Clipping: EUA, o Império de Deus

 

A cavaleiro de uma retórica cada vez mais messiânica, entendendo os Estados Unidos como missionado pelo Todo-Poderoso a regenerar a Terra e a Humanidade, o discurso presidencial de George W.Bush mistura cada vez mais política com religião salvacionista. Isso nos leva a associá-lo ao projeto português do Quinto Império, defendido no século XVII pelo Padre Antônio Vieira.

 

Portugal restaurado
1620: os pais peregrinos chegam à América, a Nova Jerusalém

Bem sucedida a revolta do Porto chefiada pelo duque João de Bragança, abatido o espanhol, o reino de Portugal, recomposto em 1640, era uma mirrada sombra do que fora nos tempos de D. Manuel, o Venturoso. O tesouro vazio, o exército em frangalhos, a esquadra extraviada, Pernambuco e Angola nas mãos dos holandeses, um rei tonto em Lisboa sem saber o que fazer. Era esse o quadro quando o Padre Vieira, vindo de Salvador, desembarcou no Tejo, em 1641, para, em nome da Ordem de Jesus da Bahia, confraternizar com a independência recém conquistada. Celebrar o fim do “cativeiro espanhol”, como alguns exagerados chamaram o domínio de 60 anos que a Coroa de Castela exercera sobre Portugal (1580-1640).

Nada daquilo intimidou o padre. O que Portugal precisava era por a casa em dia, ativar o comércio e forjar um bom mito para fazer a nação esperançar-se. Não demorou para que ele, impressionando o rei D. João IV e a corte com uma saraivada impressionante de sermões, embarcasse em 1644 para Amsterdã, na Holanda, para tentar trazer os judeus portugueses, os ladinos ou marranos , de volta à Portugal. Queria-os financiando uma Companhia Geral do Comércio com o Brasil. Chegou até a esboçar uma concordata com Menasseh ben Israel, o líder dos marranos no exílio, para que eles não fossem atormentados pela Inquisição caso resolvessem aplicar seu capital nos novos projetos de retomada econômica que ele tinha em mente.

 

O quinto Império

Para tornar a aliança com os judeus desterrados (*) algo palatável ao radical anti-semitismo do povo católico, o engenhoso Vieira desenvolveu então o mito do Quinto Império. Se no passado remoto Nabucodonossor da Babilônia, Ciro da Pérsia, Péricles da Grécia e César em Roma, foram os exponenciais das potências antigas, agora chegara a vez do rei de Portugal liderar o derradeiro reino: o Império Universal Cristão, o Quinto Império. Deus teria passado a tocha da eleição das tribos de Israel para um novo povo escolhido, os portugueses. Doravante as duas nações, a hebraica e a lusitana, irmanadas, se lançariam de novo nas águas do Oriente, estariam ativas em Calcutá, em Goa, em Macau ou em Salvador, no Brasil. Como se sabe deu tudo errado. Os judeus não vieram e o Padre Vieira parou nos bancos da Inquisição respondendo processo por heresia (1665-1667).

O mito do povo eleito todavia não morrera - encastelou-se na Inglaterra. Enquanto a coroa britânica forjava o seu domínio à ferro e fogo, milhares de colonos puritanos, emigrando para o Novo Mundo, levaram consigo o mito deles sim serem o God´s chosen people, o novo povo eleito por Deus, vendo a América como a Nova Jerusalém. O Mayflower, o barco que, cruzando o Atlântico, trouxera os primeiros imigrantes foi entendido como a chegada dos hebreus à Terra Prometida depois da travessia do Mar Vermelho. A eles, a esses atletas de Deus, fora dada uma missão, um Destino Manifesto como Croly chamara, povoar toda a América, do Atlântico ao Pacífico, e depois levar sua mensagem de remissão e os seus valores ao mundo inteiro. Toda essa retórica salvacionista e messiânica está agora de volta com a guerra do império anglo-saxão contra o Afeganistão e o Iraque.

(*) Os judeus foram expulsos de Portugal na época do rei Manuel, o Venturoso, em razão da pressão popular e da exigência dos seus sogros espanhóis que o forçaram a publicar o Édito da Expulsão em 1496.

 

América: terra da promissão

"Estou verdadeiramente persuadido que a vontade de Deus determinou pesadas tarefas para essa terra." O pastor John Winthrop, da Nova Inglaterra, em carta à esposa, 1629.

No tempo em que somente os ingleses viam-se como “a nação escolhida”, acreditavam que o destino deles era levar a civilização e os negócios para os quatro cantos do mundo. Porém, as derrotas militares que foram sofrendo ao longo do século XX, a começar pelas dizimações que os ingleses padeceram nas batalhas da Iª Guerra Mundial (em Ypres e no Somme, entre 1915 1916), e novamente na IIª Guerra Mundial (em Dunquerque, em Singapura e em Tobruk, entre 1940 e 42), abalou-lhes a fleuma imperial. Deus dera-lhes as costas como fizera com os portugueses no tempo do Padre Vieira.

O historiador Clifford Longley (Chosen People – the big Idea that shapes England and America, Londres, 2002), acredita que a missão de raça redentora foi definitivamente transferida para os anglo-saxãos do outro lado do Atlântico em 1956, ocasião em que fracassou a tentativa militar dos britânicos em evitar a nacionalização do Canal de Suez feita por Gamal Nasser no Egito. Sentiram então que não tinham mais condições de regerem os destinos dos povos. Desde aquela época, ao velho Reino Unido só restou seguir as pegadas dos novos escolhidos, os americanos. Eles é que, na inteira posse da nova Terra da Promissão, vêem-se como os prediletos para implantar no mundo de hoje o Império de Deus. -- Por Voltaire Schilling.

Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/seculo/2003/11/21/000.htm


EUA, o Choque das Doutrinas

Gradativamente, conforme as coisa vão saindo mal em Bagdá, a invasão e a ocupação do Iraque está produzindo reação no meio político e intelectual norte-americano. Exemplo disso é posição tomada pelo historiador Arthur Schlessinger Jr. contra a Doutrina Bush, que defende o principio da guerra preventiva. Para ele, os atuais presidentes, cercados pelos neoconservadores e por direitistas religiosos, possuídos pelo espírito de um messianismo imperial, querem remodelar o mundo inteiro à imagem da América do Norte. Isso levou a que a antiga e bem sucedida doutrina Truman, que orientou a política externa dos Estados Unidos por meio século, fosse praticamente revogada pela administração dos direitistas republicanos que estão no poder.

Cegueira no Iraque "Durante os longos anos da Guerra Fria, guerra preventiva era algo imensionável. Seus advogados eram vistos como lunáticos." Arthur Schlessinger Jr – Eyless in Iraq, NY Review of Books, 24/09/2003

Arthur Schlessinger Jr é um proeminente historiador norte-americano, um especialista na Era Roosevelt. É um dos poucos integrantes do Brain Trust, o grupo de cérebros que foi convidado a assessorar o governo de John Kennedy, entre 1961-1963, que ainda está vivo. Pois ele, membro eminente do staff acadêmico liberal, está furioso com o presidente George M. Bush. Num longo artigo escrito para o The New York Review of Books, em 24 de setembro de 2003, intitulado Eyless in Iraq, “Cegueira no Iraque”, assegurou que a administração republicana simplesmente destruiu um consagrado modo de operar a política externa dos Estados Unidos, algo que já durava, com amplo sucesso, há mais de meio século.

Desde 1947, a partir da Doutrina Truman, os sucessivos governos americanos, mesmo os de Nixon e de Reagan, sempre procuram atuar nos quadros da política da containment and deterrence, da contenção e da prevenção, contra o seu inimigo, a União Soviética. Naquela posição de enfrentamento com o Mundo Comunista, os Estados Unidos nunca se isolaram, mas sim procuraram o apoio e auxílio da ONU, da OTAN, da OEA, e da OTASE, com o objetivo de envolver o maior número possível de nações no que acreditavam ser “uma causa da humanidade”. A aliança com aquelas agências multilaterais foi fundamental para a vitória final dos Estados Unidos na Guerra Fria. Agora, porém, com a invasão do Iraque, o presidente Bush atirou no ralo toda anterior experiência de meio século de sempre agir em conjunto com os seus aliados.

 

A nova doutrina

A essência da nova doutrina, a Doutrina Bush (*), que substitui a Doutrina Truman de 1947, é antes de tudo militar: abater um provável inimigo, unilateralmente se preciso for, bem antes dele ter uma chance de poder atacar. Ela trocou uma politica que mantinha a paz por meio da prevenção da guerra, por sua contrária. A ideologia hoje predominante no governo norte-americana pretende alcançar a paz através da guerra preventiva.

Esta radical transformação das diretrizes da ação externa norte-americana foi feita pelo presidente e seus conselheiros neocons (neoconservadores), sem alarde, de uma maneira silenciosa, sem propor qualquer discussão ou debate nacional com a sociedade civil sobre tamanha mudança. Bush e seus próximos (Donald Rumsfeld, Dick Cheney Condolezza Rice, Paul Wolvowitz, etc...), simplesmente deram um rodopio drástico no leme da politica externa do país, direcionando-o para o mar revolto e encrespado da guerra, sem levar em consideração a opinião sequer dos seus aliados de antes, como a França ou a Alemanha. Aferrou-se ao unilateralismo nas decisões estratégicas e dele não mais saiu, defendendo teimosamente, contra a opinião de boa parte do mundo, o direito imperial de fazer uma guerra preventiva contra o Iraque, logo após ter invadido o Afeganistão.

(*) Denominada "The National Security Strategy of the United States of America"

 

Síntese da duas doutrinas

Doutrina Truman (1947 – 2001): contenção e prevenção contra o comunismo soviético e, depois, chinês. O govenro americano cercava-se do apoio de instituições multilaterais, tais como a ONU, a OTAN, a OEA, a OTASE, no sentido de manter a paz prevenindo-se contra a guerra, particularmente contra a guerra preventiva.

Doutrina Bush (pós- 2001): luta contra o terrorismo, ou qualquer outro tipo de ameaça, por meio da guerra preventiva. Ação unilateral, imperial, independente dos aliados da OTAN, ou do consentimento da ONU. Estados Unidos é a única superpotência com capacidade de gerenciar o mundo a seu favor. -- Por Voltaire Schilling.

Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/seculo/2003/11/03/001.htm

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