ESTADOS UNIDOS
O invisível manto do capitalismo global
Luis Fernando Novoa Garzon

Diante de um inimigo intangível e implacável, a prerrogativa de legítima defesa torna-se uma mera formalidade. A doutrina do “revide antecipado” é a proclama da “soberania imperial” dos EUA sobre o mundo.

“Nenhuma roupa do rei obtivera antes tamanho sucesso!
- Que linda é a nova roupa do rei! Que belo manto! Que perfeição de tecido!
O rei, que nada via, horrorizado pensou:
"Serei eu um tolo e não estarei em condições de ser rei?
Uma criança que estava entre a multidão, em sua imensa inocência,
achou aquilo tudo muito estranho e gritou:
- Vejam!!! Ele está completamente nu!! O rei está nu!!
O povo, então, enchendo-se de coragem, começou a gritar:
- Ele está nu! Ele está nu!”

Hans Christian Andersen

Assim como o capitalismo liberal desmoronou em 1929, o capitalismo neoliberal implodiu junto com as torres gêmeas no dia 11 de setembro de 2001. Nos séculos XVIII e XIX as burguesias protagonizaram revoluções para que se garantisse o direito à propriedade. No século XXI a burguesia global patrocina uma nova e terrível revolução para assegurar o direito ao monopólio.

Passaram-se trinta anos e as inovações da 3ª Onda não bastaram. As novas tecnologias cavaram ainda mais o abismo entre as classes e países, ressuscitando a temida equação super-produção/subconsumo. A financeirização prostituiu a racionalidade econômica e gerou ainda mais instabilidade. O incremento do hedonismo consumista só fez aumentar o vazio de legitimidade de uma vida em que tudo está à venda, ela inclusive. Dilema das elites globalizadas: como deter a queda tendencial das margens de lucro e a fragilização dos mecanismos de adesão e de identificação do sistema? O que fazer quando os métodos compassivos e multilaterais não funcionam?

A transição não poderia ser menos brutal. Omeletes são feitos quebrando os ovos. Alterações drásticas no regime de acumulação capitalista só são viabilizadas com guerra, racismo e mistificação. Entre o mal absoluto e o bem absoluto não existem mediações. As instituições liberais-representativas e a diplomacia devem sair de cena. O Thermidor imperial chega para realizar seu papel apocalíptico.

O grande capital procura converter seus privilégios em direitos inalienáveis. Neste novo contrato privado-transnacional, a liberdade dos investimentos, a propriedade intelectual e o acesso a mercados têm status de cláusulas pétreas e irremovíveis. Paulatinamente, livre competição, democracia e tolerância cultural perdem sua função ideológica e passam a funcionar somente como simulacros. Interdita-se o diálogo político dentro das nações e entre elas. Redefinem-se as regras em função da força e do poder econômico. Decreta-se a manu militari, a infalibilidade do mercado.

A reconfiguração do padrão de acumulação capitalista depende do aprisionamento das negociações econômicas internacionais em marcos unilaterais. Na hora do aperto sistêmico, cobra-se mais de quem pode menos. Os elos mais frágeis do capitalismo ou se rompem ou se decompõem. Se não há rompimento, o flagelo segue em sua sinistra marcha regressiva.

Imperativos imperiais
O caos não é gratuito nem aleatório. Quem quer ordem precisa criar desordem. Eis a lógica elementar do capitalismo: destruir para construir. De posse da caixa de Pandora, o Império norte-americano administra entropia em todo o planeta, procurando:

a) concluir o processo de esvaziamento das instituições multilaterais, fazendo delas ferramentas de legitimação de seus interesses imediatos.
b) estabelecer um novo ciclo de keynesianismo bélico, que reposicione as cadeias de valor em torno do Complexo Industrial-Militar e do sistema financeiro a ele vinculado.
c) enfraquecer os outros dois pólos capitalistas através da guerra comercial e da chantagem militar. A intenção é, por um lado, dissolver a sinergia proporcionada pela União Européia e, por outro, acoplar pela via financeira o eficiente sistema industrial-manufatureiro-exportador que o Japão criou na bacia do Pacífico.
d) sufocar no nascedouro candidatos a pólos ou sub-pólos emergentes. A contenção da China e da Índia através de concessões econômicas pontuais e da dissuasão bélica, onde e quando couber .
e) enquadrar militar e politicamente o mundo islâmico sob o prisma da “guerra contra o terrorismo”, invadindo países-chave como o Afeganistão, Iraque e Irã, mantendo sob ameaça as demais nações da região.
f) incorporar a tecnoburocracia russa – repartida em máfias – aos planos de expansão da indústria bélica norte-americana (multiplicação de bases militares e a consecução do Projeto “Guerra nas Estrelas”), além de vincular o fragmentado leste europeu à Otan.
g) subordinar os três países polarizadores da América Latina: México, Argentina, Brasil, por meio de acordos regionais (Nafta e Alca e/ou bilaterais, com o auxílio dos contratos de rolagem de dívida administrados pelo FMI. Além disso, prevê-se a instalação de novas bases militares norte-americanas na região).
h) redirecionar o sistema legal-representativo norte-americano, pautando a atuação das duas casas parlamentares e da Suprema Corte em função das conveniências do Império, e não da “nação”. O lobby militar-informacional se sobrepõe a todos os demais. Na administração federal fundem-se os aparelhos de segurança em uma secretaria de Estado com poderes ilimitados.

Inimigo mais que perfeito
As explosões do prédio federal em Oklahoma, da sede da Amia, e da embaixada israelense em Buenos Aires, das embaixadas dos EUA na África e, finalmente, os atentados em NY e Washington, cumpriram o papel de abrir caminho para a ascensão da extrema direita e para suas soluções totalitárias. As milícias norte-americanas e o Al´Qaeda – McVeigh e Bin Laden, dóceis e disciplinados instrumentos da CIA – são apenas agentes operacionais de poderosos grupos de pressão no interior do processo decisório do Complexo Industrial-Militar.

Os inimigos de última geração foram produzidos com base nos mais avançados paradigmas tecnológicos: sob encomenda, voltados para operações globais, marketing agressivo e atuação just in time. Os velhos inimigos eram primários e rígidos: defendiam os interesses de potências rivais ou modelos de gestão concorrentes. Os novos inimigos são flexíveis e têm valor agregado: mais do que anti-americanos são “anti-ocidentais”.

O resultado não podia ser mais eficiente: em um passe de mágica os interesses dos EUA tornaram-se os interesses de toda a civilização. Diante de um inimigo intangível e implacável, a prerrogativa de legítima defesa torna-se uma mera formalidade. A doutrina do “revide antecipado” é a proclama da “soberania imperial” dos EUA sobre o mundo. Se os inimigos são capazes de tudo e podem estar em qualquer lugar, não há outra forma de submetê-los senão por meio de um regime totalitário e onipresente.

No presídio global lê-se a inscrição: vigiar com mil olhos, punir com mil braços. Virtualidades divinas forjadas arquitetonicamente. No panópticon o sujeito se torna absoluto, isolando e devassando seus objetos. A ficção do inspetor onividente torna-se concreta. A torre de controle é tanto mais real quanto mais fantasiosamente projetar nossas vulnerabilidades. O poder absoluto está acima de qualquer justificativa. Porque combate o mal, é benévolo por natureza. A máxima autoridade se ergue sobre a máxima nulidade. A idiotice de George W. Bush é a perspicácia do sistema. O Rei-tolo é também o rei de todos, igualmente tolos.

A realidade não é feita com material distinto daquele que compõe nossos pesadelos e sonhos. Podemos admirar as novas roupagens do capitalismo ou debochar de sua nudez. Quem não tiver olhos que veja. Quem tiver, que sinta. Os muros que nos aprisionam, só continuam de pé porque acreditamos plenamente na sua solidez. Imaginação é poder! Esquecemos o refrão. Nossos carcereiros não.


*Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo e membro da ATTAC (Ação pela Taxação das Transações Financeiras em Apoio aos Cidadãos)
 

Fonte: http://agenciacartamaior.uol.com.br/perspectivas/perspectivas.asp

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