O Crepúsculo de um Papa

Neste momento difícil por que
passa a Igreja, fica mais evidente
a fragilidade de João Paulo II

 

Mario Sabino
 

Os escândalos sexuais na Igreja Católica americana atingem o Vaticano num momento delicado: o crepúsculo do pontificado de João Paulo II. Além das dificuldades naturais impostas pela idade (em maio, ele completará 82 anos), o papa é vítima de mal de Parkinson. Essa doença crônica, cujos primeiros sinais começaram a ser notados em 1994, progressivamente vem-lhe minando os movimentos e a fala. Ela também faz com que o raciocínio de João Paulo II se torne cada vez mais lento, num fenômeno batizado pelos médicos de bradipsiquismo. Seu declínio ficou mais do que evidente na última Páscoa, quando ele não pôde cumprir rituais como o lava-pés e a via-crúcis. Não fosse o papa um homem de extraordinária energia física e espiritual, já teria sucumbido de vez aos graves problemas de saúde que o afetam. Nas cerimônias públicas, os cardeais da Cúria romana, o aparato burocrático responsável pela direção da Igreja, rezam para que João Paulo II continue vivo e inabalável no trono de Pedro. Reservadamente, porém, eles há tempos jogam o xadrez que costuma preceder um conclave – a assembléia de cardeais que se forma depois da morte de um papa e, em votação secreta, elege um novo pontífice. Entre os papáveis mais fortes, despontam o nigeriano Francis Arinze e o italiano Dionigi Tettamanzi, arcebispo de Gênova. Carlo Maria Martini, arcebispo de Milão, que era um dos favoritos, deixou de freqüentar a lista de candidatos. Consta que também sofre de mal de Parkinson.

AP

JOÃO PAULO II
O mal de Parkinson tolheu seus movimentos e sua fala. Na reunião com os cardeais americanos, ele deverá ser representado por Joseph Ratzinger


As conversas do cardinalato em torno da sucessão de João Paulo II vêm ocorrendo desde 1996, ano da publicação da Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis. Nesse documento, o papa alterou algumas regras do conclave. Um dos pontos que mais chamaram a atenção foi que a lei que rege a eleição de um papa passou a prever formalmente o caso de renúncia do pontífice. Essa possibilidade até então era apenas uma referência vaga que constava do Código de Direito Canônico. A novidade fez com que ganhasse corpo a idéia de que João Paulo II, por causa de sua doença, estava preparando o caminho para abdicar logo depois do Jubileu de 2000. A reforçá-la, muitos lembravam uma frase dita por ele, na presença de dezenas de cardeais: "Seria bom que um papa pudesse assistir à eleição de seu sucessor". A previsão não se confirmou, mas volta e meia ressurge a opinião de que o papa deveria renunciar. Seja pela boca de um bispo mais afoito – de fora da Cúria romana, evidentemente –, seja em artigos assinados por vaticanistas, os jornalistas especializados em Vaticano.

A última vez que isso ocorreu na imprensa foi no fim do mês passado. O italiano Vittorio Messori, que em 1994 lançou o livro Cruzando o Limiar da Esperança, uma longa entrevista com João Paulo II, escreveu no jornal Corriere della Sera que muita gente no Vaticano se perguntava se o papa ainda tinha condição de conduzir seu trabalho. Como Messori tem ótimos contatos dentro da Igreja, é de supor que ele tenha dado vazão ao sentimento de prelados graúdos. Falar por meio de terceiros é um expediente corriqueiro na Cúria romana, um território povoado de personagens cavilosos em que é perigoso expressar abertamente opiniões. Tanto que deu origem a um jocoso, mas verdadeiro, ditado dos cinco "nãos": "Não pense. Se pensar, não fale. Se pensar e falar, não escreva. Se pensar, falar e escrever, não assine seu nome. Se pensar, falar, escrever e assinar seu nome, não se surpreenda".

Uma crise de proporções tremendas, como essa dos padres pedófilos dos Estados Unidos, realça o dilema que se vive hoje na cúpula da Igreja Católica. Ninguém pode obrigar o papa a renunciar – e ninguém é capaz de prever até quando ele ficará vivo. A perspectiva de um papa completamente incapacitado para exercer sua função, mais do que embaraçosa, é assustadora. Pelo simples motivo de que toda a estrutura da Igreja está alicerçada na figura do sumo pontífice – característica que se acentuou durante o reinado de João Paulo II. Em um quadro informal de vácuo de poder, dois cardeais poderão tomar as rédeas do Vaticano: o italiano Angelo Sodano, secretário de Estado, e o alemão Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A hipótese de que Ratzinger venha a gozar de ainda mais influência no Vaticano causa pesadelos na autodenominada ala progressista da Igreja. Uma piada que corre em Roma diz que, em uma discussão teológica com o alemão, São Pedro pediu-lhe desculpas por ser moderno demais.

Ratzinger já completou 75 anos, limite da aposentadoria para os cardeais da Cúria. Mas permanecerá em seu cargo até o fim deste pontificado, a pedido de João Paulo II. Como braço direito do papa, deve comandar as reuniões com os cardeais dos Estados Unidos que foram chamados ao Vaticano para discutir a forma de enfrentar e coibir os crimes sexuais protagonizados por padres americanos. Não deixa de ser constrangedor que alguém da estatura intelectual de Ratzinger agora tenha de se haver com padres de hormônios descontrolados. É uma nota dissonante na biografia do homem que ajudou João Paulo II a impor a linha justa aos esquerdistas da Teologia da Libertação, que elaborou o novo catecismo da Igreja e que, para a ira de protestantes e ortodoxos, afirmou que a salvação do gênero humano estaria somente no catolicismo.

O episódio dos sacerdotes pedófilos, justamente amplificado pela mais poderosa caixa de ressonância do mundo, a mídia americana, lança uma sombra irônica sobre João Paulo II – um papa que fez da rigidez moral uma de suas bandeiras e que jamais aceitou discutir o fim do celibato dos padres. Só os pósteros, contudo, poderão julgar se os escândalos na Igreja dos Estados Unidos empanarão o brilho de seu pontificado. João Paulo II foi protagonista na derrubada dos regimes comunistas na Europa. Também varreu do mapa, como já se disse, a Teologia da Libertação na América Latina. Nenhum outro pontífice viajou tanto pelo mundo. Por ter feito nove visitas ao exterior em quinze anos de reinado, de 1963 a 1978, o antecessor Paulo VI passou à história como "o papa peregrino". Pois bem, João Paulo II saiu mais de noventa vezes da Itália, o que dá a média de quatro viagens por ano. Só no Brasil esteve em três ocasiões: em 1980, 1991 e 1997. No total, o polonês visitou 125 países e percorreu mais de 1,1 milhão de quilômetros ao redor do mundo, o suficiente para dar quase trinta voltas em torno da Terra.

Na qualidade de chefe de Estado do Vaticano (e nunca houve um papa tão empenhado em seu papel político), João Paulo II fez-se ouvir em todos os foros sobre problemas mundiais, recuperando uma projeção que havia sido perdida pelo papado. Em seu pontificado, o Vaticano estabeleceu relações diplomáticas formais com 63 países e abriu diálogo com o ditador Fidel Castro, de Cuba. O papa foi interlocutor privilegiado de três presidentes americanos, Ronald Reagan, George Bush e Bill Clinton, e do último líder da ex-União Soviética, Mikhail Gorbachev. Nenhum deles católico, enfatize-se. João Paulo II bateu o recorde de canonizações e deu força ao ressurgimento do marianismo, o movimento de culto à Virgem Maria. Do alto de sua autoridade, o papa polonês também pediu perdão pelos erros cometidos pela Igreja Católica nos últimos séculos. Foram cerca de 100 desculpas em 23 anos de pontificado. João Paulo II construiu uma biografia papal com as dimensões, o arrojo e a solidez de uma catedral.

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