Perigos que Ameaçam o Movimento Leigo - 2: SER UMA COMUNIDADE RESTRITA

Por Edegard Silva Pereira

O autor formou-se em Teologia no Colégio Adventista do Prata, Argentina. É Mestre em Ciências da Religião e Mestre em Comunicação Social. Foi pastor da IASD entre 1965 e 1988. Atualmente dedica-se a realizar palestras em empresas sobre desenvolvimento humano, numa perspectiva cristã.

“Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão ” – Rom. 5:1

Continuamos com nossa reflexão sobre a herança que o movimento leigo recebeu da IASD, e o que ele pode fazer para livra-se do fardo do passado, a fim de não se transformar em mais um filhote, gerado à imagem e semelhança dessa comunidade obscura, punitiva e restrita. Agora é a vez de refletirmos sobre a última dessas características negativas, que significam uma negação da liberdade que conquistamos em Jesus Cristo. (Sobre tal liberdade, veja João 8:31-36; Rom. 3:24; 6:22; 7:6; 8:2 e 21; 2 Cor. 3:17; Gál. 5:1 e 13; 1 Ped. 2:16.)

 

O que é?

Antes de tudo, convém explicar o que é uma igreja ou comunidade restrita: é a que limita a irmandade a essa comunidade, sua agressividade é projetada para fora, geralmente na forma de discriminação e guerra doutrinária, e que nega a seus membros o direito do juízo privado em questões de doutrina. 

A IASD mostra que é uma comunidade restrita em atitudes como as seguintes: só são “irmãos” os adventistas, os demais são rotulados como “infiéis”, “ímpios”, “apostatados”, “pagãos” ou “mundanos”; suas doutrinas são a “verdade” e as doutrinas das outras comunidades são “mentiras”, “enganos”, “falsidades”; é permitido só o matrimônio entre adventistas, até os casamentos com outros cristãos estão proibidos; para trabalhar em suas instituições, só são aceitos adventistas; suas editoras só publicam artigos e livros escritos por adventistas e que expressem as crenças da denominação.

Porque os membros das comunidades restritas acreditam que têm o monopólio da verdade e da virtude, se sentem ”mais” e “melhor” que os outros. Geralmente são pessoas presunçosas, prepotentes e que não respeitam o outro. O que explica a tendência delas para apresentar o corpo de doutrinas submisso à autoridade de suas respectivas igrejas como crenças infalíveis, o único caminho certo, a única alternativa de salvação. Daí que negue o direito de juízo privado em questões de doutrina, que traz consigo a idéia de tolerância e de liberdade religiosa.

 

A origem

A primeira igreja que se transformou em comunidade restrita foi a Igreja Católica. Isso  aconteceu quando, com a intenção de organizar a comunidade cristã, ela criou um sistema de autoridade e formou um conjunto de doutrinas, que deveriam ser aceitos incondicionalmente pelos católicos. Foram passos decisivos no sentido de institucionalizar o cristianismo.

Mas, embora a tarefa de organizar a comunidade cristã fosse necessária, ela trazia consigo graves perigos. Era fácil para a Igreja Católica argüir que Cristo lhe havia confiado sua autoridade para ensinar e governar e que ela possuía a direção do Espírito. Deste ponto foi fácil mover-se para os credos infalíveis, para os infalíveis concílios gerais e, finalmente, para a infalibilidade do papa. Deus —como Ele veio em Cristo para dar-nos vida e tornar-nos livres— deixou de ser a autoridade dos crentes e foi suplantado pela autoridade da igreja. A fé deixou de ser fé em Cristo para ser fé no conjunto de doutrinas submissas à autoridade da igreja. O cristianismo veio a ser, antes de tudo, um conjunto de doutrinas e a igreja passou a interessar-se mais em defender e impor esse conjunto de doutrinas do que com o comunicar o evangelho da graça aos pecadores.

Foi assim que o cristianismo institucionalizado deu origem a um novo formalismo e a um novo legalismo: o corpo de credos e doutrinas forma um novo sistema de leis que conservam as pessoas em escravidão. O cristianismo, que antes era uma palavra de Deus aos homens, uma mensagem do propósito gracioso de Deus, se transformou em uma religião de autoridade, a qual, com seus dogmas e seu sacramentalismo mágico, escraviza mais do que liberta. Pois a religião de autoridade mete seus adeptos numa armadura, através de seu corpo de doutrinas, da qual não poderão escapar. 

Mais tarde, outros grupos, entre eles a IASD, seguiram os passos da Igreja Católica e se tornaram comunidades restritas. Para tal, cada um encontrou seu próprio modo de fazer com que a autoridade da igreja tomasse o lugar de Deus, e o corpo de doutrinas tomasse o lugar da Palavra.

E o corpo de doutrinas é principalmente o resultado da combinação de estas três fontes: 1) a confessional-eclesiástica, isto é, a igreja e seus credos concebidos como resultado de especial orientação divina; 2) a seleção gratuita e deliberada de textos bíblicos, com base na ingenuidade do literalismo bíblico, a fim de justificar os dogmas e as crenças; e 3) a razão, isto é, princípios aceitos são desenvolvidos de maneira lógico-especulativa. Estas formas são o principal motivo das doutrinas não falarem sempre a mesma língua que a Bíblia. É importante notar que um conjunto de doutrinas não é a palavra de Deus em Cristo, é, isto sim, a palavra de uma igreja. 

Concepção dogmática e atitude polêmica andam juntas. A defesa do que cada comunidade restrita considera a “pura doutrina” ou “doutrina verdadeira” se expressa em uma guerra doutrinária sem fim. A IASD pertence a esse grupo de comunidades restritas, no qual destaca-se por sua complexa estrutura de dominação, sua coleção de textos bíblicos que chama “verdade”, e sua agressividade na guerra doutrinária. (Dedico o próximo artigo para falar desta guerra.)

 

A dogmática posta em xeque

Formulações doutrinárias unívocas, como as das comunidades restritas, resultam da ignorância ou negligência, não do conhecimento da Bíblia. 

Em primeiro lugar, verificamos que as Escrituras não estabelecem um corpo de doutrinas metodicamente ordenadas como sendo a “religião de Israel” ou a “religião de Jesus”. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento nunca existiu coisa semelhante. A própria idéia de considerar a religião como um conjunto de crenças é uma abstração criada por mentes sujeitas à dogmática, e que está se revelando muito problemática, em face dos recentes estudos sérios em curso sobre teologia bíblica.

A teologia bíblica de nosso tempo, digna de esse nome, com seu instrumental superior e depois de haver declarado sua independência da dogmática, oferece uma compreensão e uma interpretação total das Escrituras jamais imaginado em outros tempos. Sua dádiva principal não é um sistema de teologia, mas uma análise séria e profunda do texto bíblico, seguida de uma síntese de seu significado, ordenada segundo a própria intenção de cada autor. Ela significa uma recuperação da tarefa real da teologia. Tarefa que empreendeu passando além dos credos e da instituição, colocando a palavra de Deus em Cristo e a fé e a vida que ela desperta como o centro real e a fonte da teologia, para alcançar o centro da mensagem cristã de salvação e ver o que ela significa para nosso pensamento.

Devido à seriedade com que encara o texto bíblico e à qualidade de seus estudos, ela tornou-se a teologia comum de muitas comunidades evangélicas e influenciou de modo significativo à teologia católica. Fez com que a guerra doutrinária perdesse sentido para a maioria das comunidades e os pontos de vista fossem considerados com mais respeito, pois mostrou que eles podem ter elementos de valor numa determinada situação histórica.

Depois que esses estudos foram publicados (com destaque para a Teologia do Antigo Testamento de Gerhard von Rad e a Teologia do Novo Testamento de Leonhard Goppelt) as teologias dogmáticas ou sistemáticas e os comentários do tipo texto por texto viraram peças de museu. E as formulações simplórias, que consistiam em um amontoado de textos que supostamente apoiavam dogmas ou crenças (como os chamados “estudos bíblicos” da IASD), foram para onde deveriam estar: no lixo. Pois todas essas abordagens passam por alto questões fundamentais: Quem escreve? Sob que ângulo escreve? Qual a situação histórica e teológica de quem escreve? Que intenção o orienta? De que concepção depende? Como o que está escrito pode ser aplicado hoje nos sentidos individual e coletivo?

Ao tratar de esclarecer questões como essas, a teologia bíblica contemporânea deixou claro o seguinte: na Bíblia não existe “uma teologia”, como dão a entender as comunidades restritas, mas “teologias” que expressam uma grande diversidade de pontos de vista. Contudo, elas mantêm uma unidade básica. No Novo Testamento, por exemplo, há a teologia de Mateus, a de Marcos, a de Lucas, a de João, a de Paulo, a de Pedro, entre outras. Elas interpretam a fé e a vida cristãs no contexto de uma determinada situação histórica e teológica. O Antigo Testamento é ainda mais complexo quanto às concepções das quais dependem seus autores. Obviamente, ao apresentar uma solução doutrinária unívoca e petrificada, as comunidades restritas ignoram a diversidade de formulações teológicas contidas na Bíblia, as quais tinham a intenção de resolver problemas que surgiram em determinadas situações históricas do passado.

Em segundo lugar, verificamos que, no Novo Testamento, teologia é o esforço de compreender e interpretar, em determinada situação histórica, a fé e a vida que a palavra de Deus em Cristo desperta, e ver o que elas significam para nosso pensamento de Deus, do mundo, do homem e do caminho da salvação. Portanto, a teologia se mostra ali como uma tarefa contínua: está sempre se formulando de novo, sem jamais alterar a essência de seu objeto, na medida em que surgem novos problemas e o padrão de vida ou a situação histórica muda. Por exemplo, no Novo Testamento há teologias dirigidas às comunidades de origem judaica (como o Evangelho de Mateus e a Epístola de Tiago), que depois de aceitarem a Jesus, continuaram observado zelosamente as normas do judaísmo; e teologias dirigidas às comunidades de origem gentílica (como o Evangelho de João, e as epístolas de Paulo aos Romanos, Coríntios e Gálatas), livres das normas do judaísmo. Todas essas teologias foram formuladas para enfrentar problemas específicos das comunidades ou pessoas para as quais foram escritas.

Mas para as comunidades restritas, teologia quer dizer um sistema de doutrina que expressa crenças de certa religião ou grupo. A doutrina dessas comunidades está petrificada. Tudo já foi pensado, definido e estabelecido. Por isso, não pensam e não deixam pensar. As únicas alternativas que elas oferecem é aceitar a doutrina como ela é apresentada ou sofrer as punições previstas. Nessas comunidades, a teologia deixou de ser, como é na Bíblia, uma ferramenta valiosa de compreensão e interpretação da fé e da vida cristã, face às novas situações que as comunidades enfrentam em um mundo em constante transformação e formado por sociedades com padrões de vida diferentes.

Em terceiro lugar, verificamos que os sinais para orientar-nos no caminho da salvação já nos foram dados nas exigências (ou instruções) de Jesus. Nelas, nosso Senhor expressa claramente o que Deus espera de nós e o que nos convém agora. E a interpretação da fé e da vida que a palavra de Deus em Cristo desperta também já foi feita pelos autores do Novo Testamento, principalmente por Paulo.

Qual seria, então, a tarefa da igreja nos dias de hoje?

 

A tarefa evangélica do movimento leigo

A tarefa de igreja não é elaborar um corpo de doutrinas, mas ver como a “sã doutrina” da graça, da fé e da vida em amor, expressada na palavra de Deus em Cristo, pode ser compreendida e interpretada na situação histórica atual da comunidade. Se o movimento leigo fizer isso, estará cumprindo a missão dada por Cristo à igreja: ser um arauto do Evangelho. Lembremos o seguinte: o que dizer já foi dito pelo Senhor e interpretado por seus apóstolos; como dizer isso é algo que sempre teremos que adequar à situação histórica, aos novos tempos.

A fim de ser um arauto de Cristo, e não uma copia da IASD, sugiro ao movimento leigo dar os seguintes passos, à luz da palavra de Deus em Cristo:

1)     Ser uma religião do espírito, não uma religião de autoridade.

A religião de autoridade é um sistema institucional organizado, que sustenta que não há garantia de participação na graça de Deus fora da operação desse sistema e de seu corpo de doutrinas. É a religião que substituiu a autoridade de Deus pela autoridade da igreja, e a fé em Cristo pela fé em seu corpo de doutrinas.

A religião do espírito, como a enfatizou Jesus, não é Deus subjugando o homem com regras e doutrinas, mas Deus libertando-o de tudo aquilo que o oprime e corrompe sua vida. A igreja e as doutrinas não são no Novo Testamento uma autoridade externa para os seguidores de Jesus Cristo. Elas existem para nos servir e não para nos governar; para nos trazer Deus e sua verdade e não para tomarem o lugar de Deus. Nossa autoridade é Deus, e Deus como veio em Cristo, para dar-nos vida e tornar-nos livres.

2) Apoiar seu pensamento e ação nos quatro pilares da religião do espírito ensinada por Jesus e por Paulo: graça, fé, amor e santificação.

Graça é o coração da teologia cristã —isto é, de sua doutrina de Deus— não é Deus subjugando o homem por meio de um sistema institucional, mas Deus salvando o homem por puro amor. A graça vem daquela comunhão salvadora da pessoa com Deus e por meio dessa comunhão. Paulo mostra a relação entre graça e fé: "pela graça sois salvos, mediante a fé” (Efe.2:8)

Fé, quando corretamente entendida, é o coração da religião pessoal, isto é, de nossa relação com Deus. Corretamente entendida, a fé expressa o modo por que operam juntamente Deus e o homem. Tem sido um engano da teologia separar Deus e o homem, e ver a soberania de Deus e sua absoluta e determinante vontade exercendo-se sobre um homem que é um boneco. Na Bíblia não há homem sem Deus, nem Deus sem o homem. Eles são apresentados sempre como parceiros co-responsáveis. Paulo fala da relação entre fé a amor: “fé que atua pelo amor” (Gál. 5:6).

Amor —o agape cristão— é básico da ética cristã, embora esse amor deva ser corretamente aprendido. O novo mandamento de Jesus é “Amai-vos uns aos outros assim como eu vos amei” (João 13:34), ou seja, com um amor ilimitado. No ensino de Jesus, graça e fé expressam uma nova relação direta com Deus, e o amor, como Ele o viveu, expressa uma nova relação com o próximo e uma nova relação social dos discípulos entre si, baseada no serviço como forma de renuncia ao poder em favor do amor (Mat. 20:25-28).

Santificação é o resultado da graça e da fé. Mas tem que ser santificação da vida diária, da vida comum das pessoas, e não por pertencer a uma ordem religiosa ou exercer um cargo eclesiástico. Ela se mostra como vida em amor como o de Jesus. Esse amor ilimitado é a prova de que estamos no caminho da salvação. Sem ele nada somos diante de Deus (1 Cor. 13: 1-3).

A santificação é fundamental, porque o ser humano não somente necessita ser perdoado e reconciliado com Deus; ele também precisa receber o poder de uma nova vida para transformar-se no espírito de Cristo. E aqui entra a doutrina do Espírito, não como parte da especulação da Trindade, mas como vital à carreira cristã. Pois o amor é fruto do Espírito (Gál. 5:22). O Evangelho não somente significa, para nós, graça, mas também graça em nós; não significa simplesmente misericórdia para com o passado, mas ainda a promessa e o poder de uma nova vida (Rom. 6:22).

As armas que temos para vencer a tríade comunidade obscura, comunidade punitiva e comunidade restrita nos são fornecidas por Jesus em outra tríade: graça, fé e amor. Elas nos foram dadas não como doutrinas para combater doutrinas, mas como padrão de vida santificada, cuja luz contrasta com a obscuridade da primeira tríade. O que decide a vitória é esse contraste e não a guerra doutrinária. É vivendo e anunciando a tríade de Jesus que somos “a luz do mundo” e “o sal da terra”. 

3) Que sua teologia conquiste a independência da dogmática.

Ou seja, em vez de estabelecer um conjunto de doutrinas submissas à autoridade eclesiástica, deve ter um conceito de teologia que expresse o esforço contínuo da comunidade para compreender a significação de sua fé e para estabelecer relação entre ela e a vida cristã, assim como seu conhecimento total.  

4) Que seu culto seja  uma oferenda do homem a Deus e também uma recepção de Deus por parte do homem.

Só encontraremos o gênio real do culto quando o usarmos para nos entregar a Deus. Não encontraremos esse gênio se o culto é usado mais (como faz a IASD) para promover atividades próprias e despejar goela abaixo dos participantes uma tenaz e incansável propaganda denominacional.

5) Ser uma comunidade guiada pelo ideal de criar a fraternidade universal de todo o povo de Cristo. E isto significa não restringir a fraternidade à própria comunidade. Não quer dizer ecumenismo no sentido de unir as igrejas sob um único comando, mas mostrar que a suprema fraternidade humana é a de fé e amor na igreja que Cristo está constantemente criando por meio de seu Espírito. É a consciência de que a comunidade cristã é o corpo de Cristo através do mundo. A principal tarefa da comunidade é reconduzir as pessoas a Deus, isto é, para o que é mais alto em poder e bondade, para Aquele em que os homens encontram ao mesmo tempo auxilio para suas necessidades, direção para suas vidas e se tornam “um em Cristo” (Gál. 3:27 e 28).

Se o movimento leigo se transforma em uma comunidade criadora de fraternidade, ele servirá bem à nossa geração despedaçada por seus antagonismos.

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