Vaticano Concentra Esforços no Leste Europeu
PETER WENSIERSKI, do Der Spiegel A decadência da Igreja registra-se sobretudo naqueles que foram os altos burgos católicos da Europa. Desde o início da gestão do atual papa, em 1978, a Igreja Católica na Alemanha perdeu cerca de 2 milhões de adeptos. O número de jovens dispostos a abraçar o sacerdócio decresceu, as ordens femininas estão apenas vegetando, à medida que uma geração inteira vira as costas à igreja. Por se sentir tuteladas, elites católicas retraem-se em resignação. Até na América Latina, onde os espanhóis e portugueses anunciaram o evangelho a ferro e fogo há 500 anos, fazendo do continente o politicamente mais reacionário do mundo até hoje, as estruturas eclesiais estão rangendo há muitos anos. Não é de hoje que uma minoria intelectual cristã e radical desenvolveu uma concepção contrária ao triunfalismo vaticano, violentamente combatida por Roma: a teologia de libertação, cujos representantes entendem a igreja como paladina da liberdade e da justiça para os oprimidos. Aos olhos do cardeal alemão Joseph Ratzinger, trata-se da mais negra heresia marxista. Ratzinger chefia a Congregação da Fé, repartição vaticana que sucedeu à Inquisição e zela pela doutrina verdadeira entre os fiéis. Apostas - Considerando os múltiplos sintomas de decadência, João Paulo II está apostando no Leste Europeu e na África. Desde a derrocada do comunismo, que muitos adeptos do papa atribuem principalmente a João Paulo II, o Vaticano tem enviado consideráveis esforços para fincar pé no antigo bloco europeu do Leste. Renovação de prédios sacros, construção de novos centros comunitários, estabelecimento de seminários são atividades financiadas pela Renovabis, obra assistencial em prol do Leste Europeu. O apoio também vale para membros da Opus Dei, que já dispõe de centrais na Polônia, Lituânia, Hungria e República Checa. Essa controversa e ultraconservadora organização secreta católica mantém, segundo seu dirigente, o bispo Javier Echeverria Rodriguez, "um programa amplamente disseminado e fundamental" no Leste pós-comunista. O Caminho Catecúmeno, um movimento ultra-ortodoxo rígido, também originário da Espanha, ampliou suas atividades principalmente no Leste Europeu. A Igreja Católica está conquistando adeptos também na África, na qual o número de católicos, que era de 1,7 milhão no início do século, totaliza hoje 110 milhões. Ainda assim, o Continente Negro é um terreno espinhoso para João Paulo II, pois é difícil impor aí as concepções de valores ocidentais, principalmente quanto à moral sexual. E em várias regiões do continente a doutrina pura sempre se mistura com as idolatrias tradicionais, provocando o horror do cardeal Ratzinger. Uma crescente influência das igrejas regionais africanas poderia modificar bastante as feições do catolicismo com predominância européia. Isolamento - Dois acontecimentos da presente década demonstram quanto a Igreja Católica se isolou. Na Conferência Internacional sobre a População, patrocinada pelas Nações Unidas no Cairo, em 1994, os diplomatas vaticanos e conferências episcopais, agindo de acordo com os mais altos ditames, pressionaram em prol da constituição de uma frente internacional contra o aborto. O próprio João Paulo II dirigiu cartas pessoais a todos os chefes de Estado presentes. No entanto, a campanha fracassou. O representante de Cristo não foi ouvido nem mesmo nos Estados Unidos, nos quais as minorias religiosas gozam do maior respeito. O secretário de Estado norte-americano, Warren Christopher, recusou-se até mesmo a receber o arcebispo Jean-Louis Tauran, secretário do papa para as relações estatais. Durante a conferência, os delegados do Vaticano irritaram todos os presentes com sua tática de adiamento. O papa sofreu um desastre semelhante durante a Conferência das Mulheres, realizada pela ONU em 1995, em Pequim. E nem mesmo na Irlanda ferrenhamente católica uma intervenção de João Paulo II conseguiu evitar a liberalização do direito sobre o divórcio. Negação da realidade - O declínio do império não foi inesperado. João Paulo II mantém uma longa tradição, dando seqüência às práticas de seus antecessores neste século (com exceção de João XXIII): a negação da realidade. Seu representante mais típico foi o papa Pio XII. Em 1945, após a derrocada definitiva de uma ordem política superada na Europa, no discurso de Natal pronunciado diante do Colégio de Cardeais, ele exigiu uma volta "a um cristianismo verdadeiro no estado" e "uma política orientada pelas verdades eternas e leis divinas". Na carta pastoral intitulada A Salvação da Cultura Européia pela Fé Católica, Pio XII afirmou que "a Europa teria de ser católica para não naufragar". Frases que João Paulo II não mais formularia dessa maneira. No entanto, o polonês na Santa Sé atém-se firmemente àquilo que sete séculos antes seu predecessor, o mal-afamado Bonifácio VIII, formulara no mais puro latim eclesiástico: "Extra ecclesiam nulla salus." ("Não há salvação fora da Igreja.") "Programa medieval" - Segundo o historiador Stefan Hörner, da Universidade de Friburgo, um dos erros cardeais do Vaticano em nosso século seria querer restaurar "como ideal da Igreja Católica o tempo anterior à Reforma", ou seja, "o programa medieval". O Vaticano parece ser incapaz de equilibrar democraticamente os interesses de amplas maiorias, de manter debates públicos e de reconhecer a igualdade de direitos de grandes organizações sociais. Cabe aos fiéis se curvarem, mantendo a Igreja em suas velhas máximas, numa pretensão que há muito se tornou irrealizável. A paisagem cultural do Ocidente "des-confessionalizou-se ". O sentido da existência humana desvinculou-se das igrejas e, pela primeira vez desde a conversão dos pagãos, o mundo não é mais cristão, quanto mais católico. A perda da importância da Igreja também é demonstrada em seu relacionamento com os partidos democrata-cristãos. Aquela que outrora foi uma aliança de combate se tornou uma relação entre amável e distanciada. Essa ilusão vaticana quanto a um poder ainda existente remonta a um trauma insuperado desde 1870, quando o papa perdeu seu poder temporal. Giuseppe Garibaldi, o unificador da Itália, derrotou as tropas de Pio IX em Roma, acabando com o Estado Pontifício. E, no entanto, pouco antes, o I Concílio Vaticano (1868/1870) proclamara a infalibilidade do papa - contra a vontade de parte do episcopado, aliás. Antes da votação decisiva, representantes da Alemanha, da Austro-Hungria e dos Estados Unidos no Concílio já haviam retornado a seus países. Ambivalência política - Durante anos a fio, os papas consideraram, pesarosos, sua perda de prestígio atrás das muralhas do Vaticano. Pio XI excomungou a classe dirigente italiana, proibindo aos fiéis qualquer participação na vida política do jovem Estado nacional italiano. Coube ao facista Benito Mussolini voltar às boas com a Igreja, por meio da doação de 0, 44 quilômetros quadrados de um reino, o Estado do Vaticano, bem como de 1 bilhão de liras em obrigações do Estado e 750 milhões de liras em moeda sonante. Com os Acordos de Latrão e dispondo desses fundos generosos, Pio IX pôde consolar-se quanto à perda do poder temporal, fazendo as pazes com o Estado fascista italiano. Porém, somente João XXIII reconheceu oficialmente a base ideológica da democracia secular, a liberdade da consciência e da religião. Antes dele, Pio XII anunciou, ainda em 1953, que um erro em si não tem direito de existência e propaganda. De acordo com um pensamento inabalável de João II, o que é errado ou o que é verdade são coisas que somente ele - ou talvez seu fiel assessor Ratzinger - podem decidir. Isso quando o II Concílio Vaticano já postulara, em 1965, não caber à administração eclesiástica a competência quanto a questões mundanas. Mas um dos inimigos principais das pretensões hegemônicas da liderança da Igreja Católica desapareceu no início de nossa década: o comunismo. Ao contrário do que sucedia com a outra ideologia totalitária de nossa época, o fascismo, a Igreja sentia-se gravemente ameaçada pelo comunismo desde 1917, quando os bolcheviques assumiram o poder na Rússia. Tanto os fascistas quanto, principalmente, os nazistas se sentiam incomodados pela Igreja Católica e sua rígida estrutura hierárquica. Tanto Mussolini quanto Franco e Hitler a consideravam um rival que, tal como eles, exigia a submissão total do indivíduo. Ainda assim, em suas concepções de ordem política existiam certas concordâncias entre a Igreja do papa e o fascismo. A Igreja proclamava valores que também eram caros aos fascistas: obediência, disciplina, fidelidade incondicional diante do ideal pretendido. Daí ter sido sempre ambivalente o relacionamento entre a Igreja e o fascismo: entre os católicos encontramos tanto as vítimas como os colaboradores do nazismo. Rejeição mútua - Em contraposição, o comunismo ateu combatia a Igreja onde quer que chegasse ao poder, considerando-a um inimigo tão perigoso quanto o capitalismo. A caça às igrejas das décadas de 40 e de 50 na Europa Oriental tornou-se a maior perseguição aos cristãos desde os tempos de Nero. A total rejeição era mútua. Com poucos dias de intervalo, Pio XI destacou as nuances em sua avaliação do fascismo e do comunismo, em 1937. Em 14 de março desse ano, foi publicada a encíclica Com Preocupação Pungente, na qual o papa alertou contra os descaminhos do nacional-socialismo. Cinco dias depois, em 19 de março, divulgou a encíclica Divini Redemptoris, na qual Pio XI arrasa o comunismo ateu. A escolha das expressões nos dois documentos é bastante esclarecedora. De forma lapidar, Divini Redemptoris afirma que o "flagelo comunista" ameaça o mundo inteiro, visando "derrubar a ordem social e minar os fundamentos da cultura cristã". O "novo evangelho" anunciado como mensagem de salvação pelo comunismo bolchevista e ateu "é um sistema cheio de enganos e falsas conclusões", pretendendo a "privação dos direitos, a humilhação e a escravização da personalidade humana". Advertência - É inútil procurar em Com Preocupação Pungente frases igualmente contudentes. A encíclica contra o nacional-socialismo adverte contra o endeusamento "da raça e do povo... como norma mais elevada de todos valores". No entanto, em vez de condenar a ideologia racial dos nazistas, já divisada em 1937, o papa restringiu-se a cobrar a liberdade da Igreja e a manutenção de acordo com o Reich, firmada havia quatro anos. Durante decênios, o Vaticano puniu com excomunhão a associação aos partidos comunistas, não fazendo o mesmo em relação às organizações fascistas. Já estávamos na década de 80 quando o cardeal de Santiago comungou demonstrativamente o ditador Augusto Pinochet, em sua catedral. Dois dias depois de fechado o Acordo do Latrão, Pio XI louvou o duce como o homem que "a Providência nos fez encontrar". Muitos religiosos acreditavam, então, que uma Igreja autoritária combinava bem com um Estado autoritário. O acordo do Reich, de 1933, garantiu reputação internacional a Adolf Hitler e privilégios à Igreja Católica. Em 14 de julho desse ano, Hitler gabava-se de que esse acordo constituía uma chance "na luta contra o judaísmo". É curioso notar que na fivela do cinto dos soldados da Wehrmacht se lia a inscrição "Gott mit uns" - "Deus (está) conosco". Uma ferida que até hoje ainda não cicatrizou foi causada pelo comportamento do Vaticano e parte do episcopado europeu em relação aos judeus perseguidos. Os historiadores judeus não são os únicos a acusarem Pio XII de co-responsável pelo holocausto, graças a seu silêncio. Na verdade, o chefe da Igreja Católica, que nos anos 40 se manifestava quanto a todas as questões importantes (e menos importantes) - ele deixou dezenas de milhares de páginas de encíclicas, discursos e pronunciamentos oficiais -, nunca protestou contra o assassínio dos judeus europeus, tal como a grande maioria de seus bispos. Os apologistas católicos defendem esse silêncio pela necessidade de evitar o pior, uma justificativa macabra em se considerando as dimensões do holocausto. Decepção - Desde 1987, o atual papa vinha comunicando a publicação de um documento sobre o "shoah". Porém, divulgado em março do ano passado, depois de um "parto difícil", ele decepcionou não apenas judeus como também católicos críticos. No árido documento, João Paulo II reluta em reconhecer "negligências", queixando-se da culpabilidade de membros isolados da Igreja. Não há aí nenhuma reflexão crítica sobre os erros da Igreja como instituição ou de sua liderança. Não há, igualmente, menção aos colaboradores do Vaticano que ajudaram criminosos de guerra, após o término do conflito, providenciando dinheiro e documentos falsificados que lhes permitiram fugir para a América Latina. No Vaticano, coube principalmente ao bispo austríaco Alaois Hudal e a três frades - um jesuíta, um capuchinho e um premonstratense - prestar serviços a fugitivos nazistas. Pio XII não quis envolver-se pessoalmente na ação conhecida na História pelo nome de "linha dos ratos", declarando: "Se o monsenhor Hudal quer ajudar alemães que passam dificuldades em Roma e na Itália, que o faça, mas em seu nome e à sua custa." Hudal, que fora um entusiástico adepto do nazismo desde os anos 30, era reitor do Colégio Eclesiástico Santa Maria dell'Anima. Em fins do verão de 1950, jesuítas ajudaram a garantir a segurança de Adolf Eichman, responsável direto pelo extermínio de judeus. O genocida recebeu tanto uma carta de recomendação da Obra Assistencial do papa quanto um documento de identidade. Em Gênova, um franciscano abrigou Eichmann até que pudesse embarcar num navio rumo à América do Sul. Participação indireta - O Vaticano jamais participou diretamente de tais atividades. Mas em Roma os contatos eram feitos em vários conventos. Uma central de contato com pernoite e refeições foi a sede dos salesianos na Via Marsala, 42. Além de Eichmann e sua mulher, a linha dos ratos serviu também ao ex-chefe da Gestapo em Lyon, Klaus Barbie, a Josef Mengele, o médico de Auschwitz, e a Franz Stangl, comandante do campo de concentração de Treblinka. Segundo um observador da CIA naqueles tempos, o Vaticano estava disposto a tudo para garantir a infiltração em regiões como a América Latina, "desde que se tratasse de anticomunistas favoráveis ao catolicismo". Essa fixação unilateral no comunismo não decresceu mesmo quando nos anos da guerra fria se iniciou lentamente o processo do degelo entre o Leste e o Oeste, na década de 70. Pelo contrário, ela se viu incrementada pela eleição do polonês cardeal Karol Woityla ao papado, em 1978. Desde o primeiro dia, a luta contra o arquiinimigo tornou-se uma questão de honra para o novo pontífice. Em sua primeira prédica, João Paulo II anunciou a palavra de ordem: "Abri as portas a Cristo. . . Abri as fronteiras dos Estados, dos sistemas políticos e econômicos." Já no dia seguinte, o KGB concluiu que a presumível tarefa de Woityla seria organizar "uma nova ofensiva ideológica do catolicismo" contra o comunismo e "elaborar a unidade na liderança do Vaticano por um extremo anticomunismo". As esperanças políticas que o cardeal polonês em Roma aliava ao extermínio do comunismo só foram em parte cumpridas: a Igreja não conseguiu recuperar sua influência tradicional nem mesmo na Polônia. Os íntimos do pontífice relatam sua grande decepção: "Em segredo, sonhava com a reconstituição da velha Polônia católica, impulsionando outros países e até mesmo a reevangelização da Europa." Ato de contrição - Mas Karol Woityla não renunciou a esse sonho, segundo demonstram seus esforços em promover o renascimento eclesiástico no antigo bloco do Leste. Assim como não abandonou a utopia de liderar, rumo a um novo milênio, uma Igreja livre de opositores, firmemente organizada em seu centralismo, hierarquicamente consolidada, capaz de arrostar as intranqüilidades na base. Com vistas a silenciar definitivamente as críticas incômodas, o papa está planejando para a Quarta-Feira de Cinzas do ano 2000 um "grande ato de contrição", no qual solicitará o perdão pelas culpas da Igreja. O que se refere aos crimes cometidos em seus 2 mil anos de história: a perseguição impiedosa dos não-conformes, dos judeus e muçulmanos, a Inquisição, a caça às bruxas, os assassinatos políticos. Já na Bula da Anunciação do Ano Santo, divulgada no primeiro domingo do Advento, João Paulo preconizou o "corajoso ato de humildade de confessar os enganos cometidos por aqueles que portavam e portam o nome de Cristo". Nos 20 anos de seu pontificado, João Paulo II também trilhou novos caminhos, destruindo tabus. Nesse sentido, condenou o capitalismo como a "cultura da morte", sendo dos poucos atuantes na área internacional a usar o termo "exploração". Na encíclica Centesimus Annus, de 1991, exerceu uma crítica moderada às condições capitalistas neoliberais. Conservador e restaurador das condições preconciliares, o papa também modificou a imagem tradicional de Vigário de Deus antiterrenal, até mesmo numa recente proclamação feita com imagem ao vivo na televisão italiana. Fonte: Arquivo digital do jornal O Estado de S. Paulo |
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