PARA DEBATE:
Justificação, Santificação,
Perfeição
Prof. Azenilto G. Brito
Segundo Ellen G. White, a Bíblia deve ser o definidor de
doutrinas, a base de nossas crenças e práticas:
"Eu lhe recomendo, caro leitor, a Palavra de Deus como regra de fé e prática.
Por essa Palavra devemos ser julgados".--Early Writings [Primeiros
Escritos], p. 78.
"O Espírito não foi dado, nem nunca poderá ser concedido, para suplantar
a Bíblia, pois as Escrituras explicitamente declaram que a Palavra de Deus é o
padrão pelo qual todo ensino e experiência deve ser testado". -- The
Great Controversy [O Grande Conflito] , Introdução, p. vii.
"Pouca atenção é dedicada à Bíblia, e o Senhor concedeu uma luz menor
que conduz homens e mulheres à luz maior". - The Review and Herald,
20 de janeiro de 1903.
Sendo assim, submeti este estudo bíblico abaixo a alguns dos amigos e irmãos
com quem tenho trocado opiniões sobre a questão da justificação/santificação,
muitos dos quais mantêm uma visão "perfeccionista", crendo, por
exemplo, que Jesus Cristo tinha uma natureza "pecaminosa", herdada de
Adão depois da Queda, e que deverá haver uma última geração de adventistas
ontologicamente perfeitos para que Jesus regresse. Assim, entendem, ficará
demonstrado perante o universo que "é possível guardar a lei de Deus
perfeitamente" e refutar as acusações de Satanás.
Contudo, o único pré-requisito para que Cristo retorne, que lemos na Bíblia,
é o definido em Mateus 24:14: a pregação do evangelho pela igreja a todo o
mundo, em testemunho a todas as nações. Nada é dito quanto a ser necessário
um número de indivíduos ontologicamente perfeitos para que se dê o advento.
Ademais, os habitantes não-caídos do universo não devem ser tão pouco
inteligentes para não terem a percepção do sentido da cruz. Ali tudo se
definiu e tudo se comprovou. Não há necessidade de se provar mais nada, pois
na cruz Jesus bradou: "Está Consumado!", e não, "Está iniciado
o processo de consumação". . .
As ponderações ao final de cada parágrafo acrescentam alguns comentários
pertinentes aos tópicos abordados. Foi composto com base em várias fontes, com
trechos de muitas diferentes obras de autores adventistas, especialmente nos parágrafos
"Ponderando".
1- O conceito bíblico de "justificar", "justificação",
"expiação", etc., é expresso em linguagem jurídica. O emprego
desses termos na Bíblia ocorre numa ambientação de juízo, ou de casos
julgados segundo a lei (Deut. 25:1; Prov. 17:15; Rom. 2:6-16; 8:31-34; Mat.
12:36, 37). Isso revela que um correto entendimento desse assunto honra a lei de
Deus (Rom. 3:31), e não o oposto.
2- Justificação é o veredito do divino Juiz nas cortes celestiais de
que o perdão é nosso, nossa a vida eterna, nossa a celestial herança, nosso o
Espírito Santo. Pela fé já fomos declarados perfeitos (Hebreus 10:14),
passamos escatologicamente da morte para a vida (João 5:24), já ressuscitamos
e subimos para o céu para assentar-nos nos lugares celestiais (Efés. 2:7, 8).
Ponderando: O evangelho, pois, não aponta apenas para o passado--o
Calvário--mas apresenta-nos as boas novas de que temos os nossos nomes
registrados no livro da vida (Lucas 10:20; Filip. 4:3) e é um retrato que temos
do futuro como fato presente e real para ser agora desfrutado. O Segundo Advento
será o desdobramento concreto e empírico daquilo que já é nosso em Cristo
Jesus porque "fé é a certeza de cousas que se esperam, a convicção de
fatos que se não vêem" (Hebreus 11:1).
3- Justificação (a obra de Deus por nós) e santificação (a
obra de Deus em nós) devem sempre ser distinguidas, mas não separadas,
como visto em Rom. 5:1, 5, Efés. 2:8-9, 10; Tito 2:14; 3:4-7.
Ponderando: A definição de justificação pela fé que devemos
adotar deve ser a dos Reformadores--"justificar é declarar justo", e
não a da Igreja Católica Romana--"justificar é tornar justo". No último
caso ocorre uma fusão de justificação e santificação, uma mistura da experiência
subjetiva e imperfeita do homem, maculada pelo pecado, com a experiência
perfeita e objetiva de Cristo morrendo na cruz.
4- Regeneração, ou "novo nascimento", não é a causa de
nossa salvação, mas sua conseqüência. Não somos salvos porque nascemos de
novo, mas nascemos de novo por termos sido salvos. Em Romanos 5:1 vemos que
desfrutamos "paz com Deus" por termos sido justificados pela fé. Na
entrevista de Jesus com Nicodemos, Ele lhe fala de sua necessidade de nascer de
novo, mas aponta à cruz como fonte da salvação: João 3:3, 14-16.
Ponderando: Outra ênfase muito importante dos Reformadores é a do
caráter extrínseco da justificação pela fé. A frase "fora de nós"
expressa bem essa noção da obra de Deus por nós no Calvário na justificação,
enquanto Sua operação intrínseca para nos regenerar representa a santificação.
A linguagem típica no meio evangélico contemporâneo de "deixar Cristo
entrar no coração" se aplica a este segundo aspecto e está em harmonia
com João 14:23. Contudo, a fonte da salvação não é esse habitar de Cristo
(mediante o Espírito) no íntimo da pessoa, realizando a sua regeneração,
pois não somos salvos por termos sido regenerados, e sim porque Cristo pagou na
cruz o preço de nossa culpa (1 Cor. 6:20; 7:23).
5- Alguém que se converte torna-se uma "nova criatura" (2 Cor.
5:17) mas tal pessoa não está ainda livre da presença do pecado. Poderá
ainda tropeçar e cair vez ou outra, mas tem a promessa de constante perdão (1
João 1:9). Ele/ela não mais estará vivendo sob a escravidão do pecado (Rom.
6:14), porém se empenhará numa luta vitalícia contra o seu poder (Rom. 7; Gál.
5:17).
Ponderando: Lutero costumava dizer que o cristão é simul iustus
et peccator (ao mesmo tempo justo e pecador). Este é um dos paradoxos na Bíblia.
Os apóstolos ensinaram que quando o cristão nasce de novo, ele é feito
participante da natureza divina. II Ped. 1:4. Todavia, eles tornaram claro que o
pecado na carne, ou a natureza pecaminosa, não é erradicada pela regeneração,mas
por ela as duas naturezas-carnal e espiritual-estariam em constante conflito. (Gál.
5:6-18; I Ped. 2:11).
6- Paulo declara que "Cristo vive em mim" (Gál. 2:20), mas com
isso não está promovendo nenhum conceito místico nem alegando ter alcançado
perfeição ontológica. No próprio contexto ele explica que isso se dá
"pela fé" no significado do sacrifício de Cristo, pois não despreza
"a graça de Deus" (vs. 21). "Graça" significa
"benignidade imerecida" e disso ele dependeu até o fim de sua
carreira, e confessa então não ter alcançado a perfeição: Fil 3:12, 13.
Ponderando: Pedro também certamente não foi perfeito, pois Paulo o
repreendou severamente (Gál. 2:11-14) dizendo que ele "se tornara repreensível".
E ainda influenciou o pobre Barnabé com sua atitude (vs. 13). Paulo e Barnabé
tiveram uma séria desavença com respeito a João Marcos (Atos 15: 36-39).
Assim, se tiveram uma discordância tão séria, um dos dois estava errado,
havia cometido um erro. Eles nunca reivindicaram ser ontologicamente perfeitos.
7- Não obstante a Bíblia ensine que os cristãos renascidos terão vitória
sobre todo o pecado conhecido (I João 5:4; 3:9; 5:18; 3:6; Rom. 6: 1, 2;
11:14), em nenhum lugar no Novo Testamento há menção de que a vitória sobre
todo o pecado conhecido incluía "vida sem pecado" no sentido da
natureza pecaminosa ser completamente erradicada na santificação, de maneira a
não existir pecado no cristão. I João 1:7 e 8. Tampouco há referência
a qualquer servo de Deus que haja atingido essa condição de isenção total de
pecado, ou perfeição ontológica.
Ponderando: Alguns citam Enoque como alguém que efetivamente foi
tomado por Deus para os céus em vista de ter logrado uma condição de perfeição
ontológica (Gên. 5:24; Heb. 11:5). Contudo, Moisés e Elias também foram para
o céu, o primeiro por ressurreição (Judas 9), o segundo por ser tomado por
Deus dentre os viventes (2 Reis 2: 11, 12) e sobre nenhum desses é dito que
atingiram uma posição de perfeição. Sobre Enoque, Hebreus declara que ele
agradou a Deus devido a sua fé, não por suas "realizações
espirituais". João Batista é outro exemplo, pois Jesus disse que
"dos nascidos de mulher, nenhum é maior do que João Batista" (Mateus
11:11), no que ele superaria Enoque, Elias e Moisés. Contudo, nada é dito
quanto a ele ter atingido perfeição ontológica. Chegou até a abrigar dúvidas
quanto à missão de Cristo (Mateus 11:2-6)!
8- Nossos melhores esforços para cumprir a lei do Senhor, que é
"perfeita" (Sal. 19:7; Rom. 7:12 e 14), são meros "trapos de
imundície" (Isa. 64:6). Mesmo as orações dos santos são inadequadas e
carecem da intercessão do Espírito para se fazerem aceitáveis (Rom. 8:26).
Tal intercessão é comparada com a de Cristo no vs. 34.
9- Somos salvos pelo viver e morrer de Cristo (Rom. 5:8-10). Pelo Seu
"viver" queremos dizer: por Sua vida perfeita que foi justa,
plenamente apta a propiciar a vida justa que não podemos produzir--a justiça
que nos é creditada. Assim, a perfeita vida de Cristo e Sua morte expiatória são
substituintes.
Ponderando: Se incluímos o novo nascimento, ou regeneração, como
parte do artigo de justificação, estamos perdendo de vista a natureza judicial
da justificação pela fé e realizando uma fusão de justificação e santificação
que conduz à confusão. Daí, a salvação torna-se identificada, de uma
maneira ou outra, com a própria experiência subjetiva do crente, o que
contradiz Efés. 2:8, "isto não vem de vós, é dom de Deus".
10- A vida de Jesus foi pura e santa, totalmente isenta de pecado em
qualquer proporção: Ele foi gerado pelo Espírito Santo, chamado "o ente
santo" desde o ventre de Sua mãe (Lucas 1:35), "sem mancha ou
defeito" (1 Ped. 1:19). É-nos dito que Jesus "não conheceu
pecado" (2 Cor. 5:21), é "santo, imaculado, puro, separado dos
pecadores, exaltado acima nos céus " (Heb. 7:26), e "Nele não há
pecado" (I João 3:5).
Ponderando: Ele era verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus (João
1:1 e 14). Como totalmente homem foi criado como Deus intencionava que o homem
fosse a princípio: perfeito. Em 1 Cor. 5:21 a sentença "ele foi feito
pecado" mostra que não havia ainda sido assim feito, tendo uma natureza
"pecaminosa", pós-lapsariana. Ele foi feito pecado no Calvário (ver
o contexto, vs. 18, 19), não na mangedoura ou no ventre de Maria. Isto é
tornado muito claro em Hebreus 2:14: "Visto, pois, que os filhos têm
participação comum na carne e sangue, destes também Ele, igualmente
participou, para que por Sua morte, destruísse aquele que tem o poder da
morte. . ."
11- Ele foi perfeitamente justo porque foi "justificado em Espírito"
(1 Tim. 3:16). Isto significa que Ele permanecia justificado perante a lei de
Deus com base na obra do Espírito Nele, firmado no que fazia e em como vivia.
Ponderando: Ele não careceu de substituto, segurança, mediador,
intercessor ou justiça imputada. Por Sua obediência no Espírito Ele cumpriu e
satisfez a lei em preceito. Agora, essa declaração de 1 Tim. 3:16 nunca pode
ser dita a nosso respeito, pela mera razão de que temos uma natureza
pecaminosa. Somos santificados no Espírito, mas nunca "justificados em Espírito".
12- A missão precípua de Jesus não foi a de deixar um exemplo de modo
a que pessoas alcançassem a perfeição em imitação de Sua vida perfeita. Ele
não veio buscar salvar os perdidos, mas buscar e salvar o que se havia perdido:
Lucas 19:10. Ele é primeiro de tudo nosso Salvador, depois o nosso Exemplo. Fil.
1:29; 2:1-8.
Ponderando: A alegação de que se Jesus não tivesse a natureza de Adão
após a queda (pós-lapsariana) não se identificaria totalmente com o homem
deixa de perceber a real missão de Jesus. Além disso, dizer que Ele não
conheceria por experiência o que significa defrontar a tentação com uma
"tendência" para o pecado poderia ser igualada a um médico
ginecologista que sabe tudo sobre maternidade, é um especialista no assunto,
sem ter jamais dado à luz a uma criança. Ele não precisa ter a experiência a
fim de saber como assistir uma mulher na sala de parto. Finalmente, lembremo-nos
que Jesus era Deus, o Onisciente que sabe todas as coisas.
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