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Pregação Religiosa: A Mídia e a Expansão da Fé

Ivo Lucchesi (*)

Não fosse o registro de Daniel Castro, colunista da Folha de S.Paulo (Folha Online 27/1/04 – 2h52), a relatar a ocorrência da qual trataremos adiante, o cidadão brasileiro estaria absolutamente divorciado de qualquer informação a respeito, o que aliás suponho ainda estar, levando em conta a continuada ausência do fato nos noticiários nos dias subseqüentes.

O jornalista divulgou a seguinte notícia da qual extraímos seu início:

      "Na semana em que foi demitido pelo presidente Lula, o ex-ministro das Comunicações, Miro Teixeira, deu em um único dia, 20 de janeiro, 56 canais de retransmissores à Fundação Nazaré, da Arquidiocese de Belém, onde tem uma geradora educativa".

O desdobramento da matéria dá conta de que a rede abrange amplas áreas da região Norte. Os canais concedidos cobrem as cidades de Manaus, Cuiabá, Palmas, Macapá, Rio Branco e Porto Velho. Incluída também está São Luís, em razão dos cinco canais já existentes no Maranhão. Ao que parece, de acordo com a fonte, tudo transcorreu nos limites da lei. A questão, portanto, não envereda pelos possíveis e obscuros atalhos das negociatas. O problema passa a ser de outra natureza. É sabido que a TV Nazaré transmite programação católica, conforme destaca o jornalista citado.

Em outro segmento de notícias, porém com vinculação à mesma matéria, Daniel Castro informou a existência de uma relação conflituosa entre a Igreja Universal do Reino de Deus e a Direct TV, por esta haver, sem aviso prévio, retirado os canais evangélicos Rede Mulher e Rede Família, embora mantivesse no ar a Rede Vida, de orientação católica, o que, segundo o jornalista, motivou, na madrugada de sábado (25/1), indignado protesto por parte de um bispo da Universal, durante um dos programas religiosos exibidos pela TV Record.

 

Mídia, política e religião

Os fatos aqui rememorados, de início, sugerem um questionamento acerca do silêncio da mídia, considerando que o tema haverá de preocupar não só profissionais diretamente ligados às atividades de comunicação como também a qualquer cidadão, independentemente de seu estado de crença ou descrença – afinal, esses também existem e permanecem reconhecidos como integrantes da espécie humana.

Deseja-se de pronto acentuar o crescente movimento de disseminação da fé religiosa pelos meios de comunicação de massa, além das ostensivas participações de religiosos na vida política da nação. Trata-se de um sintoma grave. O temor não deriva do reconhecimento do quanto a religião se distancia da política. Ao contrário, por identificar que facilmente elas se podem aglutinar é que o temor adquire forma. Em diferentes épocas de uma mesma cultura ou em culturas diferentes, não faltam exemplos a respeito da drástica fusão entre ambas, quando pensamos que, para uni-las, estão sempre à mão o fanatismo, o messianismo e o dogmatismo.

A respeito do tema, é aconselhável lembrar as reflexões empreendidas, entre outros, por E. Cioran, principalmente nos ensaios "Genealogia do fanatismo" e "Rostos da decadência" que integram a edição brasileira de Breviário de decomposição (Rocco, 1989).

Normalmente, quando líderes políticos são pregadores religiosos, facilmente tendem a fazer da política mera extensão de suas crenças religiosas, o que acarreta o surgimento do terreno fértil para vingar o modelo antidemocrático, sob a inspiração da retórica totalitária e salvacionista com a qual se realimentam o fanatismo, o messianismo e o dogmatismo.

Se a mídia responsável, tão zelosa que é (e deve ser) da democracia, não assumir o papel que lhe cabe, ou seja, sinalizar para a população o risco dessa parceria – que, pelo visto, já se constitui em formação triádica, dado o aumento progressivo das instituições religiosas nos meios de comunicação e na indústria cultural –, haverá o perigo de a sociedade brasileira estar a caminho de tensões cujas conseqüências poderão ser nefastas para todos. Volto a insistir: exemplos pelo mundo afora não faltam.

A cena política nacional é cada vez mais habitada por políticos cuja retórica acentua o tom religioso. Sem alarmismo, quer-se pontuar que o perfil laico do Estado brasileiro tem perdido boa parcela de sua autonomia. Não sejamos ingênuos. Proliferam, no Congresso Nacional, bancadas (deputados e senadores) que se elegem com base em seus redutos de fiéis. Igual percepção se pode ter no tocante a cargos executivos, tanto em âmbito municipal, quanto nas esferas estadual e federal. Diferente não se dá na ampliação de publicações, de redes (rádio e TV), programas diários, inclusive com horários comprados em emissoras comerciais desvinculadas de instituições religiosas. Todos têm em comum a prática de ostensivas pregações.

A omissão diante desses passos sinuosos pode estar permitindo a instalação de um quadro societário no qual a intolerância, sempre cúmplice das convicções inabaláveis, venha a germinar tensões até então desconhecidas na vida brasileira. Quando a evangelização se torna o suporte para a ação política transformadora, o que se obtém é a política da evangelização, seguida do domínio sobre as vozes da diferença. Atingido esse estágio, passa a vigorar a lógica persecutória do fundamentalismo, perante o qual a democracia não é mais reconhecida como prática das relações societárias. Não custa recordar que, diferentemente do que possa pensar a maioria, "fundamentalismo" é um conceito formulado primeiramente pela matriz cristã. Somente em tempos posteriores é que o termo foi deslocado para religiões orientais.

 

Perversa e sanguinária

Ciente da redundância, mas com o propósito de dar a devida ênfase ao problema, reafirme-se que a questão religiosa no Brasil atual não se esgota na ocupação que as instituições da fé promovem no circuito midiático e sim na montagem, passo a passo, de uma arquitetura política. A presença crescente na mídia apenas realimenta o caudal de seguidores; a presença na construção política define estratégias outras.

A preocupação esboçada em parágrafos anteriores leva em conta também a manifestação de políticos em cerimônias oficiais, ou seja, a mistura de papéis e funções tem sido a tônica de muitos pronunciamentos. Apenas para ilustração com fatos mais recentes, vale destacar que o discurso de despedida da evangélica e ex-ministra Benedita da Silva não escondia a pregação em favor de Jesus. Diferente não se portou Patrus Ananias, ministro entrante, que, no discurso de posse deu o troco em versão católica, com várias alusões a Deus, a ponto de inspirar o título da matéria publicada pela Folha de S. Paulo ("Patrus assume e agradece a Deus pelo ministério", 28/1/04).

Logicamente, o tom do artigo não se endereça contra nenhuma religião. O problema é saber se a religião é reconhecida como uma experiência vivencial legítima, ou se é transformada em instrumento de afirmação (sedução) política. Há, portanto, em torno desse tema um éthos que carece de maior definição, sob pena de, perdendo-se o momento certo para o ajuste, não mais se encontrarem mecanismos capazes de refrear o processo.

A defesa em favor da laicização do Estado brasileiro representa um compromisso com a preservação da democracia. Para tanto, a retórica de políticos e as concessões para emissoras de rádio e TV deveriam ser objeto de emergente reavaliação.

A título de simples lembrete, examinemos o seguinte aspecto, antes deixando claro ao leitor que nenhum vínculo tenho com o judaísmo, exceto amizades como as tenho com católicos, protestantes, islâmicos e budistas. Nunca foi segredo para ninguém que a família Bloch é de raiz judaica. Alguém, entretanto, terá na lembrança programas da extinta TV Manchete direcionados à difusão do judaísmo? Documentários ou reportagens a envolver o Holocausto, todas as emissoras sempre os exibiram ou produziram-nos. Por outro lado, na antiga Manchete, nenhum programa tematizava ou pregava a difusão de valores ou crenças do judaísmo.

A ilustração tem o intuito de deixar claro que os detentores de meios de comunicação ou de mandatos políticos devem usufruir da mais ampla liberdade religiosa (é um direito constitucional e democrático), na condição de cidadãos. Atrelar, porém, a imagem e a função públicas aos credos aos quais se subordinam significa traição ao próprio sentido profundo da religião – compreendida, repito, como experiência vivencial subjetiva.

Se o conhecimento da História ainda tem lugar, é bom recordar que nenhum Estado com direcionamento religioso, seja no Ocidente ou no Oriente, trouxe prosperidade à nação. E mais: em todos os casos nos quais a instituição religiosa assumiu (ou assume) a condução política, a conseqüência foi (e tem sido) desastrosa, catastrófica, perversa e sanguinária. É bom que a mídia – ainda independente – saiba colocar o tema na ordem do dia.

(*) Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA)

Fonte: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=262IMQ007


Texto de referência

Amigos, agradeceria se fizessem chegar ao professor Ivo Lucchesi este pequeno artigo, escrito há uns três anos. Tem a ver com o conteúdo do belo texto que ele acaba de publicar no Observatório da Imprensa. Obrigado. -- Paulo José Cunha

TELEJORNALISMO EM CLOSE 17 (21/11/1999)

O axé-gospel e a des-moralização da religião

Paulo José Cunha

A produção de megaeventos religiosos pelas grandes redes de televisão, com participação de estrelas do "god’s pop" como os bispos da Igreja Universal do Reino de Deus e o padre Marcelo Rossi revela um aspecto ainda pouco explorado pelos analistas sociais: as religiões cristãs estão se des-moralizando. Ou seja, abdicando do primado da ética que fundou a civilização religiosa e retornando (ou seria regredindo?) ao reino da magia que imperou nos primórdios do homo sapiens sobre a Terra, quando ele fazia sacrifícios ao deus do trovão.

Este retorno à magia, sem dúvida, tem origem na midiatização das religiões, que passaram a enfrentar o "mercado" dos fiéis com o uso agressivo das mais modernas armas do marketing de vendas, e que se inicia pela ocupação do maior espaço de mídia possível. O primeiro efeito visível dessa investida é a banalização da religião por conta da superexposição (é só ligar neste momento o rádio ou a televisão que algum pregador da Rede Vida ou da TV Record estará no ar). O segundo efeito é o relaxamento dos valores éticos e morais, que cedem cada vez mais espaço aos cultos embalados com ingredientes espetaculares de luz, cor e catarse coletiva, os quais lembram muito, em sua essência, as cerimônias religiosas dos povos primitivos.

Os conceitos acima foram inspirados pelo pensamento do sociólogo Antonio Flávio Pierucci, da USP, apresentado na mesa-redonda "A falência ética das religiões no Brasil de hoje", durante o IX Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado na UFRGS em setembro passado. Segundo o professor, as religiões estão deixando de oferecer pautas de conduta, de dizer o que é certo e o que é errado, e oferecendo serviços mágicos, isto é, a solução de problemas imediatos como doença, desemprego, drogas etc. Para nossa análise, o ponto mais interessante do pensamento do professor Pierucci é a elevação da competitividade do mercado religioso no Brasil. As religiões estão se apresentando como muito dinâmicas porque estão em plena competição "comercial". O bispo Macedo sabe que o dízimo sobe na medida em que conquista mais audiência. Ou seja, fiéis. Ou seja, mercado. Líderes carismáticos como o Padre Marcelo sabem que a Igreja Católica (que não se move – ainda – em função do dízimo mas não quer abdicar da grossa fatia de poder que sempre gozou), precisa ocupar um espaço de mídia que até então recusou por não querer sucumbir à chamada religião-espetáculo. Já está sucumbindo. E gostando.

Nesta enxurrada embalada pela oscilação dos níveis do ibope, vão escorrendo ladeira abaixo ícones até então intocáveis, como a teologia (que o professor Pierucci lembra ser um produto custosíssimo, caríssimo. É só imaginar o custo para a formação de um sacerdote ou de um pastor, remuneração de professores, manutenção de seminários, etc. E pensar que, agora, um quadro de pastores da Igreja Universal do Reino de Deus pode ser treinado por videocassetes...) As pessoas buscam hoje na religião a experiência religiosa, o transe, o êxtase, e não a doutrina religiosa. "A teologia é algo racional, exige fôlego intelectual", acrescenta. Na era do clip, é besteira exigir que as pessoas pensem. É mais fácil pedir que dancem.

Se considerarmos que as concessões feitas pelos religiosos atendem às duas partes – mídia e religião – estamos entendidos. Caso contrário, não se justificaria o boato de que o Padre Marcelo, por baixo dos panos, teria sido contratado pela Rede Globo pela irrisória quantia de R$ 150.000,00 por mês.

Só para sintetizar: no mercado do vale-tudo comercial já podemos, finalmente, elevar preces aos céus, ao som de um axé-gospel e saudar a chegada do neo-liberalismo à atividade religiosa.

E Deus?

Ah, sim. Deus é apenas parte do negócio. A parte que atrapalha.

Fonte: http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/canal.asp?cod=263CDL003

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