Perigos que Ameaçam o Movimento Leigo - 5: A TEOLOGIA TRADICIONAL

Por Edegard Silva Pereira

O autor formou-se em Teologia no Colégio Adventista do Prata, Argentina. É Mestre em Ciências da Religião e Mestre em Comunicação Social. Foi pastor da IASD entre 1965 e 1988. Atualmente dedica-se a realizar palestras em empresas sobre desenvolvimento humano, numa perspectiva cristã.

“A igreja nunca está tão errada como quando se recusa à mudança.” – Samuel McCrea Cavert

O mais difícil para o movimento leigo talvez seja livrar-se da teologia tradicional adotada pela IASD, porquanto os participantes desse movimento foram condicionados a aceitar que não há garantia de participação na graça de Deus fora do corpo de doutrinas “infalíveis” da IASD. Neste artigo pretendo complementar o que é preciso mudar no âmbito teológico, a fim de evitar deslizes como os que foram mencionados em artigos anteriores e outros que apresento agora.

 

Características

Antes de tudo nos convém definir a teologia. Há várias definições. Pessoalmente prefiro esta: Teologia é o esforço para tornar inteligível a palavra de Deus em uma determinada situação histórica. Ou, mais especificamente, é uma ferramenta que nos ajuda a compreender e interpretar, com base na situação histórica atual, a fé e a vida que a palavra de Deus em Cristo desperta, e ver o que elas significam para nosso pensamento de Deus, do mundo, do homem e do caminho da salvação.

Também não há uma única maneira de se fazer teologia, mas muitas. Dispenso abordá-las porque existem livros que tratam essa ampla questão com competência. A mais comum é a teologia tradicional, formulada geralmente com a mediação filosófica. Aqui me limito a oferecer uma visão panorâmica, muito resumida, das principais características desse gênero de teologia e como elas aparecem na IASD. 

Moralismo. A teologia tradicional aborda principalmente questões vinculadas com a ética. E a própria perspectiva da ética, por causa de sua natureza abstrata, conduz necessariamente a reflexão teológica ao moralismo, o que é uma deformação do objeto da teologia. No caso da IASD, a ética derivada do Decálogo recai na moralidade que consiste na guarda de mandamentos, numa série de “Tu não farás...”, e não nas ações positivas exigidas por Jesus (ver meu trabalho As Exigências de Jesus), nas quais está centrada a vida cristã.

A-historicismo. Nas Escrituras, a teologia parte da pergunta por Deus e pela história, e a história tem mais peso que a teologia. Elas testemunham que a história é o lugar possível e real da revelação de Deus, da vinda de seu reino e do evento da salvação. É o significado que esses acontecimentos têm para nós o que a teologia bíblica tenta desvelar. Para a teologia do Novo Testamento, a situação histórica que a comunidade vive é fundamental para interpretar o que a fé e a vida cristãs significam nesse momento.

A IASD usa unicamente a História Universal para interpretar os apocalipses e “provar” que ela é a “igreja remanescente”, isto é, baseando-se em sua interpretação de fatos do passado, se apresenta como a única igreja que garante a participação na graça de Deus. (Os eruditos modernos fizeram críticas ao método historicista de interpretação dos apocalipses que não deixam de atingi-lo merecidamente). Quanto ao tempo presente, a IASD se exime de incluir a situação histórica na qual vivem seus adeptos para formular a teologia.

Logo, não oferece uma orientação positiva, concreta, à luz do Evangelho, sobre a vida social e política (a vida total dos povos), na qual a vida individual se encontra fortemente inserida e determinada. Pelo contrário, incita seus adeptos para que se afastem do mundo, o que significa alienação da vida social e política para viver em um acanhado mundo particular (uma atitude patológica, segundo os psicanalistas). Se não nos convém viver neste mundo, em que mundo viveremos? Em algum gueto adventista ou em um mundo imaginário? É isso que Cristo exige? O Evangelho tem valor só para os indivíduos? Onde foi parar a mensagem cristã para as nações?

Porque deixa fora de sua perspectiva a situação histórica atual e as formas de vida totais, a teologia tradicional fala de modo abstrato dos aspectos da fé cristã.

Abstracionismo. Por causa da teologia tradicional adventista salientar aspectos abstratos da fé cristã —o que é evidente nos sermões e na literatura—, ela é impotente para se pronunciar sobre o que fé, amor, salvação, justiça, paz, esperança e fraternidade, por exemplo, significam aqui e agora, e sobre suas aplicações concretas na vida comum das pessoas. Todas essas questões ficam entregues à consciência privada.

Individualismo. Feita de princípios puros porque abstratos, a teologia tradicional limita-se a ordenar uma prática ética correspondente, isto é, uma moral medida pelas dimensões da consciência individual e pelas intenções do cristão particular. Por causa de superexaltar os aspectos individuais da fé cristã, ela não consegue se pronunciar a propósito da aplicação concreta dos aspectos comunitários dessa mesma fé, o que produz um resultado atômico, a falta de uma doutrina real de igreja. A carência de tal doutrina capaz de criar a união espiritual, é compensada na IASD por uma monstruosa máquina administrativa, com a qual pretende manter a unidade externa.

A essas características da teologia tradicional adventista temos que somar outras mencionadas no artigo “A Guerra Doutrinaria”: autoritária, legalista, lógica, dogmática e fundada no literalismo bíblico.

Qual é a matriz que gera esse gênero de teologia?

 

A matriz

Para a IASD Deus é uma abstração inacreditável, que funciona subjetivamente como uma espécie de caução inteiramente moral. O que faz essa organização religiosa é reproduzir historicamente uma forma de abstração de Deus, que afastou Deus do mundo, originada na civilização ocidental moderna e adotada por importantes ramos do protestantismo norte-americano. Na IASD, Deus não é uma presença, mas sim uma ausência; e um Deus que não está presente não é Deus.

Como Deus foi afastado da IASD? Em parte, já o explicamos no artigo “Ser Uma Comunidade Restrita”: sorrateiramente ela fez com que a autoridade da igreja tomasse o lugar de Deus, o corpo de doutrinas tomasse o lugar da Palavra e a fé no corpo de doutrinas tomasse o lugar da fé em Cristo.

Deus foi pouco a pouco essencialmente afastado da IASD a partir de concepções do cristianismo e na medida em que desenvolvia o poder religioso e criava sua monstruosa máquina de administração. Por um lado, os atributos único, invisível e transcendente de Deus tornavam possível e até “fácil” concebe-lo afastado da igreja. Por outro lado, sendo que Ele se revelou como homem em Jesus Cristo, passou a ser concebido de tal maneira encarnado nos dirigentes (e na máquina administrativa) da igreja, que foi suplantado pela estrutura de poder religioso.

O que foi decisivo em provocar a despedida de Deus foi a tendência dos dirigentes —a mesma do homem moderno—, os quais acham que com sua lógica, seu saber e sua potência próprios podem dispensar a Deus para fazer o que deve ser feito. A forma de abstração de Deus tem sido útil para os senhores da IASD. Deus foi reduzido a uma divindade afastada da igreja para abrir espaço para a autonomia dos dirigentes, a fim de que eles possam controlar a organização religiosa sem a interferência divina, passando a depender de fato de sua capacidade administrativa e de seus métodos racionais, como foi demonstrado em O Leviatã Adventista.

O que os senhores da IASD conseguiram com o afastamento de Deus foi multiplicar na potência de seus meios a proliferação do negativo na comunidade, tornando-a obscura, punitiva e restrita. Esvaziaram a igreja de seu sentido —o sentido que corresponde à intenção de Jesus Cristo—, e o adventismo deixou de ser uma religião amiga do homem. Os dirigentes, encasulados no processo administrativo,  não conseguem preencher, com seu novo legalismo e formalismo, o vazio que ficou. Por isso, é comum ouvir adventistas queixando-se de que saem dos cultos tão vazios quanto chegaram.

 

As fontes da teologia adventista

A IASD afirma que seu corpo de doutrinas foi concebido como resultado de especial orientação divina. Mas ele é, na realidade, principalmente o resultado da combinação de várias fontes confessionais que podemos identificar. O espaço me permite só mencionar as principais.

Antes de mencioná-las, é preciso ter em conta o seguinte: desde suas origens, a IASD se caracteriza por uma formação teológica pobre. Entre os fundadores não havia teólogos, todos  eram leigos. Ainda hoje a capacitação teológica dos pastores adventistas deixa muito a desejar. A IASD sempre foi dependente da produção teológica de outras denominações, tanto para formular seu corpo de doutrinas, quanto para o ensino de teologia em seus seminários. Sua produção teológica nunca foi relevante no mundo da teologia. E isto resulta, em parte, do fato de que os seminários adventistas não ensinam como se faz teologia, mas ensinam uma teologia que está pronta, acabada e é infalível, indiscutível.

Eis as fontes principais da teologia adventista:

1) A maioria dos pioneiros inspirou-se no movimento criado pelo fazendeiro batista Guilherme Miller, que confundia as concepções do apocalipcismo com as concepções do profetismo. Dele a IASD herdou a ênfase no regresso de Cristo e a interpretação historicista do livro de Daniel, que os teólogos adventistas tornaram extensiva ao Apocalipse, sem estabelecer a necessária diferença entre os apocalipses judaico e cristão. 

2) Por influência dos batistas do sétimo dia, os pioneiros aceitaram a guarda do Sábado, conforme a tradição judaica.

3) A teologia de João Calvino teve uma influência notável na constituição da sociedade norte-americana, portanto, na teologia adventista (exceto a doutrina de Calvino da eleição, que esta teologia substituiu pelo conceito de “igreja remanescente”). Ela recebeu da teologia de Calvino suas características principais: autoritária, legalista, moralista, lógica e fundada na interpretação literal da Bíblia.

4) Do calvinismo recebeu também a moralidade que consiste na guarda dos Mandamentos (não de seguir as exigências de Jesus), e as “virtudes puritanas”, que, em conexão com os postulados econômicos do capitalismo, se tornaram, desde a época dos pioneiros e fundadores dos Estados Unidos, o padrão implícito de responsabilidade e decência na maneira norte-americana de viver.

Convém notar o seguinte: as virtudes e a maior parte dos princípios religiosos defendidos por Ellen G. White em seus escritos estão em sintonia com essas fontes. E o que fazem os teólogos adventistas é manter a confissão eclesiástica nos mesmos moldes usados pelos pioneiros. Se não fizerem isto, são demitidos.

 

A fonte da teologia do movimento leigo

A fonte da teologia do movimento leigo, se é que deseja ser um arauto de Cristo, não deveria ser a confessional-eclesiástica da IASD ou de qualquer outra denominação, mas a palavra de Deus em Cristo. Contudo, pode aproveitar a experiência milenar da igreja nesse sentido para reter o que corresponde à intenção de Cristo.

Pense na forma eficaz de fazer teologia (do que depende o preparo de sermões, folhetos, artigos, livros, composição de hinos, liturgia, etc.), como a soma de quatro capacidades:

1) Capacidade de analisar a situação histórica a fim de adequar a mensagem cristã à condição à qual estão submetidas as pessoas. Se não colocamos a vida comum das pessoas como referência, que vamos colocar?

2) Capacidade de decidir sobre o que é vital para a fé e a vida cristãs, e de ver o que elas significam para nosso pensamento de Deus, do mundo, do homem e do caminho da salvação.

3) Capacidade de fazer teologia, o que significa ter o instrumental adequado e colocar a palavra de Deus em Cristo e a fé e a vida que ela desperta como o centro real e a fonte da teologia, para alcançar o centro da mensagem cristã de salvação e ver o que ela significa para nosso pensamento.

4) E, obviamente, capacidade de comunicação. Especialmente saber expressar com clareza o que os aspectos da fé cristã significam aqui e agora, e sobre suas aplicações concretas na vida comum das pessoas e na comunidade religiosa.

O movimento leigo estará no caminho certo se derivar sua ética das exigências de Jesus, pois elas são uma grandeza ético-espiritual que supera muito à ética do Antigo Testamento, restrita à guarda da lei (Tora, os mandamentos do pentateuco), e lhe dá um novo sentido positivo tendo a mira nos mandamentos totais de Deus.

 

O instrumental indispensável

Vou indicar as melhores obras de consulta permanente para realizar bem a tarefa teológica. Segundo a maioria dos eruditos são:

Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, ed. ASTE (Associação de Seminários Teológicos Evangélicos). O autor é considerado a maior autoridade em Antigo Testamento.

Leonhard Goppelt, Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo/Petrópolis, eds. Sinodal/Vozes. Considerado o melhor estudo atual sobre o Novo Testamento, e, por isso, tornou-se padrão para os estudos nessa área.

Jean-Jacques von Allmen, Vocabulario Bíblico. São Paulo, ed. ASTE. Um manual indispensável, cujos verbetes explicam o significado de palavras-chaves dentro da Bíblia. Consultando-o, não corremos o risco de falar uma língua diferente da língua da Bíblia.

O estudo destas obras, que fogem ao espírito sectário, significa um retorno às fontes bíblicas, tornar-se bem aclimatado no mundo da revelação e mais versado na compreensão da mensagem bíblica. São de tal profundidade, que depois de estudá-las toda outra exposição sobre temas bíblicos parecerá “água com açúcar”. Quem tem em mira os objetivos de receber edificação espiritual e ser capaz de instruir a outros na fé cristã não pode conformar-se com menos do que elas oferecem.

Como complemento, é recomendável a obra clássica de Bengt Hägglund, História da Teologia, Porto Alegre, ed. Concórdia. Ela ajuda a entender melhor como “em cada tempo a Escritura Sagrada foi entendida e explicada na igreja de Deus”.

Este conjunto de obras é pequeno, porém de máxima qualidade. Valendo-se dele, o estudioso da Bíblia terá, sem dúvida, uma boa introdução no campo da teologia bíblica.

 

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