Perigos que Ameaçam o Movimento Leigo - 3: A GUERRA DOUTRINÁRIA

Por Edegard Silva Pereira

O autor formou-se em Teologia no Colégio Adventista do Prata, Argentina. É Mestre em Ciências da Religião e Mestre em Comunicação Social. Foi pastor da IASD entre 1965 e 1988. Atualmente dedica-se a realizar palestras em empresas sobre desenvolvimento humano, numa perspectiva cristã.

“... transformai-vos pela renovação de vossa mente” – Rom. 12:2.

Antes de abordar nosso tema, retomemos os critérios e conceitos que orientam nossa reflexão sobre a herança que o movimento leigo recebeu da IASD. Herança da qual precisa livrar-se para não ter os mesmos problemas, nem causar as mesmas mazelas em seus membros, que a IASD.

 

Critérios e conceitos

No artigo anterior vimos que uma igreja ou comunidade restrita, como a IASD, é a que limita a irmandade a essa comunidade, sua agressividade é projetada para fora, geralmente na forma de discriminação e guerra doutrinária, e que nega a seus membros o direito de juízo privado em questões de doutrina. Também vimos que as comunidades restritas são expressões da religião de autoridade, cuja antítese é a religião do espírito ensinada por Jesus e Paulo.

Para a religião de autoridade o primordial é a unidade de organização, isto é, a unidade externa. Apoiada em seu sistema institucional e doutrinário, faz constantes esforços para a imposição da uniformidade religiosa à custa de medidas repressivas, as quais são tanto mais duras quanto mais radicais são as tendências autoritárias da comunidade. Em muitos casos, essas medidas geram um efeito oposto ao esperado: em vez de dissuadir grupos dissidentes, os estimula a seguirem por outro caminho, e a comunidade se parte em pedaços.

Para a religião do espírito, o primordial é a unidade de fé, isto é, a unidade interior. A unidade de organização é secundária. Pois ninguém se torna cristão pelo fato de adotar um conjunto de doutrinas ou forçá-lo em moldes rígidos de autoridade, e sim por passar por uma experiência transformadora, resultante do relacionamento com o Cristo vivo.

Jesus proclamou uma religião interior de libertação das exterioridades, cerimoniais e autoritarismos da religião tradicional, não só judaica, mas também gentílica. Para Paulo, o apóstolo que melhor entendeu o ensino de Jesus, a salvação era concedida pela graça de Deus àqueles que pela fé viviam em amor e confessavam que Cristo, a quem Deus levantou dentre os mortos, é Senhor. Nesta forma de religião, a salvação nunca foi e nunca será concedida por simplesmente pertencer a uma instituição religiosa e adotar suas doutrinas. O que decide a salvação e tornar-se um com Cristo, seguindo suas instruções (ou exigências).

Tanto para Jesus quanto para Paulo, a aceitação desta boa nova não significa converter a liberdade em licença, em isenção dos deveres e obrigações pessoais e sociais. Há exigências da graça que devem ser cumpridas: as exigências de Jesus, as quais expressam o que Deus espera de nós e o que nos convêm agora. Caso contrário, as pessoas se tornarão escravos do egoísmo, da carne e de seus apetites, ameaçando assim a própria existência da religião que lhes garante a liberdade. 

 

A guerra doutrinária

As causas mais comuns da guerra doutrinária entre comunidades restritas são: a tendência de cada uma de ser diferente das outras (o que cada uma justifica apresentando seu sistema de autoridade e doutrina como “mais” e “melhor”); manter uma tradição histórica; defender a identidade denominacional e seus pontos de vista; a falta de habilidade, que descobrimos em Jesus, de coordenar os aspectos contraditórios de uma verdade; e conservar a estrutura religiosa, a qual, além de prover o sustento de muitas pessoas, também serve para que elas realizem seus desejos de status e poder. E principalmente porque o universo das doutrinas é dominado pelo conflito. Concepção dogmática e atitude polêmica andam juntas. Sendo que nenhum conjunto de doutrina é totalmente satisfatório, há sempre uma ou outra área que precisa de ulterior investigação e esclarecimento. Não há corpo de doutrina que não se despedace quando examinado em detalhes à luz da palavra de Deus em Cristo.

Na formulação de seu conjunto de doutrinas, a IASD seguiu a linha teológica de Calvino: autoritária, legalista, lógica, dogmática e fundada no literalismo bíblico. Calvino considerava todas as partes da Bíblia como sendo de igual em valor. A maior parte de seus textos ele os tirou do Velho Testamento. O Decálogo, e não o ensino de Jesus (a palavra de Deus em Cristo), foi o centro de sua crença, o que acentua os pendores naturais das pessoas para o legalismo. Isto explica porque a ênfase principal da IASD, assim como na teologia de Calvino, recai na moralidade que consiste na guarda dos mandamentos, numa série de “Tu não farás...”, e numa tendência dominadora sobre seus seguidores, de modo que a palavra do intérprete seja aceita como a Palavra de Deus.

Uma caraterística da guerra doutrinaria é que nela se fala uma língua que não é a mesma da palavra de Deus em Cristo. Se todo o cristão falasse a mesma língua de Jesus não haveria guerra doutrinária. Vejamos alguns exemplos.

·         Jesus diz: “Eu sou o caminho, e a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14:6). Mas a IASD fala outra língua a fim de assumir o lugar de Jesus Cristo. Ela afirma ser o único caminho, porquanto não há garantia de participação na graça de Deus fora da operação de seu sistema; que suas doutrinas são a verdade; que seu padrão de vida —uma versão do modo de vida norte-americano— é a vida que devemos viver.

·         Quando a IASD põe em pé de igualdade todas as partes da Bíblia, fala uma língua que não é a dos autores do Novo Testamento, os quais consideram a palavra de Deus em Cristo como a de mais valor. A Epístola aos Hebreus, por exemplo, demonstra que a palavra de Deus em Cristo é a definitiva e superior, pois foi proferida pelo Filho, que é superior a tudo o que pertence à Antiga Aliança.

·         Segundo a doutrina adventista do santuário e do juízo final, a salvação já não é, como no Evangelho, a vida de Deus e com Deus, infundida em toda nossa existência neste mundo pelo Espírito, mas o resultado de um ato forense, pelo qual uma dívida se resgata, ou uma punição se cancela. A linguagem forense, não a da Bíblia, aparece em expressões como “juízo investigativo”.

·         Aliás, o conjunto de doutrinas da IASD é o melhor exemplo de se falar uma língua que não é a mesma da Palavra, já que consiste em algo que não existe e nunca existiu nas Escrituras: um corpo de doutrinas metodicamente ordenadas e submissas à autoridade da igreja como sendo a “religião de Jesus”. Suas caraterísticas —autoritário, legalista, lógico e dogmático— também são estranhas à palavra de Deus em Cristo.

No Evangelho, a salvação é o resultado de seguir a Jesus, e não de seguir uma instituição religiosa e suas crenças. Portanto, o que o corpo de doutrinas da IASD, ou de qualquer outra comunidade restrita, nos oferece são “certezas incertas”. 

Desde seu surgimento, a IASD, cuja pretensão ao absoluto a faz sentir-se como a detentora do monopólio da verdade e da virtude, tem participado intensamente da guerra doutrinaria, projetando sua agressividade para fora, expressando-a também como discriminação dos não adventistas, incluso dos cristãos de outras comunidades, unicamente pelo fato de terem pontos de vista diferentes dos que ela impõe autoritariamente como sendo crenças infalíveis. No próximo artigo verificaremos que tal agressividade é outro aspecto em que a IASD não fala a mesma língua que o Evangelho, a palavra de Deus em Cristo. A seguir nos ocuparemos de sua atitude intolerante a pontos de vista diferentes.

 

Pontos de vista

No artigo anterior vimos que na Bíblia não existe “uma teologia”, como dão a entender as comunidades restritas, mas “teologias” que expressam uma grande diversidade de pontos de vista, ao mesmo tempo em que mantêm uma unidade básica. Agora vou dar outros exemplos dessa diversidade. Eclesiastes expressa um ponto de vista negativo da existência: “Tudo é vaidade”, com o qual contrasta a visão otimista dos Salmos. Os apocalipses judaicos, como Daniel, têm uma visão pessimista da história: O mundo está ficando cada vez pior e em breve Deus vai destruí-lo. Já o apocalipse cristão de João vê a história, após o evento Cristo, como uma marcha para o que é totalmente novo e melhor. A escatologia dos profetas é diferente da escatologia dos apocalipses. O Novo Testamento apresenta cristologias fundadas em concepções diferentes: para Mateus, Jesus Cristo efetua a salvação porque Ele cumpre as profecias; para Paulo, porque Ele é o kyrios (Senhor); e para Hebreus, porque Ele é o archiereus (Sumo Sacerdote).

Se você acredita que Deus inspirou as Escrituras, então tem que aceitar, à luz de fatos como os mencionados anteriormente, que Deus apresenta diversos pontos de vista sobre seu propósito redentor. A prova mais contundente disso é que o Novo Testamento nos oferece quatro evangelhos em vez de um só, cada um apresentando a atividade de Jesus desde um ângulo diferente.

Penso que assim é pelas seguintes razões:

·         Primeiro, porque Deus é o criador da diversidade, na qual revela seu poder criador. Um bom exemplo disso é a vida. O “sopro de Deus” não adotou uma única forma, mas uma grande diversidade de formas; e a diversidade é tal, que não existem dois indivíduos iguais.

·         Segundo, porque Deus é totalmente livre para usar seus recursos infinitos e inesgotáveis, Ele se vale da multipluralidade de meios e de soluções. (Veja um exemplo dado por Jesus em Mat. 3:9.)

·         Terceiro, porque não existe um único tipo de inteligência, nem único modo de pensar, mas diversos, como o mítico, o teológico, o filosófico e o científico. Ou seja, Deus dotou o homem com diversos tipos de inteligência e com a capacidade de pensar de várias formas.

·         Quarto, tampouco existe um único modo de ver. O homem pode ver as pessoas e as coisas de diversas maneiras, desde vários ângulos, e atribuir-lhes significados diferentes. Por exemplo, um governante tem um significado para um correligionário e outro significado distinto para um membro da oposição; uma flor possui significados diferentes para um botânico, para um jardineiro, para uma mulher ou para um poeta. E assim é porque os modos diferentes de ver e interpretar são próprios da natureza humana.

Tudo isso é algo positivo: os diversos modos de pensar exploram todos os pontos de vista possíveis, enriquecendo o conhecimento humano, ajudando o homem a ter uma percepção mais abrangente da realidade. Portanto, a diversidade de pontos de vista deveria ser aceita, como fazem as pessoas razoáveis, como algo natural e até salutar.

Soluções unívocas são típicas de sistemas autoritários, e não indicam, de modo algum, o caminho certo. Resultam da ignorância, não do conhecimento de como Deus age e da natureza humana. Não vêem a diversidade de cultos como a diversidade de meios de comunhão com Deus. Felizmente está se tornando comum entre os cristãos modernos aceitar que Deus permite que existam diversos ramos da igreja para atender a diversidade humana e tornar possível a liberdade conquistada para nós por Jesus Cristo.

Expressões como a de Efésios 4:6, “Há um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos”, levaram à busca, em nossos dias, da unidade da igreja numa fraternidade universal que respeite a diversidade de meios de comunhão com Deus e os pontos de vista coerentes com a essência do Evangelho. Atitude que tornou sem sentido a guerra doutrinária. Paralelo a esse esforço louvável há um movimento ecumênico autoritário, com o qual não concordo, que busca unir a igreja numa única instituição, na qual seria inevitável a submissão das comunidades menores às comunidades maiores, o que facilitaria a imposição de soluções unívocas.

Para que a absurda guerra doutrinária tenha fim, é preciso compreender que a verdade salvadora é Jesus Cristo, e não doutrinas ou pontos de vista de instituições religiosas. Se bem doutrinas e pontos de vista tenham valor para as comunidades, eles não são a coisa mais importante. Contudo, a fraternidade e a liberdade cristãs devem levar-nos a respeitá-los, desde que não neguem a verdade salvadora que é Jesus Cristo. 

Um perigo que ameaça o movimento leigo vem  das pessoas que têm a tendência de impor seus pontos de vista, os quais expressam experiências limitadoras, e de serem intolerantes com os pontos de vista alheios. Tais pessoas não contribuem para construir um movimento que realize a obra de Deus. Pelo contrário, acabam destruindo o que outros querem construir. Elas precisam transformar-se pela renovação de sua mente. Em vez de considerar os pontos de vista de outros como uma ameaça e combatê-los, precisam aprender a ouvi-los respeitosamente e descobrir se eles têm algum aspecto positivo que as ajude a ampliar seu campo de visão.

 

A Trindade

A doutrina da Trindade começou a ser desenvolvida por Tertuliano, cuja atividade literária restringiu-se aproximadamente ao período entre os anos 195 e 220. Esta doutrina, condicionada pelo conflito com os gnósticos (gnosticismo é corrente filosófico-religiosa anterior ao cristianismo), e as especulações sobre as duas naturezas de Cristo ocupam um lugar de destaque na teologia desse “pai eclesiástico”. Suas formulações serviram de base para fórmulas trinitárias e a cristologia que a igreja aceitou posteriormente. Até os dias de hoje persiste a tendência de algumas pessoas de querer elucidar a estrutura interna da divindade, a natureza de Cristo e a natureza do Espírito. Tendência que não tem sentido, uma vez que essas coisas se não exigem para a  salvação.

O que é central e necessário à salvação aparece no Novo Testamento, que nada sabe de naturezas, substâncias e hipóstases e que não procura analisar a essência íntima de Deus. O Novo Testamento está certo destas três coisas que são vitais para a fé e a vida cristãs: 1)  Temos um Deus vivo e poderoso, um Deus de santidade, graça e propósito redentor. 2) Esse Deus nós o conhecemos em Cristo. Em Cristo o próprio Deus estava presente para nossa salvação. Em Cristo nós conhecemos a Deus e seu propósito e vemos a luz do conhecimento de sua glória. 3) Esse único Deus, pelo Espírito, opera em nós, cria sua igreja e nos transforma segundo a semelhança de seu Filho.

Creio que as seguintes palavras de Lutero e de Melanchthon, sobre as naturezas de Cristo, são válidas para todas as especulações sobre a essência íntima da divindade.

Porque Cristo não é chamado Cristo por ter duas naturezas. Que interesse tem para mim semelhante coisa? Ele traz este nome glorioso e confortador em razão do ofício e obra que tomou a seu cargo. Isto lhe confere o nome. Que ele seja Deus e homem por natureza — isto ele possui para si mesmo; mas que ele use de seu ofício para este fim e derrame seu amor e se torne meu Salvador e Redentor — isto é para meu conforto e meu bem. (Lutero.)

Isto é o que significa conhecer a Cristo: conhecer seus benefícios e não contemplar suas naturezas ou os modos de sua Encarnação. (Melanchthon.)

Passemos a uma abordagem moderna da questão, que decorre das descobertas dos estudos críticos contemporâneos sobre o conhecimento (epistemologia) de Karl Popper, Thomas Kuhn, Imre Lakatos, Paul Feyerabend e Edgar Morin, e que aplicamos ao âmbito teológico.

A pretensão ao absoluto, própria das criaturas que pensam que podem conhecer e explicar tudo, as leva a concentrar a própria atenção em questões, amiúde não analisáveis e imprevisíveis, que excedem o âmbito racional-teológico, e passam para o campo da especulação.

Isso acontece quando elas tomam decisões sobre questões que, em princípio, são inexcedíveis, que estão além do que foi revelado na Palavra. Perguntar-se, por exemplo, como é a essência íntima da divindade e quais são as naturezas de Cristo, são problemas que permanecem inexcedíveis. Que fique claro: não que não haja hipóteses ou explicações. Mas estas de nada adiantam. De um lado, nos iludem de que nos fizeram compreender a realidade, e, de outro, nos afastam de nosso problema fundamental (o de não saber) piorando, de fato, nossa capacidade de conhecimento de Deus no sentido bíblico.

O que distingue o sábio do ignorante é o fato de que o primeiro confessa imediatamente a própria ignorância, pois está ciente dos limites do conhecimento humano. Lembremos a clássica afirmação de Sócrates “Sei que não sei”. Afirmando “Não sabia que não sabia” Heinz von Foerster levanta a questão da ignorância de segundo grau, do ponto cego: uma região na qual o ser humano não vê sem saber que não vê, e que limita sua visão a certos aspectos da realidade, impedindo-o de enxergar todo o resto.

É o que Paulo expressa, com outras palavras, em 1 Cor. 13:12 e 8:1-3:

Porque, agora, vemos como em espelho, obscuramente; então [quando vier o que é perfeito], conhecerei como também sou conhecido.

O saber ensoberbece, mas o amor edifica. Se alguém julga saber alguma coisa, com efeito, não aprendeu ainda como convêm saber. Mas se alguém ama a Deus, esse é conhecido por ele.

Nas Escrituras conhecer não significa somente saber o que alguém é ou faz: é comprometer-se, engajar-se e ligar-se com esse alguém por uma vontade comum. No caso do conhecimento de Deus é o reconhecimento obediente da obra divina. O homem só pode conhecer a Deus porque Deus o conheceu primeiro, ligando-se a ele (Gál. 4:9). O conhecimento de Deus provém do ato da fé na revelação histórica de Deus em Jesus Cristo. Fé e conhecimento promovem-se mutuamente, sem que jamais o conhecimento possa emancipar-se da fé. O conhecimento que importa agora para a salvação não é o conhecimento intelectual sobre Deus (resultante de especulações sobre a essência íntima da divindade), mas o que resulta da fé que opera por amor, como é expresso em João 17:21 — os que têm fé verdadeira se comprometem, se engajam e se ligam uns aos outros, a Cristo e ao Pai por uma vontade comum, do mesmo modo como Cristo está unido ao Pai por uma vontade comum.

Por tudo isso, concluímos que as especulações sobre a essência íntima da divindade, as naturezas de Cristo e a natureza do Espírito Santo são manifestações da soberba humana.

Não haveria a absurda guerra doutrinária se cada cristão adota-se a seguinte conduta em relação a uma pessoa que tem pontos de vista diferentes: Deus que está em mim não pode ser contra Deus que está em você. Portanto, respeito a diversidade de formas de pensamento através das quais Ele se manifesta em nós...

 

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