Reflexão Teológica: A Dádiva de Jesus para a Humanidade

Por EDEGARD SILVA PEREIRA

Segundo o Evangelho de João, qual é dádiva oferecida por Jesus para a humanidade? É característica da teologia joanina interpretar a Jesus mediante uma terminologia própria. Especialmente características são três formas de expressão:

1.      As antíteses dualistas: Luz e trevas (João 1:4 e 5; 8:12; 11:9 e 10; 12:35 e 46), verdade e mentira (João 8:44; 1 João 1:6-10; 2:21), vida e morte (João 5:24; 11:25; 1 João 3:14), em cima e em baixo (João 8:23), liberdade e escravidão (João 8:33 e 36).

2.      Os ditos “Eu sou”: “Eu sou o pão da vida” (João 6:35 e 48); “Eu sou a luz do mundo” (João 8:12); “Eu sou a porta das ovelhas” (João 10:7); “Eu sou o bom pastor” João 10:11); “Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11:25); “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6); “Eu sou a videira verdadeira” (João 15:1); “Eu sou o Princípio e o Fim” (Apoc 21:6).

3.      A caracterização de Jesus pelo uso do termo grego logos (= Palavra) em João 1:1; 1 João 1:1; Apoc 19:13.

A dádiva de Jesus oferecida para a humanidade pode ser demonstrada, de maneira paradigmática, nas fórmulas “Eu sou” e na teologia do logos encarnado (= Palavra encarnada). O Evangelho segundo João reproduz as palavras de Jesus preponderantemente em outro gênero que os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas (chamados sinópticos): não em ditos, parábolas e discussões, mas em discursos continuados ou dialogados que sempre culminam em fórmulas “Eu sou”. Os sinópticos reproduzem as palavras de Jesus tendo em mira uma vasta gama de acontecimentos sociais concretos. Mas o Evangelho segundo João reproduz as palavras de Jesus concentrando-se no decisivo: o autotestemunho de Jesus para a humanidade. Esse autotestemunho João o resume nas fórmulas “Eu sou”.

 

Os ditos “Eu sou” encerram dois componentes: a fórmula “Eu sou” (tradução do grego “egõ-eimi”) e uma figura determinativa. Por exemplo, “Eu sou o pão da vida”, “Eu sou a luz do mundo”, “Eu sou o bom pastor”, “Eu sou a videira verdadeira”. Em 14:6, João passa da palavra figurada ao enunciado direto: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”, processo que está completo em 11:25: “Eu sou a ressurreição e a vida”. Para os leitores do evangelho, ambos os componentes (a fórmula “Eu sou” e as figuras determinativas) têm relevância teológica imediata.

As figuras determinativas foram emprestadas das necessidades elementares da subsistência humana, por exemplo, água, pão e luz. Em cada caso, elas descrevem a dádiva de Jesus para a humanidade: Ele próprio é essa dádiva. É justamente isso o que querem dizer o “Eu sou” e suas figuras determinativas.

A dádiva de Jesus é “água viva” (7:38), ou seja, não é a água natural, mas água que transmite vida, conforme 4:14. Significado semelhante têm as expressões “pão da vida” (6:35) e “pão vivo” (6:51). Mas João não está comparando a dádiva de Jesus com o “pão” e a “água” cotidianos. Essas frases não são comparações nem metáforas. São, como diz Eduard Schweizer em Ego Eimi, “discurso autêntico”. A água que Jesus oferece é vista em oposição à água natural. No encontro de Jesus com a samaritana junto ao poço de Jacó, o Senhor disse: “Quem bebe deste poço sempre de novo voltará a ter sede” (4:13). Em contraposição à água natural, Jesus oferece a água que elimina a sede de uma vez por todas. Também o pão que Jesus oferece (6:49 e 50), mata toda fome para sempre, porque é “pão do céu”, pão autêntico, verdadeiro (6:32).

O “Eu sou” já é conhecido no Antigo Testamento. Seu uso absoluto o encontramos em Isa 43:10. Após um longo discurso de teofania, lê-se: “... para que o saibais, e me creais, e entendais que Eu sou,...”. (Aqui “Eu sou” é tradução do hebraico ani hu).  Porém, o “Eu sou” (egõ eimi) adotado por João difere fundamentalmente do “Eu sou” (ani hu) do Antigo Testamento em dois pontos:

1.      Por exemplo, em Jer 2:13 encontramos a metáfora: Javé (o Deus de Israel) é “manancial de água viva”. Refere-se a uma fonte à qual se pode recorrer sempre de novo, de sorte que não se precisa passar sede. Mas Jesus oferece uma água que não mais permite o surgimento da sede.

2.      O “Eu sou” no Evangelho segundo João não é apenas tradução do hebraico (ani hu) para o grego (egõ eimi), mas transposição para uma revelação absolutamente nova: é uma fórmula de revelação salvífica. Ela não identifica Jesus como alguém já conhecido, mas como aquele que revela ao homem algo desconhecido e inacessível, cuja dádiva não consiste em coisas passageiras e perecíveis deste mundo. Nessas fórmulas Jesus se oferece com exclusividade como aquilo que o homem procura sem conhecer, a saber, a vida verdadeira! Vida que o homem não pode conhecer nem alcançar através do trabalho, da pesquisa, da educação, da política, da religião, ou por qualquer outro meio humano, mas somente como dádiva de Jesus. E essa vida desconhecida e inacessível para o homem só pode ser compreendida como dádiva, como revelação, jamais como desenvolvimento histórico ou conquista pelo esforço humano.

Nas fórmulas “Eu sou” João resume a mensagem de Jesus. É preciso compreender a dádiva, as palavras da nova revelação: “Água” é tudo aquilo com que o homem sacia sua sede de vida; “pão” é tudo o que traz segurança e clareza para a ameaçadora incerteza da existência; o “pastor” significa proteção e orientação em todos os sentidos; e a “videira” é para o homem da antigüidade suma da alegria que transcende o quotidiano. Tudo isso Jesus pretende ser e dar em sentido real e definitivo. Nessas fórmulas a dádiva de Jesus não é apenas o cumprimento histórico-salvífico da promessa do Antigo Testamento. Ela é justamente a realização daquilo pelo que o homem, no fundo, está faminto: ela sacia a fome de vida que encontramos em toda a humanidade.

A partir do que foi visto, torna-se evidente o sentido global das fórmulas “Eu sou”: Somente recebe a dádiva de Jesus quem recebe a ele próprio. Pois ele próprio é a dádiva. O auto-oferecimento de Jesus é aceito em termos completos somente quando o homem se apossa dele, não apenas pelo ouvir crente, mas pelo “comer sua carne” e “beber seu sangue”, como quer significar a Ceia do Senhor (João 6:51-58). Quando o homem faz isso com fé, é atingido pelo poder salvífico da morte de Jesus, que abre as portas para a verdadeira vida.

Mas tais fórmulas não querem levar o leitor ao mundo das idéias, e sim à renovação escatológica e à consumação de sua condição de criatura, conduzido-o à comunhão com o logos (a Palavra = Jesus).

 

Jesus o logos encarnado. No Evangelho segundo João, quem diz “Eu sou” e oferece como dádiva a vida verdadeira? Segundo o prólogo, é o logos encarnado = a Palavra encarnada. O prólogo começa com: “No princípio era o logos, ... tudo foi feito por intermédio dele”. E encerra: “E o logos se fez carne ... e vimos a sua glória” (João 1:1, 3 e 14). Assim, João se refere ao que para os homens constitui o centro da existência, mesmo que esse centro não seja reconhecido naturalmente por eles, pois são assemelhados a cegos de nascença, cujos olhos precisam ser abertos por Jesus (João 9:39).

A primeira frase do prólogo nos faz lembrar a maneira do Antigo Testamento falar da Palavra de Deus que criou céus e terra. O que João diz a respeito do logos tem como fundo o que o Antigo Testamento diz sobre a Palavra de Deus: ela cria o mundo e a História e, simultaneamente, se dirige a homens como palavra de homens (de Moisés, Isaías, Jeremias, etc.).

No entanto o prólogo não está em continuação direta com a linguagem do Antigo Testamento. Seu logos diverge da Palavra do Antigo Testamento em três pontos:

1.      O Antigo Testamento fala da Palavra de Deus; o prólogo fala da “Palavra” em termos absolutos.

2.      A Palavra de Deus do Antigo Testamento é a voz de Deus, ainda que personificada ocasionalmente. Por seu turno, o logos joanino existe como grandeza pessoal independente ao lado de Deus, é uma hipóstase, expressão da natureza de Jesus.

3.      A Palavra de Deus do Antigo Testamento se apresenta como falar histórico-salvífico de Deus. Mas o logos joanino é apresentado como grandeza cósmica, mesmo tendo sido concebido a partir da Palavra encarnada.

As afirmações do prólogo a respeito do logos querem ser entendidas basicamente no sentido de Palavra de Deus do Antigo Testamento (sentido resumido em Isa 55:10 e 11; 40:26; Sal 33:9), porém com uma diferença considerável: aplicam Palavra, em termos absolutos, ao Cristo preexistente, ou seja, introduzem sob o sentido de logos um ser anterior à História. Mais ainda, o logos se torna Jesus. No prólogo, o Jesus histórico é a Palavra em pessoa! Ele o é na carne, isto é, como homem mortal. Ele é a Palavra encarnada, que se relaciona com o mundo criado por ele como “Palavra da Vida” a fim de remi-lo.

De que modo as fórmulas “Eu sou” querem levar o leitor à renovação escatológica e à consumação de sua condição de criatura?

A teologia do logos de João quer dizer: A Palavra encarnada, isto é, o Jesus histórico, cria um novo cosmo no sentido de Sal 33:9: “Pois ele falou, e tudo se fez”. Segundo Apoc 21:6, o novo cosmo já está pronto, aguarda a chegada do dia final para ser revelado plenamente. Nesse novo cosmo se consuma a renovação escatológica  e a condição de criatura do homem. Para referir-se a essa realidade última e definitiva, o Novo Testamento usa o termo grego eschaton. Como em nenhum outro documento do Novo Testamento, o Evangelho segundo João acentua que, em Jesus, o eschaton está presente já agora: Quem crê, já passou da morte para a vida! Quem não crê, já está condenado.

O Evangelho segundo João afirma: Para que a renovação escatológica comece a acontecer na vida do leitor, ele deve “nascer de novo” (João 3:3). Por natureza ele é o cego que deve tornar a ver (João 9) e ser conduzido à comunhão com o logos (a Palavra = Jesus) do qual nada sabe e nada quer saber, ainda que lhe deva a vida, como diz o prólogo (João 1:4, 5, 12 e 13). Pode ver a glória do ser de seu Criador no falar e no agir de Jesus, bem como no seu caminho, somente aquele que, no encontro com Jesus, passa a ver (João 9:39). Essas afirmações não visam uma decisão perfeccionista, mas a fé que encontra em Jesus tudo o que se chama salvação de Deus: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (João 14:6).

Para entrar em contato conosco, utilize este e-mail: adventistas@adventistas.com