Já que o Mundo Vai Acabar Mesmo, Deve o Cristão Preocupar-Se com a Preservação da Natureza?
(O Gênesis e a Crise Ambiental)

Um artigo de EDEGARD SILVA PEREIRA

Na Antiguidade, quando a população do mundo era pouca, as cidades da Palestina eram pequenos povoados e o homem não havia começado a destruir a Natureza com a intensidade que o faz desde o começo da Idade Moderna, o Gênesis já fornecia as bases teológicas para uma atitude responsável em relação ao meio ambiente. A idéia do Gênesis a respeito da vocação e do papel do homem no mundo nos surpreende ainda hoje e seus conceitos podem ajudar na formação de uma consciência responsável, sobre o cuidado do meio ambiente, no homem contemporâneo.

A raíz de problema

A destruição do meio ambiente acontece há milênios e se tornou crítica em nossos dias. Sua causa primordial é a seguinte: o homem não produz matéria nem energia, ele é um consumidor de matéria e energia encontradas na Natureza. O homem é a causa da crise ambiental: o modelo consumista está errado porque é insustentável, leva ao esgotamento dos recursos naturais, à deterioração do meio ambiente, à destruição de muitas formas de vida e põe em perigo a própria existência humana.

O livro das origens tem seu próprio modo de apresentar o fato de que o ser humano não produz matéria nem energia: ele foi criado por último, depois que tudo já estava pronto e suas necessidades materiais e energéticas haviam sido supridas pelo Criador. Na narrativa, a humanidade recebe um mundo contendo tudo o que é necessário para que ela se instale nele confortavelmente. Mas a humanidade não recebe só o mundo para ser seu lar, recebe também sua vocação do Criador: administrar o mundo como “imagem de Deus”.

O ser humano, imagem de Deus

O termo “imagem” empregado em Gên 1:26 e 27 salienta a vocação e o papel do homem em relação à criação: só Deus pode fazer uma “imagem” de si mesmo para “representá-lo” no mundo. E isto exclui a possibilidade de se tratar de semelhança espiritual ou física entre o homem e Deus, pois Deus por essência justamente não tem aspecto plástico. Por isso, o homem não pode e não deve fazer imagens de Deus. No texto citado, o termo imagem tem sentido plástico, o que também exclui a possibilidade da “semelhança” resultar da divinização de qualquer elemento material ou aspecto espiritual próprios da natureza humana. Lembremos que o querer ser como Deus é apontado como sendo a raíz do pecado (Gên 3:5).

As Escrituras deixam isto claro: o homem não deve fazer imagens de Deus, mas deve ser imagem de Deus e ver esta imagem em cada ser humano. Segundo o Novo Testamento, a revelação da autêntica imagem de Deus no homem é Jesus Cristo (2 Cor 44:4; Col 1:15; 310). Jesus Cristo é o único em que Deus está adequadamente representado: em seu modo de ser e de agir, como ser humano autêntico segundo Deus, aparece o desígnio do Criador em relação ao mundo.

O ser humano só é imagem de Deus no grande Templo da criação. O termo imagem esclarece o laço interno entre Deus e o homem e entre este e a criação: o homem não é Deus, é embaixador, representante, e não presença de Deus; ele é o mediador, o porta-voz de Deus para a criação e o porta-voz da criação diante de Deus; ele deve ser imagem de Deus para servir o Criador -e não para dele se servir- na criação. Contudo, Gên 2 e 3 mostra como o homem é livre para aceitar ou não esta dependência de Deus no domínio da criação.

A vocação original do homem permanece apesar da queda. A queda não destruiu a imagem de Deus, pois esta se refere à existência e não a essência do ser humano. Todos os “filhos de Adão” são membros da raça humana e participam da mesma vocação (Gên 5:1 e 3; 9:6). Ou seja, o Criador ainda quer que o homem seja o mediador que o una com a criação. E isto está profundamente implicado no Evangelho: arrependimento e conversão significam a volta ao Criador.

A vocação e o papel do homem no mundo

Segue um pequeno resumo sobre o significado da vocação e do papel do homem no mundo, resultante da análise da expressão “imagem de Deus” de Gên 1:26 e 27:

1) Tal expressão quer indicar o caráter peculiar do ser humano na criação: a compreensão que o ser humano tem de si mesmo resulta da relação especial de Deus para com o homem. O termo “imagem” deve ser visto, em primeiro lugar, como a capacidade que o Criador deu ao homem de corresponder à palavra de Deus, escutando, e a seguir obedecendo e respondendo.

2) Coloca o ser humano numa relação especial para com os seres vivos criados anteriormente: plantas e animais. O domínio do homem no mundo deve ser visto assim: ele se ocupa com as mesmas coisas que Deus criou. As plantas e os animais, com os quais ele tem que lidar sempre, são criaturas de Deus. Toda vez que entra em relação com os seres e coisas do mundo, o homem entra também em relação com Deus, com o seu criador que lhe confiou os seres e coisas.

3) Esclarece que é exatamente como dominador da criação que o homem é "imagem de Deus"; e que o seu direito de domínio e a sua obrigação de dominar não são autônomos, mas tem caráter de imagem. Entre Deus e o ser humano existem as semelhanças e as diferenças que há entre o original e a sua cópia plástica.

A expressão “imagem de Deus” está num contexto que documenta que Deus é o Senhor da criação, e lembra o homem de que pratica o domínio como o administrador posto por Deus. O homem deve encarregar-se da sua tarefa não com a arbitrariedade de dono, mas como administrador responsável, cuidando de que o mundo seja sempre um lar deleitoso para ele e para as outras criaturas de Deus, o que está implicado no nome Éden (delícia), dado ao jardim que foi a morada original do ser humano e dos animais.

4) Deixa muito claro que a administração do mundo é um encargo divino dado a uma humanidade grande (resultante, segundo 1:26, da multiplicação dos seres humanos até encherem a Terra). O encargo é dado a “adam” (= Adão), termo hebraico cuja tradução é “humanidade”. Logo, a vocação de cuidar da criação não é dada a certos indivíduos ou a grupos de indivíduos, como, por exemplo, as autoridades, mas a toda a grande comunidade humana na multiplicidade de seus membros.

5) Também deixa muito claro que o ser humano trabalha como “imagem de Deus” quando acolhe e aproveita devidamente aquilo que lhe foi preparado pelo Criador, e quando realiza a contento as tarefas pelas quais o Criador o tornou responsável, a saber, administrar o mundo como parceiro do Criador (Gên 1:26), cuidar das criaturas que o Criador lhe entregou (plantas, animais e a mulher, segundo Gên 2:15-17), e usar bem o direito de decisão, que Deus lhe deu, na criação (Gên 2:18-23).

A crise ambiental

Sem dúvida, a vocação original da humanidade de administrar o mundo como imagem de Deus ainda não foi cumprida. Por isso, a humanidade como tal, ameaçada por sua falta de unidade e sem aceitar a dependência de Deus, enfrenta o perigo de lhe fugir o domínio pelo desconhecimento das tarefas de sua supremacia. A maneira irresponsável como a humanidade sujeita e explora o mundo a faz perigar e adultera a imagem de Deus.

Do ponto de vista da teologia da criação, a atual crise ambiental é mais um resultado desastroso do homem ter recusado sua condição original de ser imagem de Deus para ser dominador e explorador autônomo. E o domínio que o homem exerce no mundo nesta última condição é sempre destruidor. E a destruição não é só do meio ambiente propício à vida, mas também da dignidade humana.

A forma como o homem exerce o domínio no mundo destrói o meio ambiente propício à vida quando opta por uma política desenvolvimentista centrada no desenvolvimento da economia e da tecnologia, e não no desenvolvimento humano segundo Deus. Na visão predominante atualmente, o desenvolvimento da economia depende da oferta de novas tecnologias que mantenham aquecido o consumo a fim de que o capital aumente constantemente. Isto, por um lado, demanda um consumo crescente de matéria e de energia, e, por outro lado, produz enormes volumes de lixo e substâncias contaminantes do ar, da água e da terra.

Também destrói a dignidade humana mediante a criação de modelos de vida que elegem a diferença como prioridade, os quais se traduzem em formas de poder que excluem milhões de pessoas e as condenam a viver na pobreza e a morrer de fome ou de doenças evitáveis. Esses modos de vida são os principais responsáveis pela decadência das relações domésticas, políticas e sociais.

O mundo criado pelo homem está destruindo o mundo criado por Deus, e o homem tecnológico está afastando cada vez mais a Deus do mundo. Não existe ser humano sem Deus.

Infelizmente, as igrejas modernas estão cheias de cristãos que ignoram a vocação e o papel do homem no mundo, cuja importância é tal que foram dados por Deus muito antes mesmo de ser dada a Lei e da existência do povo de Deus. E essa ignorância existe, talvez, porque os pregadores contemporâneos esqueceram de abordar a questão com a urgência e a seriedade que merece.

A adoração do Deus criador torna-se uma hipocrisia quando os adoradores (mesmo confessos criacionistas e guardadores da Lei) estão desmatando a selva amazônica, alterando o clima com as emanações de seus automóveis, de suas atividades produtivas e domésticas, e quando são movidos pela compulsão de consumir. Essa gente ignora que ser imagem de Deus inclui o cuidado das plantas, dos animais, da pureza do ar, da água e da terra, indispensáveis à vida, e o respeito à dignidade humana.

As pesquisas sobre as causas da crise ambiental revelam, entre outras coisas, o seguinte: 1) as fronteiras entre países e a separação dos indivíduos em comunidades ou classes sociais são fictícias, pois na Natureza tudo está interligado; 2) a atitude de um indivíduo, grupo ou sociedade para com o meio ambiente tem um efeito global; 3) portanto todos somos responsáveis pelo cuidado do meio ambiente. Isto confirma a importância, a universalidade e a atualidade da visão do Gênesis sobre a vocação e o papel do homem no mundo.

Conclusão

Por isso tudo, a criação do ser humano como “imagem de Deus” significa que o cuidado do meio ambiente deveria ser algo que faz parte do corpo do homem, algo viceral. Mas não é, porque ser ou não ser imagem de Deus depende de decisão e porque o homem, segundo Gên 3, não quer ser imagem de Deus, quer ser como Deus, e esta ascensão conduz à queda.

Se a cristandade tivesse prestado atenção para a vocação e o papel do homem no mundo, certamente teria contribuindo para evitar a crise ambiental que ameaça o futuro de nossos netos, principalmente com os efeitos catastróficos das mudanças climáticas.

Pregadores e leigos devem ter isto presente: isentar-se da responsabilidade de cuidar do meio ambiente significa a recusa de ser ”imagem de Deus”,isto é, a recusa de cumprir a vocação e o papel do ser humano no mundo, dados pelo Criador.

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