«A Paixão de Cristo», de Mel
Gibson, Um Convite à Reflexão, Segundo Professor de História
SÃO PAULO,
sexta-feira, 2 de abril de 2004 (ZENIT.org).-
Publicamos a seguir artigo do professor de história e doutorando em história
social das religiões José Pereira da Silva [católico] sobre o filme «A Paixão de
Cristo», de Mel Gibson, em cartaz nos cinemas brasileiros.
O filme «A Paixão de Cristo»: um convite à
reflexão
Nenhuma outra figura na história foi tão estudada e sua imagem tão reproduzida
quanto Jesus Cristo. Ao longo do tempo recebeu uma gama quase infinita de
interpretações. Ninguém pode ficar indiferente a Jesus Cristo, diante dele cada
um é chamado a tomar uma posição. Diz lucidamente Jaroslav Pelikan: “nos últimos
dois mil anos, poucos problemas (...) revelaram as convicções fundamentais de
cada época, com tanta persistência, como a tentativa de se ajustar ao
significado da figura de Jesus de Nazaré”. Jesus, o Filho de Deus, é o homem
universal.
Desde a invenção do cinema, foram produzidas numerosas e diversificadas versões
audiovisuais da vida de Cristo. Em 1898, três anos depois do nascimento do
cinema, surgiu uma das primeiras versões da Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor
Jesus Cristo. Muitas pessoas terão restrições e dificuldades em aceitar certas
versões cinematográficas da vida de Jesus. Mas talvez nenhum outro filme tenha
gerado tanta polêmica como o filme de Mel Gibson, A Paixão de Cristo (Icon,
2004). Como toda obra cinematográfica ela permite diferentes interpretações,
além das intenções do diretor. O que causa polêmica em certos filmes sobre Jesus
é o referente, ou seja, no relato evangélico do qual emerge a figura de Jesus.
Trata-se de mensagem particularmente densa que resiste às interpretações da obra
de arte. Esta, quando genuína, vale-se de parâmetros culturais complexos que
freqüentemente conduzem à polêmica e à controvérsia. Daí o desencontro eventual
entre fonte original, texto literário bíblico, e sua tradução através da
linguagem fílmica.
Provavelmente Mel Gibson partiu de uma leitura fundamentalista dos evangelhos,
ou seja, não leva em consideração o crescimento da tradição evangélica (confunde
o estágio final da tradição com o estágio inicial). Ninguém lê a Bíblia sem
interpretá-la. Nessa leitura privilegia-se certos textos, negligencia-se outros.
No caso de Mel Gibson tudo indica que faz uma leitura dos evangelhos através dos
relatos místicos da vidente Anna Emmerich. Evidentemente que o filme faz
simplificações tanto com a narrativa dos evangelhos quanto com as pesquisas
históricas. O Filme A Paixão de Cristo narra as últimas doze horas da vida de
Cristo. A crucificação de Jesus Cristo talvez seja o evento mais conhecido da
população mundial. Mas é o menos compreendido e o mais importante da história. O
único momento da vida de Jesus que foi relatado evento por evento, hora por hora
foi seu julgamento e sua crucificação. Na noite em que foi preso até ser
crucificado forma menos de doze horas e da crucificação à sua morte foram cerca
de seis horas. Os relatos destes momentos são cruciais. Segundo as suas próprias
palavras, Ele veio para esta hora e esperava ansiosamente por ela: “Sinto agora
grande angústia. E que direi? Pai, livra-me desta hora? Mas foi precisamente
para esta hora que eu vim” (Jo 12, 27).
O filme A Paixão de Cristo quer destacar que Jesus sofreu no lugar dos homens,
para redimir a humanidade. As cenas do sofrimento de Jesus retratadas no filme
são fortes e de grande impacto emocional. A flagelação e a crucificação andavam
sempre juntas. Os romanos aprenderam a crucificação com os gregos e os gregos,
com os fenícios. A flagelação e a crucificação eram punições cruéis. O filme
mostra isso com muito realismo, como nenhum outro filme havia mostrado. Sobre
essas punições existem relatos como do historiador Títo Lívio (59 a.C. – 17
d.C.), em sua obra “Ab urbe condita libri”, Flávio Josefo em sua obra Guerras
Judaicas 6, 5, 3 entre outros. Os romanos chamavam o suplício da cruz de
“crudelissimum teterrimumque supplicium” (crudelíssimo e horribilíssimo
suplício). Porém, não podemos parar no sofrimento por si mesmo, mas entender o
sentido desse sofrimento de Cristo. Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado,
morto e sepultado. Qual é a posição que a cruz ocupa no contexto da fé em Jesus
enquanto o Cristo? Na Bíblia a cruz é a expressão do radicalismo do amor que se
doa totalmente; como expressão de uma vida que é completamente ser para os
outros. O Novo Testamento diz que “Deus estava em Cristo, reconciliando consigo
o mundo” (2 Cor 5, 19).
Deus não espera que os culpados se apresentem e se reconciliem; vai-lhes ao
encontro e os reconcilia. É a manifestação do amor de Deus que se esbanja,
lançando-se na humilhação da prisão, flagelação e crucificação para salvar o
homem. É a ação salvadora de Deus. Se, não obstante, a Carta aos Hebreus 9, 12
afirma que Jesus realizou a reconciliação pelo seu sangue, este sangue não deve
ser encarado materialmente, como veículo expiatório a ser medido quantativamente,
mas como concretização do amor, do qual se afirma que alcança até os derradeiros
limites (Jô 13, 1). É expressão da totalidade de sua entrega e do seu serviço.
Só o gesto de amor a doar tudo representa a reconciliação do mundo. Na cruz
temos a reconciliação. Não é a dor como tal que conta, mas a vastidão do amor.
Só o amor confere rumo e sentido ao sofrimento.
Eis o motivo que explica tudo: porque nos amava. Cristo que os amou e se
entregou por nós, como oferta e sacrifício de perfume suave (Ef 5, 2). Na Carta
aos hebreus lemos: Cristo, “uma vez por todas, no final dos tempos,
manifestou-se para destruir o pecado pelo seu sacrifício” (Hb 9, 26). Jesus,
como dizia S. Paulo, ofereceu-se a si mesmo a Deus por nós (Rm 8, 32). O Pai
encontrou agrado no sacrifício do Filho porque realizou seu desejo: “que todos
os homens sejam salvos”(Itm 2, 4). Jesus se sacrificou pela humanidade. No filme
é feito um paralelo entre a imolação real (a cruz) e a imolação mística (a
ceia). Na ceia temos a antecipação do sacrifício de Cristo que tem sua
definitiva manifestação sobre a cruz. Os Santos Padres costumavam contar os três
dias da morte de Jesus não a partir do momento em que morre na cruz, mas do
momento em que, no cenáculo, “partiu o seu corpo para seus discípulos” (Sto.
Efrém).
Diante da crueza das cenas do filme, devemos ter presente as palavras de S.
Paulo referindo-se a Jesus: “... me amou e se entregou por mim” (Gl 2, 20). Se
morreste por mim, como posso duvidar da tua misericórdia? Por mim, que enche
plenamente todo coração. O Cristo flagelado e crucificado é o Cristo que
ressuscita. Ressuscitando mostra a superioridade do amor sobre a morte.
Morre para vencer a morte e ressuscita para renovar a vida.
O filme A Paixão de Cristo permite diversas interpretações que geram polêmica e
controvérsia. Porém, com espírito de discretio (discernimento) é um convite a
reflexão sobre o mistério da redenção e sobre o sentido e desafio de ser
cristão! -- Profº. José Pereira da Silva
Fonte:
http://www.zenit.org/portuguese/visualizza.phtml?sid=51697 (Código:
ZP04040215. Data de publicação: 2004-04-02.)
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