Revista Time: Por Que Jesus Teve de
Morrer?
Uma profunda discussão teológica foi suscitada pelo filme "A Paixão de Cristo",
de Mel Gibson, que bate recordes de bilheteria nos cinemas. Os debates, que
podem atingir seu zênite durante a semana santa, questionam se Jesus sofreu no
lugar de seus seguidores, que teriam de expiar sua culpa pela eternidade. Nesse
caso, será que o cristianismo estimularia uma atitude passiva e conformada
diante das adversidades?
Por que Jesus morreu?

Filme de Mel Gibson estimula a
discussão da questão central da semana santa
David Van Biema*
A melhor forma de deduzir por que algo tinha que acontecer é imaginar como
teria sido se tivesse acontecido de outra forma. Isto é o que David Gray
estava fazendo em uma sala de estar confortável em Geneva, Illinois, com
outros homens de sua igreja. Eles estavam, digamos, realizando uma especulação
sobre a morte de Jesus.
"O que aconteceria se o plano de Deus fosse Jesus vir a Terra para transmitir
estes ensinamentos e falar bem. Sabe como é, 'Ame seu inimigo...' E então ele
fosse levado e não morto. Por que no plano de Deus ele teve que sofrer daquela
forma?" Os outros membros do grupo masculino de estudo da Bíblia, ligado à
Igreja Episcopal de São Marcos, em Geneva, meditaram sobre a questão.
"Será que o plano de Deus teria que ser mais dramático?" sugeriu um. "Certo",
disse outro, imaginando brevemente o pensamento de Deus. "'Vocês não estão
entendendo. Vamos ter que fazer algo mais dramático aqui'". "Eu gostaria de
adicionar uma palavra a esta discussão", disse um terceiro. "Obediência.
[Jesus] foi totalmente obediente."
Gray meditou sobre o que foi dito e chegou a uma conclusão. "Tinha que
acontecer fisicamente", disse ele. "Eu talvez não diria isto antes de ter
visto o filme. Mas agora está muito mais claro para mim. Eu não sei dizer por
que ele teve que sofrer daquela forma. Mas Cristo tinha que morrer."
O filme, é claro, é "A Paixão de Cristo", a versão de Mel Gibson para as
últimas horas de Jesus na Terra, que, desde sua estréia na quarta-feira de
Cinzas nos EUA, já foi visto por mais de 30 milhões de pessoas. Agora estamos
na semana santa; por todo o país, nos próximos sete dias, mais pessoas estarão
falando sobre a Paixão de Cristo.
Só nos EUA, dezenas de milhões irão à igreja e participarão de missas que
revivem a morte e a ressurreição do Messias. Para um certo setor da população,
o espírito da temporada foi ampliado com a publicação de "The Glorious
Appearing" (a aparição gloriosa), o 12º livro da série best seller "Deixados
para Trás", no qual Jesus retorna em um julgamento apocalíptico.
Mas o que marcará esta semana de Páscoa como diferente para um número maior de
cristãos -e talvez aprofundar a natureza da celebração- será o impacto de "A
Paixão de Cristo". Além de freqüentar as missas, muitos lotarão os cinemas
locais para absorver -alguns pela primeira vez, muitos pela segunda ou quinta-
o sermão gráfico em celulóide de Gibson paralelamente às palavras de seus
pastores. Nas últimas seis semanas o filme arrecadou US$ 340 milhões. Ele
passou a ser exibido em cerca de 350 cinemas adicionais para a semana santa,
mas mesmo assim não há dúvida de que em alguns locais algumas pessoas não
conseguirão assistir por causa da lotação, particularmente na sexta-feira.
E o que elas extrairão desta adaptação incomum das narrativas de Cristo? É
sempre perigoso prever o comportamento religioso, mas parece provável que
antes de viajarem para os reinos elevados do Domingo de Páscoa, elas passarão
um pouco mais de tempo no vale sombrio da sexta-feira santa. Quando os
católicos romanos entre eles ouvirem o padre recitar o verso de Isaías -"Ele
foi traspassado por nossas transgressões (...) com seus ferimentos veio a cura
para nós"- eles poderão se recordar que foi com estas palavras que Gibson
começou sua leitura do flagelo de Jesus.
Quando muitos luteranos se ocuparem na adoração meditativa da cruz e quando os
fiéis até mesmo da menos litúrgica das igrejas protestantes cantarem, "Que a
água e o sangue/Que fluíram do seu ferimento/Curem os pecados", eles também
poderão imaginar mais vividamente a cruz e o sangue. E eles poderão se ver
mais propensos a ponderar uma questão cuja resposta, a princípio, parece que
deveria ser tão simples como "Jesus me ama, isto eu sei", mas que na verdade
tem dividido teólogos e clérigos por séculos, e sem um fim a vista: por que
Cristo morreu?
Isto é, não quem (na Terra) o matou nem exatamente o quanto sofreu. Mas qual
foi o motivo cósmico para sua agonia? Qual é seu propósito, seu cálculo
divino? Quão precisamente sua morte, geralmente tratada neste contexto como
expiação, leva à salvação da humanidade?
A expiação "é o ponto central do cristianismo, e é o que o distingue de todas
as outras religiões", disse Giles Gasper, um historiador religioso que
escreveu um livro sobre um dos grandes intérpretes medievais do assunto. Sem
pelo menos um entendimento intuitivo da expiação, um fiel tem pouca chance de
entender as promessas da fé de redenção e vida eterna.
Porém, por estranho que pareça, em muitas igrejas a questão do motivo da morte
de Cristo é inerte, se é que está presente. Um motivo é que qualquer desvio da
rota "Ele deu a vida por nós" rapidamente mergulha em formulações metafísicas
para as quais os estudiosos religiosos carecem de um vocabulário básico.
"Muitas pessoas não captam os nuances teológicos, incluindo clérigos", disse o
dr. Philip Blackwell, da Primeira Igreja Metodista Unida de Chicago. E mesmo
se captássemos, disse Jack Graham, pastor da megaigreja Batista de Prestonwood,
em Plano, Texas, uma compreensão plena ainda assim poderia nos escapar. "Há
muitos mistérios da expiação que nós não entendemos neste lado da eternidade",
disse ele.
A discussão também é impedida pelo romance dos cristãos americanos com um
Jesus pessoal, amigável, prestativo, que torna uma discussão detalhada de sua
morte violenta um tema cada vez mais difícil. Segundo o teólogo e locutor de
rádio R.C. Sproul: "Você não ouve mais as pessoas pregando sobre a expiação.
Eu não acho que exista grande diferença entre o evangelismo protestante e as
principais seitas do cristianismo".
Não, pelo menos, até seis semanas atrás. Graças ao filme de Gibson, "a
expiação está de volta à agenda da cultura americana", disse Stephen Prothero,
diretor do departamento de religião da Universidade de Boston e autor de "American
Jesus: How the Son of God Became a National Icon" (Jesus americano: como o
Filho de Deus se tornou um ícone nacional). "Esta é uma grande mudança. A
expiação era a crença Nº 10 dos americanos. Mas agora eles se importam mais.
Este é o cristianismo da crucificação."
A experiência é semelhante à reabilitação de um músculo que você esqueceu que
tinha. Assim, nesta quaresma, o reverendo Byron Shafer, pastor da Igreja
Presbiteriana de Rutgers, no Upper West Side de Manhattan, fez seu primeiro
sermão sobre a expiação em "oito ou nove anos". Blackwell, da Primeira
Metodista Unida de Chicago, se viu acompanhado de outros dois para falar no
site MSNBC, debatendo o assunto como se fosse um tema de campanha eleitoral ou
o julgamento de uma celebridade. E em Geneva, a questão continua a fascinar os
estudantes da Bíblia e o pároco assistente da igreja, Tony Welty. "A questão
é", disse Welty, "Ok, se isso realmente aconteceu, por que aconteceu? Por que
Cristo morreu? E se ele realmente morreu, então, meu Deus, o que isso
significa para mim? Eu sou uma pessoa vivendo no século 21. Isso é algo que eu
precisaria levar mais a sério?"
Expiação
Por trás destas perguntas há um trágico senso de alienação que antecede a vida
e morte de Jesus em milhares de anos. Desde o surgimento da religião, Deus (ou
deuses) sempre foi definido pela separação. E pela mesma quantidade de tempo,
os seres humanos temeram que a alienação estava aumentando. "Senhor, por que
estás tão longe" lamentou o salmista, eventualmente concluindo que o motivo
era a desobediência humana e o pecado. Na época de Jesus, o ritual do templo
judeu incluía sacrifícios regulares de expiação dos pecados, cheios de
esperança de reconciliação com Deus. Por volta de 57 d.C., quando o apóstolo
Paulo escreveu o livro "Carta aos Romanos" do Novo Testamento, ficou claro que
os cristãos quiseram reconfigurar a reconciliação em torno da vida, morte e
Ressurreição de Cristo. Mas como?
Alguns teóricos modernos da expiação argumentam que as escrituras apresentam
apenas uma resposta -a deles. Mas muitos mais concordam com Theodore Jennings
Jr., do Seminário Teológico de Chicago. "O novo testamento é completo" na
questão do motivo da morte de Cristo, ele disse. Seus escritores "são todos
persuadidos de que algo realmente drástico, fundamental e dramático aconteceu,
e reúnem todas as formas para compreensão disto".
O livro "Carta aos Hebreus", por exemplo, se apropria diretamente da metáfora
do sacrifício judeu, exceto que desta vez Jesus é tanto o sacerdote quanto o
sacrifício, derramando "não o sangue de bodes e bezerros, mas seu próprio
sangue, e assim, de uma vez por todas, obtendo uma redenção eterna". O
evangelho de Marcos prefere a linguagem legal romana da libertação dos
escravos: "Pois o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e
dar sua vida em resgate por muitos".
A "Primeira Carta de Pedro", por sua vez, adota uma linha diferente, colocando
as provações de Jesus como motivo de imitação, "pois também Cristo sofreu por
vós, deixando-vos um exemplo, a fim de que sigais os seus passos". E a carta
de Paulo aos colossenses faz apenas uma breve pausa na Cruz no seu caminho até
a imagem triunfal do Cristo elevado, desfilando inimigos demoníacos em
correntes : ele "despojou os principados e potestades e os deu publicamente em
espetáculo, arrastando-os no seu cortejo triunfal".
Foi este último modelo que primeiro pegou. Por cerca de mil anos, os pais da
Igreja parecem ter visto o sofrimento e morte de Cristo menos como um esteio
trágico importante da salvação, mas sim como um passo necessário na campanha
triunfante de Deus no mundo humano e, eventualmente, nos distritos do diabo.
Eles viram a encarnação e a ressurreição como mais importante para a
reconciliação e um novo começo para a humanidade.
De fato, uma posição próxima desta é ainda mantida pelos 250 milhões de
cristãos ortodoxos orientais do mundo, o que os deixa menos suscetíveis à
imagens prolongadas da agonia de Cristo como as apresentadas por Mel Gibson.
Segundo Frederica Mathewes-Green, que escreveu vários livros sobre a religião
ortodoxa: "É como um bombeiro que entra em um prédio e volta coberto de
ferimentos e cicatrizes, mas carregando um bebê que foi capaz de tirar do
berço. A vitória é que ele resgatou a vida eterna do pecado e da morte. E é
nisto que os cristãos ortodoxos se concentram".
Quando, no início, os pais da Igreja empregaram a imagem das escrituras da
morte de Cristo como um resgate, o recebedor não foi Deus mas o diabo, o qual
alguns sentiam que tinha direito legítimo sobre a humanidade devido à queda de
Adão. Mas outros preferiram outro cenário: ver a crucificação e a descida
subseqüente de Jesus ao que chamavam de inferno como uma espécie de plano
divino de vara e anzol, no qual o diabo achou que tinha conquistado uma vítima
humana particularmente virtuosa apenas para descobrir que tinha permitido a
entrada em seu reino do poder que eventualmente resgataria a humanidade de
volta ao seu domínio. Santo Agostinho comparava o diabo a um rato, a cruz a
uma ratoeira e Cristo a uma isca.
Outros (incluindo ortodoxos atuais) ficam satisfeitos em deixar a natureza
precisa da transição como um mistério. Mas são enfáticos em sua compreensão de
um Cristo decididamente não vítima, mas sim um grande campeão contra um mal
que é uma força sobrenatural real e formidável -de reinos invisíveis lutando
acima de nossas cabeças e sob nossos pés. Tal conceito sobrevive no grande
hino de Martinho Lutero "Deus É Castelo Forte", nos livros "Deixados Para
Trás" baseados no "Apocalipse" e na cena entre Cristo e o diabo que abre o
filme de Mel Gibson. Mas ele não definiu a compreensão dos cristãos ocidentais
do significado da morte de Cristo. Tal honra coube à teoria desenvolvida por
Anselmo, o Arcebispo de Canterbury, que em 1098 escreveu um dos tratados
teológicos mais influentes já escritos: "Por que Deus se fez Homem".
Uma questão de honra
Anselmo também leu as linhas do novo testamento que chamam a morte de Cristo
como resgate, mas ele não podia acreditar que algo era devido ao diabo. Então
ele reestruturou a dívida cósmica. Segundo ele, a humanidade devia a Deus-pai
um resgate de "satisfação" (usando a terminologia feudal de Anselmo) pelo
insulto do pecado. O problema era que a dívida era impossível de ser paga: não
apenas carecíamos dos meios, já que tudo o que tínhamos de valor era de Deus
para começar, mas também carecíamos de posição, como um baixo servo incapaz de
apagar um insulto a um grande senhor.
A condenação eterna parecia inevitável,
exceto por um milagre da graça. Deus "remodelou" a si mesmo em forma humana
para que Cristo, que era tanto livre de pecado como igual social de Deus,
pudesse sofrer a agonia não merecida da crucificação, a dedicando ao pai em
nome da humanidade. Cristo "pagou pelos pecadores o que ele não devia
pessoalmente", escreveu Anselmo, reverentemente. "Será que o pai recusaria ao
homem o que o filho de boa vontade lhe deu?" Não, felizmente.
A formulação de Anselmo, freqüentemente chamada de expiação substitutiva, tem
sido redeclarada de inúmeras formas ao longo dos séculos. A Igreja
eventualmente ampliou o conceito do pecado pelo qual Jesus morreu para além da
desobediência de Adão, incluindo as transgressões de todos. João Calvino, o
reformista do século 16, substituiu o rei feudal de Anselmo por um juiz severo
furioso contra uma criação merecidamente amaldiçoada. Hala Saad, um atual
freqüentador de igreja no Texas, recitou uma versão moderna mais branda: "Tudo
o que preciso fazer é assinar o plano de cancelamento de dívida de Deus para
que Jesus ocupe o meu lugar!"
Ainda é discutido qual grupo de humanos (Todos? Os cristãos? Os eleitos?) é
beneficiado pelo sacrifício e se nossos pecados de alguma forma agravam
retroativamente a agonia do sacrifício de Cristo. Mas nenhuma outra formulação
pós-bíblica entrelaçou de forma tão elegante o pai, o filho, a criação volúvel
e as sugestões de pecado e graça. Nenhuma ligou tanto o crente ao Salvador na
intimidade da dor (e eventual glória da Páscoa) e concluiu a grande obra de
Paulo de transformar a cruz, a imagem do horror supremo, no supremo ícone
ocidental do amor.
A Igreja Católica adotou a idéia substitutiva como uma doutrina legítima no
século 16. A reforma também se banhou no sangue do cordeiro, e rara é a
congregação protestante americana que não canta: "Ó perfeita redenção, a
compra de sangue/ para cada crente a promessa de Deus/ O mais vil ofensor que
realmente acredita/ Daquele momento de Jesus o perdão recebe".
Exemplo, não sacrifício
Mas do século 18 em diante, vários pensadores desenvolveram uma série de
queixas sobre a substituição, apesar de poucos realmente desejarem abandoná-la
totalmente. Para alguns americanos, o Deus irado e todo-poderoso de Calvino
lembrava demais o tirano arbitrário cuja derrubada tinha definido o país. Em
uma época em que Thomas Jefferson estava cortando literalmente todas as
referências a milagres de sua cópia da Bíblia, a estrutura sobrenatural da
substituição perturbava alguns racionalistas do Iluminismo. Seu pouco espaço
para a vontade humana entrava em choque com o crescente otimismo do século 18
e 19 de que a espécie podia se aperfeiçoar por seu próprio esforço. E em uma
cultura religiosa cada vez mais definida pela evangelização emotiva e pela
idéia de um relacionamento pessoal com Jesus, e equação legalista de Anselmo
pareceu para alguns como uma abertura para aqueles que pregam para conquistar
almas.
Em busca de alívio, eles se voltaram para uma fonte tão antiga quanto Anselmo.
O teólogo francês Pedro Abelardo também trabalhou na Idade Média para tratar
do papel de Jesus na redução da distância entre a humanidade pecadora e Deus,
mas ele o fez sem recorrer a uma transação na mesma moeda. Sua expiação
ocorria menos como um pacto entre Deus pai e Deus filho, e mais nos corações
dos crentes que aderiam à mensagem da vida de Jesus -e ao amor expresso
dramaticamente em sua disposição de morrer em vez de renunciar ao chamado.
"Amor responde ao apelo do amor", escreveu Abelardo. Com o exemplo de Jesus
diante dela, a humanidade, com seu ouvido surdo reaberto, podia agora
conquistar a salvação e a reconciliação com Deus.
Serene Jones, uma teóloga de Yale, notou: "Na teoria da substituição, o
problema entre a humanidade e Deus é de dívida. Na teoria abelardiana, o
problema é de ignorância. Nós não temos informação suficiente". Isto se
enquadrava bem ao espírito do Iluminismo e levantou vôo. O ministro Horace
Bushnell, de Hartford, Connecticut, seu maior proponente no século 19,
declarou que a nova localização da expiação não estava "nos campos remotos do
ser", mas na humanidade, como "um efeito moral forjado na mente da raça". A
morte de Jesus se tornou menos central, porque não era mais o preço para a
remoção do peso do pecado; e em vez disso os sucessores de Bushnell passaram a
pregar a vida do Salvador, exortando suas congregações a lutarem pela
reconciliação com o Pai imitando as curas do Filho, seus ataques aos cambistas
ou seus preceitos de amor e tolerância.
Esta teoria é conhecida como expiação exemplar, e foi exposta com vigor há
poucas semanas pelo reverendo Shafer da Presbiteriana de Rutgers. Shafer, que
tinha acabado de assistir "A Paixão de Cristo", se sentiu compelido a
responder ao que considerou sua proposta de que "o propósito central da
existência de Jesus era oferecer a si mesmo como resgate sacrificatório a um
Deus enfurecido pelos nossos pecados." O pastor discordou. "A missão e
propósito da vida e ministério de Jesus", ele pregou, "foi, primeiro, servir
de modelo para a humanidade da plenitude da misericórdia e do perdão que Deus
oferece para nós pecadores e, segundo, servir de modelo para nós da perfeição
do amor que é Deus e a qual aqueles que aceitam o perdão de Deus são
convidados, pela graça de Deus, a se tornarem." Portanto, concluiu Shafer,
"não é a morte de Jesus que pode nos salvar, mas sua vida!"
Visões conflitantes
Mas ainda é possível haver uma boa disputa sobre o significado da cruz. Em
1994, por exemplo, quando uma participante de uma conferência nacional
feminista, paga em parte pela Igreja Presbiteriana americana, disse: "eu não
acho que nós precisamos de uma teoria da expiação; eu não acho que precisamos
de pessoas penduradas em cruzes, sangue pingando e coisas estranhas", a
repercussão negativa ao comentário e outros aspectos controversos da
conferência resultaram na renúncia de uma alta autoridade presbiteriana e uma
perda de doações que a Igreja estimou chegar a US$ 2,5 milhões.
Em grande parte, a escaramuça permanece verbal. Desde o início, os críticos da
teoria exemplar defenderam que nela não havia utilidade para a divindade de
Cristo. Qualquer mártir virtuoso serviria. Um espirituoso comentou que a
Bíblia podia ter terminado com a morte de Abel, um homem decente o bastante.
Evangélicos calvinistas como Albert Mohler, presidente do Seminário da
Convenção Batista do Sul, continuam a defender tal argumento. A teoria
exemplar pura, disse ele, "é apenas um relato de um ser humano tentando
impressionar outros seres humanos com a moral do auto-sacrifício, e isto não é
o evangelho cristão e nunca será". Outros notam que a teoria faz pouco do
pecado e do mal, dando a impressão de que não há nada errado com o mundo que
não possa ser curado pelo empreendimento humano.
Enquanto isso, as críticas da substituição pura podem ser igualmente
cáusticas. O católico liberal John Dominic Crossan a tem chamado de "a mais
infeliz idéia bem-sucedida na história do pensamento cristão". Ele sugere que
após a Igreja cristã ter conquistado o poder terreno, a teoria de Anselmo
criou um senso de dívida e uma alavanca para controle social. "Se eu puder
persuadir você de que existe um Deus punidor, que você merece ser punido e que
eu disponho de uma saída para você, então esta é uma teologia muito atraente",
disse ele.
Outros vêem uma dupla remoção de poder -primeiro da humanidade, cuja redenção
está sendo negociada bem acima de sua cabeça coletiva e, mais importante, de
Cristo, o filho de um pai cujo universo moral parece exigir sua morte. Mesmo
se você ignorar alegações literalistas de que a substituição promove o abuso
infantil divino, a evidência de centenas de anos sugere que, nas mãos erradas,
ela pode transmitir a mensagem errada.
A reverenda Susan Thistlethwaite, presidente do Seminário Teológico de
Chicago, escreveu sobre sua experiência como conselheira espiritual: "Inúmeras
mulheres me disseram que seu padre ou ministro as aconselharam, como 'boas
mulheres cristãs', a aceitarem as surras de seus maridos como 'Cristo aceitou
a cruz'. Uma ênfase exagerada no sofrimento de Jesus, somada à exclusão de
seus ensinamentos, tem sido usada para apoiar a violência".
Thistlethwaite sente tão fortemente isto que, há poucas semanas, ela reuniu um
grupo na Primeira Igreja Metodista Unida de Chicago para falar sobre o filme
de Mel Gibson. Era um filme de guerra, ela disse para os cerca de 30
presentes, o mais violento que ela já tinha visto. Um colega dela disse que o
filme parecia adotar a teoria da expiação substitutiva. "Os problemas com esta
teologia cristã clássica", ele apontou, são a "glorificação da morte e do
sofrimento, o encorajamento da criação de bodes expiatórios e a transformação
do perdão em ônus da vítima (como Cristo)".
Jonathan Ramey levantou sua mão. Ramey, um ministro batista ordenado que é
sem-teto, migrou para a Primeira Igreja Metodista Unida enquanto vivia em um
abrigo próximo. "Uma pessoa não pode se beneficiar do sofrimento de outra?"
ele perguntou. "Meu irmão me salvou de ser espancado mais de uma vez levando
ele as surras. Eu estou sofrendo agora", disse ele. "Se eu olhar para o
sofrimento de Jesus, eu sei que posso suportar isto." Os outros participantes
foram indulgentes com ele por alguns minutos, mas não cederam em sua posição,
Um pouco mais tarde, Ramey refletiu sobre a reunião. "Não é que estas pessoas
não sejam boas", disse ele educadamente. "Mas elas vivem uma realidade
diferente. Você fica em uma posição tão elevada, que não tem idéia da verdade
real do evangelho, de que o sofrimento faz parte da salvação."
Outro testemunho da efervescência deste debate é que ele permanece presente
nas guerras culturais. O cientista político John Green, da Universidade de
Akron em Ohio, nota que o senso de pecado inerente à teoria substitutiva
denuncia a tendência política de direita da moralidade do indivíduo. De fato,
a natureza de cima para baixo da substituição reafirma o desprezo dos
conservadores pelos direitos que eles sentem que estão ausentes no imprimátur
bíblico de Deus. "O entendimento substitutivo é servil", disse Mohler. "Ele
coloca o pai na posição de fonte de satisfação de exigências morais que nos
impõe por meio da expiação de Cristo. Nós não temos autoridade para definir
nossa própria existência ou reivindicar direitos como o direito da mulher de
abortar."
Por outro lado, Randall Balmer, chefe do departamento de religião da Faculdade
Bernard em Nova York, disse que os cristãos exemplaristas devem apoiar
questões como os direitos dos gays com base na "compaixão de Jesus pela
humanidade, que devemos emular sendo graciosos, aceitando, incluindo e não
sendo condenadores". A afirmação de Martin Luther King Jr. que o "sofrimento
imerecido é redentor" foi exemplarista, apesar de sua teologia não se resumir
a apenas isto.
Misturando, comparando, buscando
Na verdade, a maioria dos cristãos nem é puramente substitutivo nem puramente
exemplarista em seu ponto de vista. JoAnne Terrell, autora de "Power in the
Blood? The Cross in the African American Experience" (Poder no sangue? A Cruz
na experiência afro-americana), acredita em uma expiação substitutiva por meio
da morte de Jesus. Ela é, segundo ela, "um das crenças básicas da igreja
afro-americana".
Mas ela acredita em algumas outras coisas. Alguns anos atrás, sentada em uma
classe de seminário, ela teve um flashback. Ela era menina novamente, e a mãe
dela tinha acabado de ser assassinada pelo seu namorado. Terrell viu novamente
o colchão ensopado de sangue e a impressão em sangue da mão de sua mãe na
parede. Repentinamente, "eu tinha que encontrar uma ligação entre a história
de minha mãe, minha história e a história de Jesus", disse ela.
O Cristo que ligava estas histórias não era apenas aquele cuja morte a
libertou do pecado. Terrell disse que ele também era o Cristo que gerações de
afro-americanos acreditaram que sofreu com eles e por eles. E, ela
acrescentou, o Cristo que em sua vida "tinha-se erguido contra autoridades
abusivas e uma cultura abusiva, ensinando as pessoas a fazerem o mesmo". Estes
Cristos, reunidos em um, a apoiaram em sua dor, a permitindo ver sua mãe como
tendo morrido como alguém que enfrentou aquele que abusava dela e ajudou
Terrell a encontrar seu lugar como uma pessoa "tentando viver para Deus".
Assim, disse ela, "Jesus está realmente lutando por nós não apenas por
substituição, mas também como aquele que realmente se identifica conosco, nos
acompanhando no sofrimento e nos fornecendo um exemplo de como viver nossas
vidas".
Apesar de Terrell ter uma narrativa cristã particularmente dramática, sua
disposição de misturar, combinar e mudar as teorias da expiação é extremamente
comum. Mark Noll, professor de pensamento cristão da Faculdade Wheaton em
Illinois, nota que "o cristão comum, quando diz, 'Cristo morreu pelos meus
pecados', pode estar dizendo mais de uma coisa". E Barbara Wheeler, presidente
do Seminário Auburn de Nova York, afirmou que atualmente "a maioria dos
teólogos reconhece mais do que duas possibilidades e a importância de
equilibrá-las e integrá-las".
Mesmo no mundo evangélico, para cada cristão como Reagan White Jr. -um batista
do Texas que recentemente recusou uma congregação voltada para a linha
exemplar porque "mesmo o melhor órgão no mundo pode soar uma nota desafinada
se o sermão ao qual segue dilui a essência do cristianismo"- provavelmente há
cinco metodistas como Janet McLeod, uma publicitária do mesmo Estado que
notou: "Nós extraímos nossa força da vivência das parábolas de Jesus e de sua
missão. Da crucificação, nós extraímos nossa esperança do que vem a seguir".
Graham, o pastor batista de Plano, disse: "É como perguntar qual asa do avião
é mais importante".
A maior preocupação para aqueles interessados na saúde da fé americana era
-pelo menos até fevereiro passado, pelo menos- a grande quantidade de cristãos
que realmente não pensavam na morte de Jesus. "Na maioria das igrejas
protestantes", disse Jennings, do Seminário Teológico de Chicago, "mal há uma
Cruz presente. Você passa direto do Domingo de Ramos para o de Páscoa sem
passar pela Paixão".
A omissão vai muito além da aversão histórica protestante a crucifixos
exibindo o corpo de Jesus. Segundo Jack Miles, autor de "Cristo: Uma Crise na
Vida de Deus", ela remonta o século 18, quando "os americanos tendiam a não se
ater à agonia de Jesus. Era mais 'amigo da minha alma, ele caminha comigo e
fala comigo'". Tal fenômeno, que tem apenas aumentado, aflige os cristãos
conservadores assim como as seitas principais, disse Prothero, o autor de
"American Jesus". "Se você perguntar aos evangélicos em uma pesquisa Gallup se
eles desistiram da teologia mais dura, eles dirão que não. Mas na experiência
cotidiana, a expiação não é uma realidade vivida."
E, conseqüentemente, isto sugere um cristianismo com um grande buraco onde, no
mínimo, deveria ser dedicada alguma meditação. "A cruz está no centro do
cristianismo, e nós sabemos que ela se encontrava no centro do próprio
pensamento de Jesus", disse John Scott, um pregador anglicano e autor de "The
Cross of Christ" (a cruz de Cristo), que sofreu um derrame no ano passado. "Eu
nunca poderia acreditar em Deus se não fosse pela Cruz." Ele quase implora.
"No mundo real da dor, como alguém poderia adorar um Deus imune a ela?"
"A Paixão de Cristo" de Mel Gibson certamente fez sua parte para combater o
cristianismo light. A posição do filme sobre a expiação poderia ser descrita
como substitutiva (a citação inicial de Isaías estabelece o tema) com uma
forte dose de devoção católica (os detalhes sangrentos), uma pitada de
exemplarismo (os flashbacks de ensinamentos de Jesus) e baforadas sulfurosas
do antigo modelo bem versus mal.
Em outras palavras, um abordagem quase tão eclética quanto a do americano
comum. Será que ele convencerá alguém de alguma filosofia em particular?
Talvez não, mas é um lembrete de que a questão do motivo da morte de Jesus
exige algum tipo de resposta de alguém que pondera sobre sua fé -e que a
pergunta não evaporará no Domingo de Páscoa.
*Com reportagem de Jeff Chu/Londres, Broward Liston/Orlando, Marguerite
Michaels e David Thigpen/Chicago, Cathy Booth Thomas/Dallas e Paige
Bowers/Atlanta (Tradução: George El Khouri Andolfato)
Fonte:
http://noticias.uol.com.br/time/ult640u549.jhtm
|