Pesquisadora da USP Acredita que Terrorismo Atual Repete a Inquisição Católica 

Brasil não está a salvo da xenofobia étnica e religiosa

Sexta, 28 de setembro de 2001, 15h12

A intolerância étnica e religiosa é um fenômeno recorrente na história da humanidade. Dentro ou fora do Brasil, povos imigrantes e grupos religiosos sempre foram perseguidos, quase sempre de forma bastante implacável, ao longo dos tempos.

O poeta açoriano Antero de Quental (1842-1891) definiu o que foi o período da Inquisição para ele: "O fanatismo religioso causou a decadência dos povos insulares." A devassa da Idade Média, patrocinada pela Igreja Católica, assombrou o mundo, assim como as sangrentas Cruzadas para o oriente próximo já haviam feito. A colonização da nova América também teve capítulos de perseguição étnica, basicamente contra índios e negros. Hitler usou elementos religiosos em seus discursos no século XX e, neste início de milênio, o novo terrorismo também levanta a bandeira religiosa. Agora, mesmo que a interpretação não tenha a concordância da maioria dos maometanos, os bárbaros se utilizam dos textos sagrados do Islamismo.

"A Inquisição antecipou em cinco séculos a insanidade racista do século XX", afirma Anita Novinsky, professora do Departamento de História da Universidade de São Paulo. Uma das maiores estudiosas do país do período da Inquisição, a professora, que prepara um grande livro sobre o assunto a ser lançado em dois meses, foi uma das grandes atrações do Simpósio Internacional "(Con)vivênvia e (In)tolerância", que terminou ontem em São Paulo. O evento marcou os 15 anos do Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina (Cedhal). A especialista não tem dúvidas. Para ela, o fanatismo religioso da Inquisição, por exemplo, tem as mesmas características do radicalismo apresentado hoje pelos grupos muçulmanos. "A Inquisição também se autoproclamava Corte de Justiça Santa", lembra a professora. Não é a primeira vez que o termo santo, associado hoje pelos terroristas muçulmanos à guerra, é usado por uma causa nada religiosa. "O fanatismo religioso sempre causou guerras sangrentas na história", diz Anita, em um tom suave de alerta.

Sob a égide da Igreja Católica, conta a historiadora, muitos cidadãos foram perseguidos em vários países do mundo durante a Inquisição. O crime, na maioria das vezes: fugir das obrigações impostas pelos líderes católicos da época. "A grande empresa que controlava todo o processo era a própria Igreja Católica. Tudo dependia da quantidade dos hereges presos." Normalmente, os agentes da Inquisição no dia-a-dia das comunidades eram os próprios vigários, no caso do Brasil representados pelos jesuítas. Enquanto as classes mais pobres eram muitas vezes ignoradas e recebiam penas leves, as famílias de mais posses tinham todos os seus bens confiscados. "Muitas vezes as decisões eram tomadas com base no ouvi dizer que." Segundo os estudos da professora da USP, 1.078 brasileiros foram presos pela Inquisição. Desse total, menos de 30 foram garroteados e depois queimados nas fogueiras da Inquisição.

Na Europa, o terror imposto pelos países ibéricos - os reis de Portugal e Espanha eram os principais incentivadores do Santo Ofício - atingiu também França, Alemanha e Itália. Os condenados no Brasil eram enviados para Lisboa, onde ouviam as suas sentenças. A prisão perpétua e o envio para as galés do rei, aqui no Brasil, eram práticas comuns de punição. "O resultado de todo esse obscurantismo ameaçador pode ser percebido no século XVI. Enquanto os países da Europa entravam na modernidade, a península ibérica permaneceu atrasada." Demoraram alguns séculos para que Portugal e Espanha pudessem se desenvolver como os seus vizinhos da Europa ocidental. Até hoje, em alguns casos, essa igualdade não é total, apesar de outros fatores também contribuírem para isso.

"A fé individual era totalmente proibida na época da Inquisição", afirma Anita. Não havia nenhuma espécie de tolerância por parte dos católicos daquele período. Depois da introdução da prática de queimar os hereges em autos-da-fé no fim do século XII, os papas Inocêncio IV (1243-1254) e Urbano IV (1261-1264) usaram e autorizaram a prática da tortura. A Inquisição terminou os seus santos ofícios apenas no século XVIII. O auge dos inquisidores, quando os autos-da-fé eram revestidos de pompa e circunstância, ocorreu durante os séculos XVI e XVII, principalmente nos países ibéricos, onde a burocracia da Inquisição teve super-estruturas.

A perseguição religiosa voltou ao cenário das discussões mundiais com grande força no século passado. Com a intenção de fazer uma limpeza étnica e religiosa no mundo, Adolf Hitler perseguiu os não brancos de olhos azuis e os judeus. O Holocausto trouxe conseqüências terríveis para os seguidores do judaísmo. O mesmo, a perseguição, ocorreu com os católicos da Armênia, por motivos diferentes, mas com resultados também sangrentos.

Se no período em que os judeus fugiram da Europa eles encontraram um bom refúgio no Brasil, apenas com pequenos problemas localizados, o mesmo não ocorreu no Brasil Colônia. Os chamados cristãos-novos (judeus convertidos à força em Portugal e outros países em 1947), depois de viverem no Éden que era a cidade do Rio de Janeiro no século XVII, sofreram grandes perseguições durante o século XVIII. Totalmente enraizados na sociedade local, bem estabelecidos e com vários cargos importantes na sociedade carioca, os judeus tiveram de se esconder. Era, mais uma vez, o braço forte da Inquisição que batia em suas portas. Um mini-holocausto, em terras verde e amarelas.

No capítulo histórico da Segunda Guerra Mundial, o Brasil registrou, talvez, um dos raros fatos de tolerância negativa, mais uma vez, contra os judeus. Conforme atestam os estudos da professora Maria Luiza Tucci Carneiro, que também esteve no evento encerrado ontem na Universidade de São Paulo, as políticas dos governos Getúlio Vargas e Eurico Gaspar Dutra foram bem complacentes com a entrada e permanência de seguidores do nazismo dentro das fronteiras brasileiras. Segundo ela, até hoje esse assunto é considerado tabu pelos próprios governantes brasileiros. O Brasil, segundo a professora da USP, remava contra a maré no pós-segunda guerra. "Ele era pseudo-humanitário." Segundo os dados coletados por Maria Luiza, 6 mil adeptos do nazismo vieram para a América Latina depois do fim da guerra. Na Argentina, se conseguiu contabilizar a entrada de 200 criminosos de guerra. No Brasil, apesar da falta de estatística, o que se sabe é que os próprios nazistas consideravam o país como um lugar bastante tolerante a eles.

O governo Getúlio Vargas foi um dos mais xenófobos da história do Brasil. Segundo a historiadora Sônia Maria Freitas, que acaba de terminar uma tese de doutorado sobre vários grupos de imigrantes em São Paulo, o regime do Estado Novo (1930-1945) não apenas impôs sérias restrições à entrada de estrangeiros como intensificou a xenofobia no Brasil. "Instalou-se no país um verdadeiro clima de terror e perseguição, a partir de 1939, com o início da Segunda Guerra Mundial e, principalmente, a partir de 1942, com a entrada do Brasil no conflito internacional", explica a pesquisadora, que trabalha no Memorial do Imigrante, localizado na cidade de São Paulo.

Os anos da Segunda Guerra, aqui no Brasil, foram particularmente complicados para aqueles que não tinham passaporte nacional. "Constatamos que a política getulista de perseguição aos imigrantes atingiu também aqueles que não eram oriundos dos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão)." As pesquisas de Sonia mostram uma série de hostilidades contra húngaros, lituanos, ucranianos, russos e poloneses. "Essas políticas colaboraram e muito para o enfraquecimento de traços étnicos ou manifestações culturais desses grupos e de outros", diz a pesquisadora paulista.

Mas Getúlio Vargas não foi o primeiro político brasileiro a criar políticas xenofóbicas em território brasileiro. Na Primeira República, o estado brasileiro também se mostrou bastante intolerante ao imigrante. "Ele tentou barrar a entrada de militantes e de lideranças anarquistas", lembra Sonia. Por causa da forte atuação dos imigrantes espanhóis e italianos nas greves operárias de 1906, 1919 e 1917, o governo passou a exigir dos imigrantes um atestado de bons antecedentes. Era preciso provar que o candidato a vir ao Brasil não era nem grevista nem bolchevista, e que tinha um bom comportamento moral e civil em seus país.

Mesmo na transição entre o período abolicionista e republicano, o governo brasileiro recebeu imigrantes, mas com ressalvas, e por motivos bem definidos. A necessidade de mão-de-obra na lavoura era muito grande. Então, constatam os dados apresentados na tese de Sônia, de 1820 (a escravidão ainda era totalmente permitida) a 1914, o país chegou a receber 4,5 milhões de pessoas. Era o quarto maior contigente de imigrantes do mundo, atrás de Estados Unidos, Canadá e Argentina. Desse total, 80% ficaram no Estado de São Paulo. A maioria deles era italiana, portuguesa, espanhola e japonesa. Outros grupos menos numerosos, porém importantes: austríacos, alemães, sérvios, libaneses, ucranianos, poloneses e russos.

Uma carta apresentada à Assembléia Legislativa da Província de São Paulo, em 18 de janeiro de 1888, escrita pelo burocrata Alfredo d’ Escragnolle Taunay, mostra bem que nem todos eram bem-vindos. "Com effeito, não podia deixar de cauzar-nos verdadeira exultação sabernos que havia sido rejeitada a tentativa da introducção do detestável elemento mongólico chinez n’uma província como a de S. Paulo..." Os chamados "amarelos", ao lado dos negros, não tinham a mesma atenção dispensada aos trabalhadores europeus A imigração naquela época era totalmente privada. Os cafeicultores a patrocinavam por causa das suas produtivas lavouras.

As lutas étnicas e religiosas, veladas - como muitas vezes ocorre no próprio Brasil - ou não, são recorrentes, como mostra a própria história. As imigrações são muitas vezes forçadas e a falta de passado, para um ser humano, talvez seja algo mais agressivo que a morte. No Brasil, explica Sonia Maria Freitas, depois da ditadura militar, que perseguiu comunistas de todas as origens, todos os povos tentaram recriar suas tradições. Muitas vezes eles (a pesquisadora estudou os armênios, chineses, espanhóis, húngaros, italianos, lituanos, okinawanos, russos e ucranianos) mantêm traços culturais já transformados no próprio país de origem. 'Ao contrário do que se propaga, eles não estão tão integrados, aculturados, abrasileirados como se propala.' E, aqui, o termo guerra santa jamais foi invocado por nenhuma das etnias que, pela própria definição biológica, fazem parte de uma mesma raça, a raça humana.

Por mais que possa ser tachada de mero jargão, a frase repetida pela professora Anita Novinsky, em sua apresentação no evento na USP, é mais oportuna do que nunca: "A melhor forma de melhorar o futuro é conhecer o passado."

Fonte: http://www.terra.com.br/noticias/brasil/2001/09/28/063.htm

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