longe Albion Ballenger iria, pois ele próprio provavelmente não sabia; e nesse meio tempo havia mais do que apenas um perigo passageiro de que sua personalidade e seu dom da fala arrebatasse um número de pessoas bem intencionadas com ele. Por um lado, ele estava agindo cada vez mais como um zelote, um homem convencido de que tinha "nova luz" e que estava mais preocupado em espalhar suas opiniões do que com qualquer outra coisa, incluindo o bem estar da igreja organizada. Por outro lado, tinha acumulado uma impressiva coleção de textos escriturísticos para defender suas opiniões, e se não tivesse estudado as questões controvertidas pessoalmente, a massa de argumentos seria intimidante. "O pastor Ballenger já iludiu as mentes com sua enorme lista de textos", Ellen White anotou em seu diário mais tarde em 1905. "Estes textos são verdadeiros, mas ele os tem colocado num lugar que não lhes pertence".  Ellen White, Manuscrito 145, 1905

               

                "Temos tido de enfrentar muitos homens que têm vindo com exatamente tais interpretações", ela acrescentou, "buscando estabelecer falsas teorias, e perturbado as mentes de muitos por sua presteza em falar, e por sua grande quantidade de textos, os quais têm aplicado mal para que se ajustem a suas próprias idéias. É muito tarde na história desta terra para levantar alguma coisa nova" - Idem

               

                Se este tivesse sido o único perigo, a igreja teria muito no que pensar. Mas havia mais. Havia outro perigo, de amplitudes tão insuspeitáveis, que poderia ser visto somente através de olhos que houvessem vislumbrado o mundo invisível. E agora Ellen White descerrou a cortina para dar à igreja a surpreendente visão do invisível: Em 1905, a heresia estava sendo apresentada por mais do que homens; estava também sendo apresentada por anjos caídos.

               

                Para entender o que Ellen White estava prestes a contar à igreja, é preciso conhecer a realidade profunda e literal do mundo que ela amiúde experimentava e que fica além do domínio da vista mortal. Para ela, seres celestiais não eram mera abstração; eles eram uma realidade vista freqüentemente, algumas vezes lutando intensamente pelo destino de uma alma humana. Eles viviam e cantavam e algumas vezes choravam, e vigiavam com o mais profundo interesse para ver se a igreja realmente viveria a mensagem do advento. Eles vinham e iam continuamente da terra para o céu, apresentando um cartão dourado no portal celeste ao entrar no reino da luz. E havia outros anjos, dirigidos por uma compulsão para o mal, de uma monstruosidade incompreensível a ordinários mortais, anjos malignos condenados à destruição e decididos a arrastar para baixo consigo até o último ser sobre a terra, se tivessem uma chance de assim fazer. Repetidas vezes Ellen White tinha despertado o povo de Deus para a realidade desta grande luta, para a necessidade de não fazer nada que desse às forças do mal alguma vantagem sobre a alma. "Se pudésseis ver os puros anjos com seus olhos brilhantes atentamente fixados em vós, vigiando para anotar como o cristão glorifica seu Mestre; ou se pudésseis observar o exultante e irônico triunfo dos anjos maus, ao traçarem cada caminho desonesto, e então mostrarem a escritura sendo violada, compararem vossa vida com esta escritura que professais seguir, mas da qual vos desviais, ficaríeis atônitos e alarmados por vós mesmos", ela escreveu em 1868 (Testimonies, v2, p.171). Em 1899 ela descreveu um "grande conflito se processando entre agências invisíveis, a controvérsia entre os anjos leais e desleais. Anjos maus constantemente em atividade, planejando sua linha de ataque. ... Orai, meus irmãos, orai como nunca orastes antes. Não estamos preparados para a vinda do Senhor" - Ellen White, carta 201, 1899

               

                O ano agora era 1905. John Harvey Kellogg estava em vias de deixar a igreja, levando consigo a maior instituição da mesma e a flor de suas mentes; Albion Ballenger estava proclamando "nova luz" sobre o santuário, deixando em seu rastro igrejas divididas e adventistas não mais convictos sobre os pilares principais de sua fé. Em toda parte as forças do mal pareciam estar em marcha, tragando o território como um exército de saqueadores, e talvez uma alusão ao motivo disto possa ser encontrada no diário de Ellen White, escrito no último dia de Outubro: "Satanás está usando toda sua ciência ao jogar o jogo da vida por almas humanas. Seus anjos estão misturados com os homens, e os estão instruindo nos mistérios da maldade. Estes anjos caídos arrastarão discípulos após si, falarão com os homens e anunciarão princípios tão falsos quanto possível, guiando almas aos caminhos do engano. Estes anjos podem ser encontrados em todo o mundo, apresentando as coisas maravilhosas que logo aparecerão numa luz mais resoluta. Deus pede a Seu povo que obtenha uma compreensão do mistério da piedade". Ellen White, Manuscrito 145, 1905

               

                Então era isso. Em adição aos inimigos humanos, satanás estava convocando seres caídos do mundo das trevas. Inconscientemente, e em nome da nova verdade, seres humanos estavam se aliando aos poderes do mal e Ellen White descreveu o processo em termos calculados para dirigir o povo a suas bíblias, e a seus joelhos: "Teorias falsas serão misturadas com cada fase da experiência, e defendidas com zelo satânico a fim de cativar a mente de toda a alma que não está arraigada e fundada em um conhecimento completo dos princípios sagrados sa palavra" Ellen White, Manuscrito 94, 1903

               

                Aparentemente, poderosos mecanismos psicológicos seriam empregados, calculados para atrair as pessoas em direção ao carisma de personalidades humanas e assim fazer os novos ensinos tanto mais atraentes. "De nosso próprio meio surgem falsos mestres, dando ouvidos a espíritos enganadores cujas doutrinas são de origem satânica. Estes mestres arrastarão discípulos após si. Penetrando sem serem percebidos, eles usarão palavras lisonjeiras e farão hábeis embustes com tato sedutor" - Idem. Pessoas seriam arrastadas num erro tão convincente que "tendo aceito a isca, parece impossível quebrar o encanto que satanás lança sobre eles". Carta Ellen White para os irmãos Daniells e Prescott e seus associados, 30/10/1905, coleção J.H.N. Tindall. Aqueles que assim fossem enganados, não teriam idéia de sua verdadeira condição; eles "protestariam contra a idéia de que estão enlaçados, e contudo, esta é a verdade" - Idem

               

                Em uma palavra, surpreendente! Era quase além de explicação. Pessoas que tinham desfrutado da maior luz religiosa na história estavam agora expostos ao perigo de erros que poderiam fazê-los cair na armadilha e eles nem mesmo saberiam disto. Por aproximadamente dois mil anos os cristãos tinham entoado sobriamente as advertências bíblicas sobre erros tão sutis que enganariam, se possível, os próprios escolhidos. Como Pedro, geração após geração de crentes tinham solenemente informado o Senhor de que isto podia acontecer a outros, mas nunca a eles - agora, contudo, isto estava ocorrendo e Ellen White emitiu descrições verbais de uma grande apostasia: "Muitas estrelas que temos admirado por seu brilho se extinguirão então em trevas. A palha, como uma nuvem, será levada pelo vento, mesmo de lugares onde vemos apenas campos de rico trigo" - Testimonies, v5, p.81

               

                "O que, pergunto, pode ser o fim?" bradou ela em 30 de Outubro de 1905. "Vez após vez tenho perguntado isto, e tenho sempre recebido a mesma instrução: Nunca deixe uma alma sem ser advertida" - Carta Ellen White para os irmãos Daniells e Prescott e seus associados, 30/10/1905, coleção J.H.N. Tindall.

               

                "Nunca deixe uma alma sem ser advertida". Em meio aos mais profundos desafios, a igreja devia lutar, nunca perdendo a oportunidade de transmitir a verdade para advertir cada última alma que permanecesse ainda o tempo suficiente para ouvir. Pois agora a guerra estava em intensidade mortal. A obra de Deus estava sendo desafiada por alguma coisa que Ellen White chamava o "alfa de heresias letais" - ME, v1, p200. Ela adicionou então um pensamento ulterior. Este não seria o último ataque desta natureza. outro devia vir, outro ainda mais traiçoeiro para a obra de Deus.

               

                O alfa havia chegado. O ômega certamente viria. E disse Ellen White: "Tremi por nosso povo" - Special Testimonies, Série B, n 2, p53