Perigos que Ameaçam o Movimento Leigo - 4: DISCRIMINAÇÃO

Por Edegard Silva Pereira

O autor formou-se em Teologia no Colégio Adventista do Prata, Argentina. É Mestre em Ciências da Religião e Mestre em Comunicação Social. Foi pastor da IASD entre 1965 e 1988. Atualmente dedica-se a realizar palestras em empresas sobre desenvolvimento humano, numa perspectiva cristã.

“Há um só Deus e Pai de todos, o qual é sobre todos, age por meio de todos e está em todos.” - Efé. 4:6.

Neste artigo abordamos outro aspecto da comunidade restrita: a discriminação das pessoas que não pertencem à comunidade. Lembremos alguns exemplos. Os que pertencem à comunidade são “irmãos”, os que não, são “mundanos”, “pagãos”, “infiéis”, “ímpios”, “apostatados”. As doutrinas da comunidade são “verdades”, as das outras, são “erros”, “mentiras”. Casamentos e trabalho nas instituições da comunidade, entre outros, estão restritos aos membros. Ou seja, a comunidade restrita age como se fosse a detentora do monopólio da verdade e da virtude. Então ela cria dois mundos imaginários e opostos: um “bom” para si e outro “mau” para os demais. Quando usamos esses rótulos para classificar as pessoas, é porque não estamos vendo nelas seres humanos, criaturas de Deus, mas abstrações.

A IASD, assim como a sociedade secular, nos oferece estereótipos, preconceitos e categorias abstratas, frutos de conjeturas disciplinadas, para classificar as pessoas e coisas, separando-as em dois mundos opostos. Os estudos sobre o conhecimento e o comportamento humano consideram a estereotipagem e o preconceito como uma avaliação defeituosa, porque são gratuitos, incompletos, contém uma certa dose de informações falsas e conferem características fixas às pessoas e coisas, quando, na verdade, estas são caracterizadas por variáveis que surgem e desaparecem. Empregar estereótipos e preconceitos para formar categorias abstratas significa pré-julgar as pessoas e coisas e deixar-se enganar por essas atribuições. Tal atitude não resiste quando confrontada com a palavra de Deus em Cristo.

 

 

A visão renovadora

 

Numa visão (Atos 10:9-17, 28, 29 e o capítulo 11) Pedro foi instruído pelo Espírito Santo a não discriminar os não judeus, considerando-os imundos, comuns ou profanos, segundo os estereótipos do judaísmo. Para ser apóstolo do Glorificado, Pedro tinha que abandonar a discriminação e superar a segregação imposta pelo judaísmo racista. Até esse momento, ele não tinha percebido que Jesus já havia derrubado por terra a distinção que o judaísmo fazia entre dois mundos —o santo e o profano, o puro e o imundo— quando ensinou que tal distinção não tinha sentido, porque tudo é criação de Deus; e que, em suas dádivas generosas para o sustento da vida, o Pai celestial não discrimina as pessoas (Mat. 5:45).

Pedro tampouco havia compreendido o motivo pelo qual Jesus não participava dos ritos de purificação destinados a eliminar a contaminação causada pelo contato com os não judeus (Mar. 7:1-23), isto é, que Ele exigia a pureza total proveniente do interior santificado (Mat. 5:21-48). Portanto dispensava totalmente a pureza exterior adquirida na formalidade dos ritos, na seleção de alimentos ou no cumprimento de outras normas da religião. Pois, conforme havia revelado publicamente, o resultado do zelo dos fariseus pelas formas externas de purificação era uma repugnante hipocrisia.

Os cristãos que discriminam hoje as pessoas ainda não perceberam que a religião do espírito ensinada por Jesus é uma visão renovadora de Deus, do homem, da vida e do mundo, a qual exige arrependimento, isto é, o abandono completo de tudo o que havia antes, a fim de criar uma nova humanidade, livre das barreiras que segregam as pessoas e geram uma guerra constante de todos contra todos. É claro, para que a visão dada a Pedro tenha sentido para nós, temos que atualiza-la, substituindo os estereótipos “imundo”, “comum” e “profano” pelos que usamos hoje, que não são poucos, tanto no âmbito religioso quanto no âmbito social.

 

 

A relação sã com o próximo

 

É importante notar que as exigências de Jesus visam uma nova relação direta com Deus, uma nova relação com o próximo e uma nova relação social dos discípulos entre si. São relações sãs, porque estão livres da força destruidora do ego, que inspira os indivíduos e as comunidades a se sentirem “mais” e “melhores” que seus semelhantes. Sobre tais relações, o leitor encontrará um estudo mais detalhado em meu trabalho As Exigências de Jesus.

Aqui me limito a destacar que, no ensino de Jesus, a vida comparece na base da fraternidade humana, consumando uma linha de pensamento que começa nos primeiros capítulos do Gênesis: a vida que da sustentação a nosso ser não vem de nós; sem a vida que vem de Deus somos nada e nada podemos; quanto à vida, dependemos por completo de Deus; e todos participamos de uma única vida cuja fonte é Deus. Jesus transforma estas concepções em uma exigência total que a tudo sobrepuja, e que Leonhard Goppelt a expressa assim: “Temos que agir, sempre e em toda parte, de tal maneira que tornemos possível a vida no sentido de Deus”. 

Vista na perspectiva dessas concepções, a discriminação aparece como uma atitude muito grave. É um julgamento e uma condenação da vida, que atinge não só às pessoas discriminadas, mas também a Deus que está presente em todos através da vida. É um julgamento e uma condenação que se voltam contra quem discrimina, porquanto a vida que está nele e a mesma que ele está julgando e condenando no outro. Enfim, a discriminação é uma recusa de dar à vida o sentido de Deus. Por isso, nosso Senhor exige que seus seguidores não julguem e não condenem as pessoas (Mat. 7:1 e 2; Luc. 6:37; ver também Rom. 2:1); que seu perdão e amor sejam ilimitados (João 13:34 e 35; Mat. 5:44; Luc. 17:4); e afirma que o que fazemos a outros, o fazemos ao próprio Rei do universo, ao qual teremos que dar conta, finalmente, de nossos atos (Mat. 25:34-45). Note-se que nesta passagem, o Senhor usa como padrão do grande julgamento nossa atitude para com as pessoas mais discriminadas da sociedade: os famintos, os maltrapilhos, os enfermos, os forasteiros e os prisioneiros. 

Apoiado nas mesmas concepções de Jesus, Paulo afirma que entre os cristãos “não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto, nem homem nem mulher” (isto é, não pode haver discriminação); porque todos são um em Cristo (Gál. 3:27 e 28); e que o Deus único e Pai de todos, “é sobre todos, age por meio de todos e está em todos” (Efés. 4:6). (Creio que estas expressões paulinas deixam a porta aberta para que as mulheres exerçam o ministério evangélico em  igualdade com os homens. Pois elas tornam sem sentido a discriminação da mulher que acontece há muito tempo nas sociedades patriarcais.)

Discriminar os membros de outras comunidades cristãs é uma atitude ainda mais grave, pois significa, além do já visto, reduzir a obra de Deus à pobreza de nossos preconceitos. Quem somos nós para assumir a prerrogativa de dizer: este movimento vem de Deus e este não? Quem somos nós para assumir o lugar do Juiz escatológico e dizer: este é “peixe” bom e este é “peixe” podre? Cometemos graves deslizes quando acreditamos que Deus só age através de nós e limitamos sua obra a nossa comunidade particular; pois negamos a verdade de que Ele, em sua total liberdade, “age por meio de todos”, valendo-se da multipluralidade de soluções, conforme seus recursos infinitos e inesgotáveis. Os que discriminam são aqueles que seguem os senhores das comunidades restritas, e não a Jesus que era “manso e humilde de coração”, que não veio para condenar, mas para salvar e que, por isso mesmo, morreu por todos.

Admiro a atitude de João Wesley. Ele escreveu em seu Diário: “O que distingue um metodista não são suas opiniões, quaisquer que sejam. Que concorde com este ou aquele esquema de religião, que abrace tais ou quais idéias particulares, que aceite como seu o juízo deste ou daquele homem, são coisas secundárias... Pensamos e deixamos pensar...” Para ele, o importante era amar a Deus com todo seu coração, com toda a sua alma, com todo o seu entendimento, e com todas as suas forças, e fazer o bem a todos enquanto se tem oportunidade. Seu critério para relacionar-se com cristãos de outras comunidades era este: “É sincero o teu coração, como o meu o é para contigo? Nada mais te pergunto. Se for assim, dá-me a mão. Não destruamos a obra de Deus por questão de opiniões ou termos. Amas e serves a Deus? Isto basta.” Esta foi a maneira que Wesley encontrou para superar o formalismo e a segregação das comunidades restritas, encasuladas em seu acanhado mundo particular.

Admiro também a saudação dos indianos. Eles juntam as mãos, em atitude de oração, e se inclinam reverenciando a “Deus que está no outro”. Com esse gesto tão significativo, essas pessoas que rotulamos de “pagãs” demonstram que têm uma percepção profunda sobre o fato de que, de certo modo, Deus está em todos (compare com Luc. 17:21). Para eles, a consideração respeitosa pelo outro significa reverenciar a Deus (compare com 1 João 4:20 e 21).

Todos nós somos marcados pela tradição, por pré-condicionamentos históricos. Na história escrita na “folha” de nossa vida há, entre outros, o registro de estereótipos, preconceitos e categorias abstratas para classificar as pessoas e coisas que herdamos da IASD, os quais precisamos reavaliar à luz da palavra de Deus em Cristo, a fim de reescrever e reelaborar incessantemente a história de nossa vida, para que ela se identifique cada vez mais com o espírito do Glorificado.

 

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