Por EDEGARD SILVA PEREIRA Este artigo complementa o anterior,
“Reflexão Sobre o Espírito”, publicado neste
site.
Não vou abordar aqui minuciosamente o tema proposto no título. Farei apenas
um pequeno resumo de alguns fatores determinantes. Minha intenção é chamar a
atenção para o seguinte: o carisma, isto é, o dom do Espírito para edificar
o povo de Deus e dar-lhe vida como tal é um elemento constitutivo da fé em
Deus. O dom do Espírito é a marca da presença fiel e constante de Deus em
seu povo. Portanto, a tensão que existiu no antigo Israel e que existe no
cristianismo, entre as funções sagradas e o carisma, em Israel, e entre as
funções eclesiásticas e o carisma, no cristianismo, é algo curioso e
estranho. Aqui prefiro referir-me ao dom do Espírito com expressões
que correspondem aos termos do Novo Testamento, a saber, “carisma” ou “poder
carismático”, e aos que são portadores desse dom como “carismáticos”. Penso
que, com esses termos, evitamos restringir a atividade inspiradora do
Espírito aos que chamamos “profetas”, o que significa não fazer justiça às
Escrituras. Traduzir o termo hebreu nabi pela palavra de origem
grega “profeta” não expressa os conceitos diferentes do ministério e da
mensagem destes homens. O Antigo Testamento também designa àquele que
chamamos “profeta” com outros termos: “vidente” ou “homem de Deus”. Seu
ministério é descrito como “chamar, proclamar, anunciar, predizer” em nome
de Deus. Seu campo de ação era instruir, segundo a vontade de Deus, na
guerra, no culto, na política e no direito. Estes homens exerciam uma função
sagrada. Seguir suas instruções significava que a vida total do povo de
Israel dependia diretamente de Deus, e não das instituições. Note-se que
predizer não era a característica nem a função principal dos profetas, mas
uma entre outras mais.
EM ISRAEL O Antigo Testamento nos apresenta um
panorama bastante detalhado da tensão, em Israel, entre as funções sagradas
e o carisma do Espírito. Tal panorama nos oferece os fatores determinantes.
Ali facilmente podemos constatar o seguinte: um dos fatos mais
significativos para toda a fé em Israel e para sua feição histórica é a
atividade inspiradora inteiramente imprevisível da
ruach Javé (do Espírito de Deus), através da qual
Deus manifestava sua ajuda pessoalmente presente, decidindo tudo em sua
benignidade. A instância suprema desse povo não era nem uma instituição
sagrada, nem algum poder carismático, mas o próprio Deus, que podia
desacreditar com a mesma facilidade tanto a instituição sagrada, por mais
legítima que fosse (por ex. o templo da monarquia davídica, destruído pelos
babilônios), como o carisma inteiramente digno de fé (por exemplo, o
carismático rei Saul).
Ao mesmo tempo, Deus era Senhor e referência imediata
tanto daquele que exercia uma função, como do que era dotado de poder
carismático. Na confederação de tribos, as duas manifestações da fé em Deus,
a sacerdotal e a carismática eruptiva, se aproximavam muito uma da outra e
até se confundiam na mesma pessoa (por exemplo, o sacerdote e vidente
Samuel). Ou seja, durante o longo período que vai desde a conquista de Canaã
até a constituição do Estado, os israelitas não percebiam contradição alguma
entre a função sagrada e o poder carismático justamente porque esses dois
elementos se referiam a Deus, à sua essência e ao seu domínio insondáveis. Nesse período da história de Israel, o elemento
institucional estava diretamente subordinado à vontade de Deus. O sentido
próprio do direito em Israel mostra isso: é um direito mediante o qual Deus
intervinha pessoalmente em função do homem. Sendo um direito eminentemente
pessoal, era uma expressão da vontade de Deus, que não podia ser reduzida a
alguma coisa fixa e inteiramente objetiva. Sua interpretação e aplicação
dependiam diretamente de uma autoridade carismática (Juizes 4:4 e 5). A
vontade jurídica de Deus era objeto de pregação (Deut 4:6-8; Miq 3:9-12). A inspiração carismática desapareceu
totalmente com a constituição do Estado, o advento da monarquia e a
construção do Templo em Jerusalém. O que significou uma grande perda para
Israel. O exército se transformou em uma instituição de mercenários, que
criara uma situação totalmente diversa da existente no tempo das guerras
santas, nas quais os homens comuns eram convocados para defender a pátria
por homens que reivindicavam seriamente a dignidade de agirem sob o poder do
Espírito. A proteção de Israel dependia agora do exército mecanizado com a
adoção de carros de combate, e não mais diretamente de Deus. O sacerdócio
tornou-se fortemente hierarquizado. Esse clero, que oficiava em nome de uma
autoridade superior, nunca se considerou carismático. Até a consulta aos
oráculos divinos era para eles uma operação técnica que não dependia de
qualquer inspiração. E a imposição das mãos já não era entendida como a
transmissão de um carisma, mas como função de dirigente do povo. A monarquia
considerava-se carismática, pois o testamento político de Davi reclamava uma
inspiração da ruach Javé
(2 Sam 23:2; Prov 16:10), porém a história dos reis mostra que a maioria
deles carecia dessa inspiração. O Templo pertencia ao Estado, era o Templo
da corte e estava destinado a ressaltar o prestígio e a legitimidade da
função real. A constituição do Estado requeria uma organização cada vez mais
administrativa e funcionários para ajustarem o povo. A institucionalização
precipitou a secularização de Israel, que até então se considerava “povo de
Deus”. Por isso tudo, enormes setores da existência foram perdendo contato
com Deus e escaparam ao propósito da fé. Chamamos de profetas os homens nos quais se manifestou com
uma nova força o elemento carismático da religião de Javé. O movimento
profético, entre os séculos IX e VII, investiu contra a decadência interior
e o atrofiamento da fé, atacando violentamente as instituições existentes e
lhes contestavam a legitimidade diante de Deus. Já no século IX a palavra
que caracteriza os profetas adquire um sentido de oposição clara à
secularização da técnica bélica (2 Reis 2:12; 13:14). Mas os profetas nunca combateram o principio da
necessidade da monarquia, do sacerdócio e da magistratura. Ao contrário,
encaravam estas funções como órgãos da vontade de Deus muito mais seriamente
que qualquer um dos contemporâneos que as exerciam. Devido a seu ataque
violento ao manejo das instituições, o profetismo foi posto num isolamento,
numa situação de verdadeira crise. Os profetas não exerciam outras funções,
como antes, na guerra, no culto, na política e no direito. Eram perseguidos
e até mortos pelas autoridades monárquicas e religiosas. A pregação dos profetas (principalmente as de Isaías,
Jeremias e Ezequiel), que anunciavam a ação de Deus na história a fim de
destruir Israel por causa da severa decadência interior e do atrofiamento da
fé, se cumpriu nos acontecimentos que resultaram no exílio
assírio-babilônico, a mais terrível crise sofrida pelo antigo Israel.
Acontecimentos que determinaram o fim da monarquia, a destruição do Estado,
do Templo e da fortaleza de Jerusalém. Mas os profetas também anunciaram a
salvação, como a “novidade” de Deus, tudo quanto ia ainda ser criado: um
novo êxodo, uma nova aliança e uma nova Jerusalém para formar um novo Israel
depois do exílio. Na profecia de salvação está claro: a salvação não mais
dependia dos feitos passados de Deus, mas de suas novas ações.
A comunidade pós-exílica não ficou
totalmente sem carisma. Entre os levíticos pós-exílicos havia grupos que se
consideravam herdeiros e sucessores dos profetas e que reivindicavam uma
inspiração de Deus a seu favor. Os salmos pós-exílicos são a mais brilhante
prova do carisma dos autores que pertenciam aos círculos levíticos. Nesse
período, surgiram também os Sábios (Prov 1:23), os quais reivindicavam a
iluminação inspirada para sua palavra, que não era a palavra profética, mas
uma verdade inerente à sabedoria, uma herança intelectual de um grande
passado com a conceituação que lhe é própria. A inspiração atribuída à
ruach Javé sofre uma
última mutação quando o sábio se transformou em intérprete do futuro, em
autor de apocalipse. O apocalipse judaico, nitidamente esotérico, é
diferente de tudo o que se havia escrito antes como sendo fruto da
inspiração, e teve grande influência em importantes círculos judaicos no
tempo de Jesus e até um século depois. A função suprema em que se verifica a relação vital entre
Deus e Israel é a do profeta. Segundo Deut 18:18, o profeta não pode faltar
em Israel, pois, para quem o compreende, era o povo expressamente conduzido
por inspiração carismática. Sempre que faltou esta inspiração houve crise. A
hora final da religião de Javé chegou quando a inspiração carismática se
extinguiu definitivamente. Começou então a era da erudição dos escribas e do
rigorismo hipócrita dos fariseus.
NA IGREJA PRIMITIVA A tensão entre as funções eclesiásticas e o poder
carismático, entre o exercício impessoal de um cargo e o carisma
estritamente pessoal, por isso mesmo imprevisível, foi também uma
caraterística marcante nos três primeiros séculos do cristianismo. Em meu
artigo “Reflexão Sobre o Espírito” já vimos que, em Atos do Apóstolos e nas
epístolas paulinas, o carisma do Espírito para edificar a Igreja corpo de
Cristo e dar-lhe vida como tal é um elemento constitutivo da fé cristã, um
dos fatos mais significativos para sua feição histórica. O dom do Espírito concedido a “toda a humanidade” a partir
do Pentecostes, e o carisma do Espírito dado aos cristãos será a herança
espiritual depositada na Igreja para sempre, será a marca da presença
constante e fiel de Cristo entre os seus. O carisma do Espírito manterá viva
a Igreja e suscitará nela iniciativas sempre novas que a adequarão em cada
época e cada cultura a servir a Deus no mundo concreto no qual ela vive. No Novo Testamento, a Igreja primitiva é uma comunidade
essencialmente carismática: o Espírito a fez nascer e é a força que a
sustenta e dirige. A relação entre os cristãos primitivos e o Espírito era
íntima não só no exercício das funções eclesiásticas, mas sobretudo na vida
diária comum. A tal ponto que os apóstolos e os anciãos da comunidade cristã
de Jerusalém podiam afirmar “pareceu bem ao Espírito Santo e a nós...” (Atos
15:28, em carta enviada à comunidade cristã de Antioquia, liberando os
conversos gentios da observância da lei de Moisés).
NA IGREJA CATÓLICA A História da Igreja mostra que, até o século III, os
cristãos não percebiam contradição alguma entre as funções eclesiásticas e o
poder carismático, justamente porque esses dois elementos se referiam ao dom
do Espírito Santo, à presença constante de Cristo entre os seus. A tensão
entre esses dois elementos começa a aparecer no momento em que a antiga
Igreja Católica adquire feições romanas, não só por haver escolhido Roma
como sede, mas principalmente por copiar a estrutura do Império Romano. Seu
rápido crescimento sob a proteção de Constantino requeria uma organização
cada vez mais administrativa, sacerdotes fortemente hierarquizados para
ajustarem o povo cristão, uma autoridade eclesiástica sem precedentes, uma
perspicácia espiritual especial e uma vida baseada numa tradição que
justificasse todas essas mudanças. Todos sabemos quanto o catolicismo romano
escapou ao propósito da fé quando se transformou em instituição, quando o
poder papal substituiu o poder do Espírito e o Evangelho contaminado pela
tradição passou a ser expressado de maneira mecânica na missa. NA I.A.S.D. Tomo a IASD como exemplo contemporâneo da tensão entre as
funções eclesiásticas e o poder carismático. Assim como Israel, depois da
constituição do Estado, e a Igreja Católica, a partir de sua romanização, a
IASD tornou-se uma congregação religiosa fechada à inspiração do Espírito
após seus dirigentes se dedicarem a estabelecer uma organização cada vez
mais administrativa e a criar instituições. Mas com uma notável diferença: a
IASD provocou a extinção da inspiração depois de pouquíssimos anos de
existência sob orientação carismática (de 1844 a 1891), o que Israel e a
Igreja demoraram séculos para fazer. O fechamento da IASD à inspiração começou com o isolamento
da carismática Ellen G. White, cujos ataques ao comportamento administrativo
(muitos foram compilados em Testemunhos para Ministros) incomodavam
os dirigentes. A Austrália foi o lugar mais distante, no outro lado do
mundo, que a Associação Geral encontrou, em 1891, para mantê-la afastada do
principal centro administrativo da IASD. Sem o “estorvo” de Ellen G. White,
os dirigentes completaram a secularização da administração, tornando-a cada
vez mais administrativa e técnica. Os dirigentes justificam essa atitude
falando uma linguagem diferente da do Novo Testamento. Enquanto este
estabelece uma conexão entre Igreja corpo de Cristo e ação do Espírito, a
IASD estabelece uma conexão entre Igreja corpo de Cristo e administração, no
sentido dado pelo Manual da IASD: “corpo” bem organizado, tendo como
“cabeça” a Conferência Geral. Atualmente a IASD tem a forma de governo mais
secularizada de todo o cristianismo — uma burocracia representativa, copiada
do Estado moderno e das grandes empresas mercantilistas. Forma de governo
que, no fundo, é, na expressão de Max Weber, a ditadura dos funcionários.
(Para saber mais sobre a forma de governo da IASD, veja meu trabalho
O Leviatã Adventista,
publicado neste site.) Três aspectos completam o quadro que contesta ao carisma do Espírito o direito de entrar em cena mais uma vez. 1) Na teoria a IASD proclama a fé em Deus, mas, na prática, essa fé cedeu lugar para a racionalização, que aplica com rigor na formulação da doutrina e na administração. E a racionalidade desconfia de toda inspiração carismática e até a teme. Pois sua pretensão ao absoluto não tolera a concorrência da inspiração que é inteiramente imprevisível, menos ainda a tolera face à possibilidade da inspiração contestar o método e o comportamento administrativos. 2) O ministério adventista, fortemente hierarquizado, nunca se considerou carismático; realiza suas funções dentro de um rígido sistema institucional, no qual confia. 3) A vida do ministério adventista está baseada apenas numa tradição, estabelecida como instância suprema a partir de 1844, e expressa de maneira puramente mecânica e fechada para o novo. Tradição caracterizada pelo rigorismo e purismo como é aplicada em todas as medidas que a autoridade eclesiástica toma, por exemplo, só é bom e válido o que é adventista, proibir o casamento com outros cristãos, regulamentação minuciosa da função e da vida eclesiástica. E esta atitude não está em sintonia com a ação soberana do Espírito, que “sopra” onde quer, a fim de criar a fraternidade de todos os homens, desejada por Deus. Podemos resumir o que provocou a extinção da inspiração do Espírito na IASD com o que eu chamo a expressão da “certeza incerta” de Laodicéia: “Estou rico e abastado, não preciso de coisa alguma...” (Apoc 3:17). Ou, segundo a própria fala da IASD: “Tenho a melhor administração que existe, tenho o único conjunto de doutrinas que é verdadeiro, estou indo bem e isso me basta”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A contradição entre as funções eclesiásticas e o poder
carismático criou em nós a sensação que a obra do Espírito não passa de uma
ação ilusória. Por outro lado, o fato de que sempre existiram falsos
profetas (falsos videntes, falsos carismáticos, falsos homens de Deus) não
nos autoriza a ficar totalmente sem o carisma do Espírito, porque, como
vimos, é um elemento constitutivo da fé em Deus, tanto no Antigo quanto no
Novo Testamento. O que não podemos fazer é tomar o caminho dos pentecostais
e do movimento carismático católico, os quais banalizaram a atividade do
Espírito, usando-a mais como marketing religioso para conquistar adeptos. É
preciso encontrar outro caminho. O desafio que devemos enfrentar é: como organizar a Igreja
a fim de torná-la disponível à ação do Espírito? Para tal, será
indispensável a inspiração do Espírito, porque a solução não poderá ser nem
técnica nem jurídica. Só o novo que o Espírito cria, pode tirar-nos deste
impasse. Também é preciso reconhecer tanto nossas recusas como as novas
possibilidades que nos são oferecidas para tornar-nos disponíveis à ação do
Espírito. |
Para entrar em contato conosco, utilize este e-mail: adventistas@adventistas.com |