A Política dos Santos

João Paulo II escolhe João XXIII, uma unanimidade, para contrabalançar a beatificação do polêmico Pio IX

Cristiano Dias

 
Felici
Controvérsia: o conservador Pio IX é acusado de intolerância e anti-semitismo Unanimidade: o progressista João XXIII só deixa boas obras

João Paulo II vai presidir uma das cerimônias preferidas de seu longo papado. Neste domingo, dentro das comemorações do Jubileu da Igreja Católica, vai beatificar seus antecessores Pio IX e João XXIII. A beatificação é o último degrau antes da canonização, quando as pessoas são proclamadas santas pela Igreja Católica. Com a solene proclamação dos dois novos beatos, João Paulo confirma um recorde. É o papa da história que mais proclamou beatos (1.052) e santos (475), em 2.000 anos de história do catolicismo. Ao mesmo tempo cria uma confusão que deve render muita polêmica. Se a santidade de João XXIII, o papa bom, é uma unanimidade mesmo entre não católicos, a imagem de Pio IX parece para uma grande parte de fiéis inadequada para ocupar um lugar no altar. Intolerante e irritadiço, o papa que reinou entre 1846 e 1878, o segundo mais longo pontificado da história, foi acusado de humilhar pessoas que o serviam e de perseguir implacavelmente os inimigos. O maior de seus delitos e o que mais deve causar desconforto por ocasião de sua subida ao altar é o comportamento em relação aos judeus. "Estou chocada diante da disposição da Igreja Católica de tornar santo um papa que perpetuou um ato brutal de intolerância", diz a professora Elena Mortara, em Roma.

Elena é sobrinha-neta de Edgardo Mortara. Judeu, Mortara foi batizado quando tinha 6 anos. Estava gravemente doente e uma babá, convencida de que ele ia morrer, decidiu salvar sua alma. O menino não morreu. O episódio chegou ao conhecimento do Vaticano. O papa Pio IX sentiu-se no direito de raptá-lo e criá-lo no cristianismo. Foi o que fez. Mandou a polícia pontifícia arrancar o menino de seus pais. Adotou-o e criou-o no Vaticano. Mortara cresceu e foi ordenado padre católico, mas o episódio causou uma grande indignação no mundo inteiro, principalmente entre os judeus. Esse sentimento, como bem revelam as declarações de Elena Mortara, persiste até hoje.

Pio IX deveria ter sido beatificado em 1985 por João Paulo II, um devoto e admirador seu. Na época, o papa foi desaconselhado a seguir adiante com o processo, considerado "inoportuno" para aquele momento. Retomou-o agora diante da necessidade de encontrar um substituto para Pio XII, outro papa do século XX, a caminho do altar, mas cuja canonização foi agora considerada inoportuna por sua atuação controvertida durante a II Guerra Mundial. Pio XII é acusado de ter sido omisso em relação aos crimes do nazismo. João Paulo II tomou importantes iniciativas para aproximar a Igreja do povo judeu e concordou em substituir Pio XII. Mas não imaginou que sua escolha fosse causar tanta celeuma.

Pio IX e Pio XII, além das acusações de anti-semitismo, têm em comum também o conservadorismo exacerbado. Ambos foram devotos de Nossa Senhora e extremamente intolerantes com os dissidentes. Não é mera coincidência, portanto, que tenham sido escolhidos para se revezarem como o outro lado da moeda de João XXIII, o papa que promoveu a modernização da liturgia e do posicionamento da Igreja Católica no mundo atual. João XXIII é em tudo diferente de Pio IX. Eleito em 1958, aos 77 anos de idade, permaneceu apenas cinco anos à frente da Igreja. Apesar de curto, seu pontificado foi dos mais profícuos. Logo após sua eleição, convocou o Concílio Vaticano II, que promoveu profundas transformações na vida da Igreja. As reformas atingiram desde o modo de vestir dos padres, que não mais foram obrigados a usar batina, até a maneira de a Igreja se relacionar com o mundo. O latim deixou de ser a língua da celebração da missa e os leigos passaram a ter uma participação muito mais ativa na Igreja. O mais importante foi reconhecer que a Igreja fazia parte do mundo moderno e não era uma contraposição a ele, como se apregoava até então. Em vez de erguer barreiras para proteger a Igreja, resolveu abri-la. Promoveu o ecumenismo, a união das igrejas cristãs, e buscou a convivência até com os comunistas.

As posições de João Paulo II, um conservador devoto de Nossa Senhora, parecem muito mais afinadas com as de Pio IX. Filho de camponeses humildes, foi recusado quando tentou alistar-se na Guarda Suíça, a guarda de honra do Vaticano, por sofrer de epilepsia. Mas conseguiu se ordenar padre, fez-se bispo e acabou eleito papa aos 55 anos. Jovem ainda, chegou como uma brisa de renovação para substituir a atuação reacionária de seu predecessor, Gregório XVI. Dele herdou um vasto território que fazia do Vaticano o maior reino na península italiana (a Itália ainda não existia como país) e um movimento para acabar com seu domínio terreno. Dois anos depois de subir ao trono de São Pedro, teve de fugir de Roma disfarçado de padre. Retornou, dois anos mais tarde, completamente mudado. De liberal reformista, transformou-se num reacionário empedernido.

Como João XXIII, Pio IX também convocou um Concílio, o Vaticano I. Deste saiu a proclamação de dois dogmas: o da infalibilidade do papa e o da Imaculada Conceição, duas medidas que contribuíram para isolar a Igreja de outras denominações cristãs. Em seu reinado, Pio IX editou também o Sílabo de Erros, uma compilação de oitenta conceitos com os quais a Igreja Católica não podia concordar. Nesse documento, ele negava o direito dos não católicos de gozar da liberdade de praticar sua religião, condenava os que achavam que a abolição do poder temporal do papa era boa para a Igreja e declarava que o "pontífice romano não podia conciliar-se com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna". A intolerância levou-o a chamar os judeus de cachorros. Mas, como João XXIII, que em 1962 foi eleito o Homem do Ano pela revista Time, Pio IX se tornou também uma figura popular e reconhecida no mundo todo. Muitos viam nele não a encarnação do obscurantismo, mas a resistência ao racionalismo que ameaçava destruir toda crença. Para a Igreja Católica, cada um em seu tempo acabou prestando um grande serviço. Essa é a lógica que explica que pessoas com idéias tão diferentes possam ocupar dentro da mesma Igreja altares um em frente do outro, como santos.

 

O caminho para o altar

AP

Pio XII: mais polêmica


Canonizar papas deveria fazer parte da ordem natural das coisas. Como chefes espirituais da Igreja, teriam de encarnar, por definição, as virtudes cristãs no mais alto grau e servir de exemplo para os demais fiéis. Na verdade, isso não acontece. Em seus 2 000 anos de história, a cátedra de São Pedro já foi ocupada por pessoas desprovidas de qualquer virtude cristã e o Vaticano já foi palco de orgias e devassidão de toda espécie. Dos 264 papas que por lá passaram, apenas 78 se tornaram santos. Destes, 24 se tornaram santos não por terem sido papas, mas por serem mártires, homens que deram a vida em defesa da fé. A grande maioria dos que subiram ao altar viveu no primeiro milênio da Igreja.


Paulo VI: papa moderno

Depois do ano 1000, apenas cinco mereceram a honra da canonização. Um deles é Pio X, que reinou nas primeiras décadas do século XX. Também estão a caminho do altar o predecessor e o sucessor de João XXIII, respectivamente Pio XII e Paulo VI. Embora aponte para o céu, a canonização é um processo humano e terreno. Requer uma longa e tortuosa burocracia e está escorada em razões de ordem política e econômica.

Fonte: http://www2.uol.com.br/veja/060900/p_068.html

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