(1)Com
efeito, « na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto
é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua
carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo ».(2)
Por isso, o olhar da Igreja volta-se continuamente para o seu Senhor, presente no
sacramento do Altar, onde descobre a plena manifestação do seu imenso amor.
2. Durante o Grande Jubileu do ano 2000, pude celebrar a Eucaristia no
Cenáculo de Jerusalém, onde, segundo a tradição, o próprio Cristo a realizou pela primeira
vez. O Cenáculo é o lugar da instituição deste santíssimo sacramento. Foi lá que
Jesus tomou nas suas mãos o pão, partiu-o e deu-o aos seus discípulos, dizendo: « Tomai,
todos, e comei: Isto é o meu Corpo que será entregue por vós » (cf. Mt 26, 26;
Lc 22, 19; 1 Cor 11, 24). Depois, tomou nas suas mãos o cálice com vinho e
disse-lhes: « Tomai, todos, e bebei: Este é o cálice do meu Sangue, o Sangue da nova e
eterna aliança, que será derramado por vós e por todos para remissão dos pecados » (cf.
Mc 14, 24; Lc 22, 20; 1 Cor 11, 25). Dou graças ao Senhor Jesus por me
ter permitido repetir no mesmo lugar, obedecendo ao seu mandato: « Fazei isto em memória
de Mim » (Lc 22, 19), as palavras por Ele pronunciadas há dois mil anos.
Teriam os Apóstolos, que tomaram parte na Última Ceia, entendido o
significado das palavras saídas dos lábios de Cristo? Talvez não. Aquelas palavras seriam
esclarecidas plenamente só no fim do Triduum Sacrum, ou seja, aquele período de
tempo que vai da tarde de Quinta-feira Santa até à manhã do Domingo de Páscoa. Nestes
dias, está contido o mysterium paschale; neles está incluído também o mysterium
eucharisticum.
3. Do mistério pascal nasce a Igreja. Por isso mesmo a Eucaristia, que é o
sacramento por excelência do mistério pascal, está colocada no centro da vida eclesial.
Isto é visível desde as primeiras imagens da Igreja que nos dão os Actos do Apóstolos:
« Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à união fraterna, à fracção do pão, e às
orações » (2, 42). Na « fracção do pão », é evocada a Eucaristia. Dois mil anos depois,
continuamos a realizar aquela imagem primordial da Igreja. E, ao fazê-lo na celebração
eucarística, os olhos da alma voltam-se para o Tríduo Pascal: para o que se realizou na
noite de Quinta-feira Santa, durante a Última Ceia, e nas horas sucessivas. De facto, a
instituição da Eucaristia antecipava, sacramentalmente, os acontecimentos que teriam lugar
pouco depois, a começar da agonia no Getsémani. Revemos Jesus que sai do Cenáculo, desce
com os discípulos, atravessa a torrente do Cedron e chega ao Horto das Oliveiras. Existem
ainda hoje naquele lugar algumas oliveiras muito antigas; talvez tenham sido testemunhas
do que aconteceu junto delas naquela noite, quando Cristo, em oração, sentiu uma angústia
mortal « e o seu suor tornou-se-Lhe como grossas gotas de sangue, que caíam na terra » (Lc
22, 44). O sangue que, pouco antes, tinha entregue à Igreja como vinho de salvação no
sacramento eucarístico, começava a ser derramado; a sua efusão completar-se-ia
depois no Gólgota, tornando-se o instrumento da nossa redenção: « Cristo, vindo como Sumo
Sacerdote dos bens futuros [...] entrou uma só vez no Santo dos Santos, não com o sangue
dos carneiros ou dos bezerros, mas com o seu próprio sangue, tendo obtido uma redenção
eterna » (Heb 9, 11-12).
4. A hora da nossa redenção. Embora profundamente turvado, Jesus
não foge ao ver chegar a sua « hora »: « E que direi Eu? Pai, salva-Me desta hora? Mas por
causa disto é que cheguei a esta hora! » (Jo 12, 27). Quer que os discípulos Lhe
façam companhia, mas deve experimentar a solidão e o abandono: « Nem sequer pudestes
vigiar uma hora Comigo. Vigiai e orai para não cairdes em tentação » (Mt 26,
40-41). Aos pés da cruz, estará apenas João ao lado de Maria e das piedosas mulheres. A
agonia no Getsémani foi o prelúdio da agonia na cruz de Sexta-feira Santa. A hora santa,
a hora da redenção do mundo. Quando se celebra a Eucaristia na basílica do Santo Sepulcro,
em Jerusalém, volta-se de modo quase palpável à « hora » de Jesus, a hora da cruz e da
glorificação. Até àquele lugar e àquela hora se deixa transportar em espírito cada
presbítero ao celebrar a Santa Missa, juntamente com a comunidade cristã que nela
participa.
« Foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos;
ressuscitou ao terceiro dia ». Estes artigos da profissão de fé ecoam nas seguintes
palavras de contemplação e proclamação: Ecce lignum crucis in quo salus mundi pependit.
Venite adoremus - « Eis o madeiro da Cruz, no qual esteve suspenso o Salvador do
mundo. Vinde adoremos! » É o convite que a Igreja faz a todos na tarde de Sexta-feira
Santa. E, quando voltar novamente a cantar já no tempo pascal, será para proclamar:
Surrexit Dominus de sepulcro qui pro nobis pependit in ligno. Alleluia - « Ressuscitou
do sepulcro o Senhor que por nós esteve suspenso no madeiro. Aleluia ».
5. Mysterium fidei! - « Mistério da fé ». Quando o sacerdote
pronuncia ou canta estas palavras, os presentes aclamam: « Anunciamos, Senhor, a vossa
morte, proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus! ».
Com estas palavras ou outras semelhantes, a Igreja, ao mesmo tempo que
apresenta Cristo no mistério da sua Paixão, revela também o seu próprio mistério:
Ecclesia de Eucharistia. Se é com o dom do Espírito Santo, no Pentecostes, que a
Igreja nasce e se encaminha pelas estradas do mundo, um momento decisivo da sua formação
foi certamente a instituição da Eucaristia no Cenáculo. O seu fundamento e a sua fonte é
todo o Triduum Paschale, mas este está de certo modo guardado, antecipado e
« concentrado » para sempre no dom eucarístico. Neste, Jesus Cristo entregava à Igreja a
actualização perene do mistério pascal. Com ele, instituía uma misteriosa
« contemporaneidade » entre aquele Triduum e o arco inteiro dos séculos.
Este pensamento suscita em nós sentimentos de grande e reconhecido enlevo.
Há, no evento pascal e na Eucaristia que o actualiza ao longo dos séculos, uma
« capacidade » realmente imensa, na qual está contida a história inteira, enquanto
destinatária da graça da redenção. Este enlevo deve invadir sempre a assembleia eclesial
reunida para a celebração eucarística; mas, de maneira especial, deve inundar o ministro
da Eucaristia, o qual, pela faculdade recebida na Ordenação sacerdotal, realiza a
consagração; é ele, com o poder que lhe vem de Cristo, do Cenáculo, que pronuncia: « Isto
é o meu Corpo que será entregue por vós »; « este é o cálice do meu Sangue, [...] que será
derramado por vós ». O sacerdote pronuncia estas palavras ou, antes, coloca a sua boca
e a sua voz à disposição d'Aquele que as pronunciou no Cenáculo e quis que fossem
repetidas de geração em geração por todos aqueles que, na Igreja, participam
ministerialmente do seu sacerdócio.
6. É este « enlevo » eucarístico que desejo despertar com esta carta
encíclica, que dá continuidade à herança jubilar que quis entregar à Igreja com a carta
apostólica
Novo millennio ineunte e o seu coroamento mariano – a carta apostólica
Rosarium Virginis Mariæ. Contemplar o rosto de Cristo e contemplá-lo com Maria é o
« programa » que propus à Igreja na aurora do terceiro milénio, convidando-a a fazer-se ao
largo no mar da história lançando-se com entusiasmo na nova evangelização. Contemplar
Cristo implica saber reconhecê-Lo onde quer que Ele Se manifeste, com as suas diversas
presenças mas sobretudo no sacramento vivo do seu corpo e do seu sangue. A Igreja vive
de Jesus eucarístico, por Ele é nutrida, por Ele é iluminada. A Eucaristia é mistério
de fé e, ao mesmo tempo, « mistério de luz ».(3)Sempre
que a Igreja a celebra, os fiéis podem de certo modo reviver a experiência dos dois
discípulos de Emaús: « Abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-No » (Lc 24, 31).
7. Desde quando iniciei o ministério de Sucessor de Pedro, sempre quis
contemplar a Quinta-feira Santa, dia da Eucaristia e do Sacerdócio, com um sinal de
particular atenção enviando uma carta a todos os sacerdotes do mundo. Neste vigésimo
quinto ano do meu Pontificado, desejo envolver mais plenamente a Igreja inteira nesta
reflexão eucarística para agradecer ao Senhor especialmente pelo dom da Eucaristia e do
sacerdócio: « Dom e mistério ».(4) Se, ao
proclamar o Ano do Rosário, quis pôr este meu vigésimo quinto ano sob o signo da
contemplação de Cristo na escola de Maria, não posso deixar passar esta Quinta-feira
Santa de 2003 sem me deter diante do « rosto eucarístico » de Jesus, propondo à Igreja,
com renovado ardor, a centralidade da Eucaristia. Dela vive a Igreja; nutre-se deste « pão
vivo ». Por isso senti a necessidade de exortar a todos a experimentá-lo sempre de novo.
8. Quando penso na Eucaristia e olho para a minha vida de sacerdote, de
Bispo, de Sucessor de Pedro, espontaneamente ponho-me a recordar tantos momentos e lugares
onde tive a dita de celebrá-la. Recordo a igreja paroquial de Niegowić, onde desempenhei o
meu primeiro encargo pastoral, a colegiada de S. Floriano em Cracóvia, a catedral do Wawel,
a basílica de S. Pedro e tantas basílicas e igrejas de Roma e do mundo inteiro. Pude
celebrar a Santa Missa em capelas situadas em caminhos de montanha, nas margens dos lagos,
à beira do mar; celebrei-a em altares construídos nos estádios, nas praças das cidades...
Este cenário tão variado das minhas celebrações eucarísticas faz-me experimentar
intensamente o seu carácter universal e, por assim dizer, cósmico. Sim, cósmico! Porque
mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre
celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo. Une o céu e a terra. Abraça e
impregna toda a criação. O Filho de Deus fez-Se homem para, num supremo acto de louvor,
devolver toda a criação Àquele que a fez surgir do nada. Assim, Ele, o sumo e eterno
Sacerdote, entrando com o sangue da sua cruz no santuário eterno, devolve ao Criador e Pai
toda a criação redimida. Fá-lo através do ministério sacerdotal da Igreja, para glória da
Santíssima Trindade. Verdadeiramente este é o mysterium fidei que se realiza na
Eucaristia: o mundo saído das mãos de Deus criador volta a Ele redimido por Cristo.
9. A Eucaristia, presença salvífica de Jesus na comunidade dos fiéis e seu
alimento espiritual, é o que de mais precioso pode ter a Igreja no seu caminho ao longo da
história. Assim se explica a cuidadosa atenção que ela sempre reservou ao mistério
eucarístico, uma atenção que sobressai com autoridade no magistério dos Concílios e dos
Sumos Pontífices. Como não admirar as exposições doutrinais dos decretos sobre a
Santíssima Eucaristia e sobre o Santo Sacrifício da Missa promulgados pelo Concílio de
Trento? Aquelas páginas guiaram a teologia e a catequese nos séculos sucessivos,
permanecendo ainda como ponto de referência dogmático para a incessante renovação e
crescimento do povo de Deus na sua fé e amor à Eucaristia. Em tempos mais recentes, há que
mencionar três encíclicas: a encíclica Miræ caritatis de Leão XIII (28 de Maio de
1902),(5) a encíclica
Mediator Dei de Pio XII (20 de Novembro de 1947) (6)
e a encíclica
Mysterium fidei de Paulo VI (3 de Setembro de 1965).(7)
O Concílio Vaticano II, embora não tenha publicado qualquer documento
específico sobre o mistério eucarístico, todavia ilustra os seus vários aspectos no
conjunto dos documentos, especialmente na constituição dogmática sobre a Igreja Lumen
gentium e na constituição sobre a sagrada Liturgia Sacrosanctum concilium.
Eu mesmo, nos primeiros anos do meu ministério apostólico na Cátedra de
Pedro, tive oportunidade de tratar alguns aspectos do mistério eucarístico e da sua
incidência na vida daquele que é o seu ministro, com a carta apostólica Dominicæ Cenæ
(24 de Fevereiro de 1980).(8) Hoje retomo o fio
daquele discurso com o coração transbordante de emoção e gratidão, dando eco às palavras
do Salmista: « Que darei eu ao Senhor por todos os seus benefícios? Elevarei o cálice da
salvação invocando o nome do Senhor » (Sal 116/115, 12-13).
10. A este esforço de anúncio por parte do Magistério correspondeu um
crescimento interior da comunidade cristã. Não há dúvida que a reforma litúrgica do
Concílio trouxe grandes vantagens para uma participação mais consciente, activa e
frutuosa dos fiéis no santo sacrifício do altar. Mais ainda, em muitos lugares, é dedicado
amplo espaço à adoração do Santíssimo Sacramento, tornando-se fonte inesgotável de
santidade. A devota participação dos fiéis na procissão eucarística da solenidade do Corpo
e Sangue de Cristo é uma graça do Senhor que anualmente enche de alegria quantos nela
participam. E mais sinais positivos de fé e de amor eucarísticos se poderiam mencionar.
A par destas luzes, não faltam sombras, infelizmente.De facto, há
lugares onde se verifica um abandono quase completo do culto de adoração eucarística. Num
contexto eclesial ou outro, existem abusos que contribuem para obscurecer a recta fé e a
doutrina católica acerca deste admirável sacramento. Às vezes transparece uma compreensão
muito redutiva do mistério eucarístico. Despojado do seu valor sacrificial, é vivido como
se em nada ultrapassasse o sentido e o valor de um encontro fraterno ao redor da mesa.
Além disso, a necessidade do sacerdócio ministerial, que assenta na sucessão apostólica,
fica às vezes obscurecida, e a sacramentalidade da Eucaristia é reduzida à simples
eficácia do anúncio. Aparecem depois, aqui e além, iniciativas ecuménicas que, embora bem
intencionadas, levam a práticas na Eucaristia contrárias à disciplina que serve à Igreja
para exprimir a sua fé. Como não manifestar profunda mágoa por tudo isto? A Eucaristia é
um dom demasiado grande para suportar ambiguidades e reduções.
Espero que esta minha carta encíclica possa contribuir eficazmente para
dissipar as sombras de doutrinas e práticas não aceitáveis, a fim de que a Eucaristia
continue a resplandecer em todo o fulgor do seu mistério.
CAPÍTULO I
MISTÉRIO DA FÉ
11. « O Senhor Jesus, na noite em que foi entregue » (1 Cor 11,
23), instituiu o sacrifício eucarístico do seu corpo e sangue. As palavras do apóstolo
Paulo recordam-nos as circunstâncias dramáticas em que nasceu a Eucaristia.Esta tem
indelevelmente inscrito nela o evento da paixão e morte do Senhor. Não é só a sua
evocação, mas presença sacramental. É o sacrifício da cruz que se perpetua através dos
séculos.(9) Esta verdade está claramente expressa
nas palavras com que o povo, no rito latino, responde à proclamação « mistério da fé »
feita pelo sacerdote: « Anunciamos, Senhor, a vossa morte ».
A Igreja recebeu a Eucaristia de Cristo seu Senhor, não como um dom,
embora precioso, entre muitos outros, mas como o dom por excelência, porque dom
d'Ele mesmo, da sua Pessoa na humanidade sagrada, e também da sua obra de salvação. Esta
não fica circunscrita no passado, pois « tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por
todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em
todos se torna presente ».(10)
Quando a Igreja celebra a Eucaristia, memorial da morte e ressurreição do
seu Senhor, este acontecimento central de salvação torna-se realmente presente e
« realiza-se também a obra da nossa redenção ».(11)
Este sacrifício é tão decisivo para a salvação do género humano que Jesus Cristo
realizou-o e só voltou ao Pai depois de nos ter deixado o meio para dele participarmos
como se tivéssemos estado presentes. Assim cada fiel pode tomar parte nela,
alimentando-se dos seus frutos inexauríveis. Esta é a fé que as gerações cristãs viveram
ao longo dos séculos, e que o magistério da Igreja tem continuamente reafirmado com
jubilosa gratidão por dom tão inestimável.(12) É
esta verdade que desejo recordar mais uma vez, colocando-me convosco, meus queridos irmãos
e irmãs, em adoração diante deste Mistério: mistério grande, mistério de misericórdia. Que
mais poderia Jesus ter feito por nós?Verdadeiramente, na Eucaristia demonstra-nos um amor
levado até ao « extremo » (cf. Jo 13, 1), um amor sem medida.
12. Este aspecto de caridade universal do sacramento eucarístico está
fundado nas próprias palavras do Salvador. Ao instituí-lo, não Se limitou a dizer « isto é
o meu corpo », « isto é o meu sangue », mas acrescenta: « entregue por vós (...) derramado
por vós » (Lc 22, 19-20). Não se limitou a afirmar que o que lhes dava a comer e a
beber era o seu corpo e o seu sangue, mas exprimiu também o seu valor sacrificial,
tornando sacramentalmente presente o seu sacrifício, que algumas horas depois realizaria
na cruz pela salvação de todos. « A Missa é, ao mesmo tempo e inseparavelmente, o memorial
sacrificial em que se perpetua o sacrifício da cruz e o banquete sagrado da comunhão do
corpo e sangue do Senhor ».(13)
A Igreja vive continuamente do sacrifício redentor, e tem acesso a ele não
só através duma lembrança cheia de fé, mas também com um contacto actual, porque este
sacrifício volta a estar presente, perpetuando-se, sacramentalmente, em cada
comunidade que o oferece pela mão do ministro consagrado. Deste modo, a Eucaristia aplica
aos homens de hoje a reconciliação obtida de uma vez para sempre por Cristo para
humanidade de todos os tempos. Com efeito, « o sacrifício de Cristo e o sacrifício da
Eucaristia são um único sacrifício ».(14)
Já o afirmava em palavras expressivas S. João Crisóstomo: « Nós oferecemos sempre o mesmo
Cordeiro, e não um hoje e amanhã outro, mas sempre o mesmo. Por este motivo, o sacrifício
é sempre um só. [...] Também agora estamos a oferecer a mesma vítima que então foi
oferecida e que jamais se exaurirá ».(15)
A Missa torna presente o sacrifício da cruz; não é mais um, nem o
multiplica.(16) O que se repete é a celebração
memorial, a « exposição memorial » (memorialis demonstratio),(17)
de modo que o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo se actualiza
incessantemente no tempo. Portanto, a natureza sacrificial do mistério eucarístico não
pode ser entendida como algo isolado, independente da cruz ou com uma referência apenas
indirecta ao sacrifício do Calvário.
13. Em virtude da sua íntima relação com o sacrifício do Gólgota, a
Eucaristia é sacrifício em sentido próprio, e não apenas em sentido genérico como
se se tratasse simplesmente da oferta de Cristo aos fiéis para seu alimento espiritual.
Com efeito, o dom do seu amor e da sua obediência até ao extremo de dar a vida (cf. Jo
10,17-18) é em primeiro lugar um dom a seu Pai. Certamente, é um dom em nosso favor,
antes em favor de toda a humanidade (cf. Mt 26, 28; Mc 14, 24; Lc 22,
20; Jo 10, 15), mas primariamente um dom ao Pai: « Sacrifício que o Pai
aceitou, retribuindo esta doação total de seu Filho, que Se fez “obediente até à morte” (Flp
2, 8), com a sua doação paterna, ou seja, com o dom da nova vida imortal na
ressurreição ».(18)
Ao entregar à Igreja o seu sacrifício, Cristo quis também assumir o
sacrifício espiritual da Igreja, chamada por sua vez a oferecer-se a si própria juntamente
com o sacrifício de Cristo. Assim no-lo ensina o Concílio Vaticano II: « Pela participação
no sacrifício eucarístico de Cristo, fonte e centro de toda a vida cristã, [os fiéis]
oferecem a Deus a vítima divina e a si mesmos juntamente com ela ».(19)
14. A Páscoa de Cristo inclui, juntamente com a paixão e morte, a sua
ressurreição. Assim o lembra a aclamação da assembleia depois da consagração: « Proclamamos
a vossa ressurreição ». Com efeito, o sacrifício eucarístico torna presente não só o
mistério da paixão e morte do Salvador, mas também o mistério da ressurreição, que dá ao
sacrifício a sua coroação. Por estar vivo e ressuscitado é que Cristo pode tornar-Se « pão
da vida » (Jo 6, 35.48), « pão vivo » (Jo 6, 51), na Eucaristia. S. Ambrósio
lembrava aos neófitos esta verdade, aplicando às suas vidas o acontecimento da
ressurreição: « Se hoje Cristo é teu, Ele ressuscita para ti cada dia ».(20)
Por sua vez, S. Cirilo de Alexandria sublinhava que a participação nos santos mistérios
« é uma verdadeira confissão e recordação de que o Senhor morreu e voltou à vida por nós e
em nosso favor ».(21)
15. A reprodução sacramental na Santa Missa do sacrifício de Cristo
coroado pela sua ressurreição implica uma presença muito especial, que – para usar
palavras de Paulo VI – « chama-se “real”, não a título exclusivo como se as outras
presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela
se torna presente Cristo completo, Deus e homem ».(22)
Reafirma-se assim a doutrina sempre válida do Concílio de Trento: « Pela consagração do
pão e do vinho opera-se a conversão de toda a substância do pão na substância do corpo de
Cristo nosso Senhor, e de toda a substância do vinho na substância do seu sangue; a esta
mudança, a Igreja católica chama, de modo conveniente e apropriado, transubstanciação ».(23)
Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos
pensamentos e só pode ser aceite pela fé, como lembram frequentemente as catequeses
patrísticas sobre este sacramento divino. « Não hás-de ver – exorta S. Cirilo de Jerusalém
– o pão e o vinho [consagrados] simplesmente como elementos naturais, porque o Senhor
disse expressamente que são o seu corpo e o seu sangue: a fé t'o assegura, ainda que os
sentidos possam sugerir-te outra coisa ».(24)
« Adoro te devote, latens Deitas »: continuaremos a cantar com S.
Tomás, o Doutor Angélico. Diante deste mistério de amor, a razão humana experimenta toda a
sua limitação. Compreende-se como, ao longo dos séculos, esta verdade tenha estimulado a
teologia a árduos esforços de compreensão.
São esforços louváveis, tanto mais úteis e incisivos se capazes de
conjugarem o exercício crítico do pensamento com a « vida de fé » da Igreja, individuada
especialmente « no carisma da verdade » do Magistério e na « íntima inteligência que
experimentam das coisas espirituais » (25)
sobretudo os Santos. Permanece o limite apontado por Paulo VI: « Toda a explicação
teológica que queira penetrar de algum modo neste mistério, para estar de acordo com a fé
católica deve assegurar que na sua realidade objectiva, independentemente do nosso
entendimento, o pão e o vinho deixaram de existir depois da consagração, de modo que a
partir desse momento são o corpo e o sangue adoráveis do Senhor Jesus que estão realmente
presentes diante de nós sob as espécies sacramentais do pão e do vinho ».(26)
16. A eficácia salvífica do sacrifício realiza-se plenamente na comunhão,
ao recebermos o corpo e o sangue do Senhor. O sacrifício eucarístico está particularmente
orientado para a união íntima dos fiéis com Cristo através da comunhão: recebemo-Lo a Ele
mesmo que Se ofereceu por nós, o seu corpo entregue por nós na cruz, o seu sangue
« derramado por muitos para a remissão dos pecados » (Mt 26, 28). Recordemos as
suas palavras: « Assim como o Pai, que vive, Me enviou e Eu vivo pelo Pai, assim também o
que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). O próprio Jesus nos assegura que tal
união, por Ele afirmada em analogia com a união da vida trinitária, se realiza
verdadeiramente. A Eucaristia é verdadeiro banquete, onde Cristo Se oferece como
alimento. A primeira vez que Jesus anunciou este alimento, os ouvintes ficaram perplexos e
desorientados, obrigando o Mestre a insistir na dimensão real das suas palavras: « Em
verdade, em verdade vos digo: Se não comerdes a carne do Filho do Homem e não beberdes o
seu sangue, não tereis a vida em vós » (Jo 6, 53). Não se trata de alimento em
sentido metafórico, mas « a minha carne é, em verdade, uma comida, e o meu sangue é, em
verdade, uma bebida » (Jo 6, 55).
17. Através da comunhão do seu corpo e sangue, Cristo comunica-nos também
o seu Espírito. Escreve S. Efrém: « Chamou o pão seu corpo vivo, encheu-o de Si próprio e
do seu Espírito. [...] E aquele que o come com fé, come Fogo e Espírito. [...] Tomai e
comei-o todos; e, com ele, comei o Espírito Santo. De facto, é verdadeiramente o meu
corpo, e quem o come viverá eternamente ».(27) A
Igreja pede este Dom divino, raiz de todos os outros dons, na epiclese eucarística. Assim
reza, por exemplo, a Divina Liturgia de S. João Crisóstomo: « Nós vos invocamos,
pedimos e suplicamos: enviai o vosso Santo Espírito sobre todos nós e sobre estes dons,
[...] para que sirvam a quantos deles participarem de purificação da alma, remissão dos
pecados, comunicação do Espírito Santo ».(28) E,
no Missal Romano, o celebrante suplica: « Fazei que, alimentando-nos do Corpo e
Sangue do vosso Filho, cheios do seu Espírito Santo, sejamos em Cristo um só corpo e um só
espírito ».(29) Assim, pelo dom do seu corpo e
sangue, Cristo aumenta em nós o dom do seu Espírito, já infundido no Baptismo e recebido
como « selo » no sacramento da Confirmação.
18. A aclamação do povo depois da consagração termina com as palavras « Vinde,
Senhor Jesus », justamente exprimindo a tensão escatológica que caracteriza a
celebração eucarística (cf. 1 Cor 11, 26). A Eucaristia é tensão para a meta,
antegozo da alegria plena prometida por Cristo (cf. Jo 15, 11); de certa forma, é
antecipação do Paraíso, « penhor da futura glória ».(30)A
Eucaristia é celebrada na ardente expectativa de Alguém, ou seja, « enquanto esperamos a
vinda gloriosa de Jesus Cristo nosso Salvador ».(31)
Quem se alimenta de Cristo na Eucaristia não precisa de esperar o Além para receber a vida
eterna: já a possui na terra, como primícias da plenitude futura, que envolverá o
homem na sua totalidade. De facto, na Eucaristia recebemos a garantia também da
ressurreição do corpo no fim do mundo: « Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a
vida eterna e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia » (Jo 6, 54). Esta garantia da
ressurreição futura deriva do facto de a carne do Filho do Homem, dada em alimento, ser o
seu corpo no estado glorioso de ressuscitado. Pela Eucaristia, assimila-se, por assim
dizer, o « segredo » da ressurreição. Por isso, S. Inácio de Antioquia justamente definia
o Pão eucarístico como « remédio de imortalidade, antídoto para não morrer ».(32)
19. A tensão escatológica suscitada pela Eucaristia exprime e consolida
a comunhão com a Igreja celeste. Não é por acaso que, nas Anáforas orientais e nas
Orações Eucarísticas latinas, se lembra com veneração Maria sempre Virgem, Mãe do nosso
Deus e Senhor Jesus Cristo, os anjos, os santos apóstolos, os gloriosos mártires e todos
os santos. Trata-se dum aspecto da Eucaristia que merece ser assinalado: ao celebrarmos o
sacrifício do Cordeiro unimo-nos à liturgia celeste, associando-nos àquela multidão imensa
que grita: « A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro »
(Ap 7, 10). A Eucaristia é verdadeiramente um pedaço de céu que se abre sobre a
terra; é um raio de glória da Jerusalém celeste, que atravessa as nuvens da nossa história
e vem iluminar o nosso caminho.
20. Consequência significativa da tensão escatológica presente na
Eucaristia é o estímulo que dá à nossa caminhada na história, lançando uma semente de
activa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres. De facto se a
visão cristã leva a olhar para o « novo céu » e a « nova terra » (Ap 21, 1), isso
não enfraquece, antes estimula o nosso sentido de responsabilidade pela terra presente.(33)
Desejo reafirmá-lo com vigor ao início do novo milénio, para que os cristãos se sintam
ainda mais decididos a não descurar os seus deveres de cidadãos terrenos. Têm o dever de
contribuir com a luz do Evangelho para a edificação de um mundo à medida do homem e
plenamente conforme ao desígnio de Deus.
Muitos são os problemas que obscurecem o horizonte do nosso tempo. Basta
pensar quanto seja urgente trabalhar pela paz, colocar sólidas premissas de justiça e
solidariedade nas relações entre os povos, defender a vida humana desde a concepção até ao
seu termo natural. E também que dizer das mil contradições dum mundo « globalizado », onde
parece que os mais débeis, os mais pequenos e os mais pobres pouco podem esperar? É neste
mundo que tem de brilhar a esperança cristã! Foi também para isto que o Senhor quis ficar
connosco na Eucaristia, inserindo nesta sua presença sacrificial e comensal a promessa
duma humanidade renovada pelo seu amor. É significativo que, no lugar onde os Sinópticos
narram a instituição da Eucaristia, o evangelho de João proponha, ilustrando assim o seu
profundo significado, a narração do « lava-pés », gesto este que faz de Jesus mestre de
comunhão e de serviço (cf. Jo 13, 1-20). O apóstolo Paulo, por sua vez, qualifica
como « indi- gna » duma comunidade cristã a participação na Ceia do Senhor que se
verifique num contexto de discórdia e de indiferença pelos pobres (cf. 1 Cor 11,
17-22.27-34).(34)
Anunciar a morte do Senhor « até que Ele venha » (1 Cor 11, 26)
inclui, para os que participam na Eucaristia, o compromisso de transformarem a vida, de
tal forma que esta se torne, de certo modo, toda « eucarística ». São precisamente este
fruto de transfiguração da existência e o empenho de transformar o mundo segundo o
Evangelho que fazem brilhar a tensão escatológica da celebração eucarística e de toda a
vida cristã: « Vinde, Senhor Jesus! » (cf. Ap 22, 20).
CAPÍTULO II
A EUCARISTIA EDIFICA A IGREJA
21. O Concílio Vaticano II veio recordar que a celebração eucarística está
no centro do processo de crescimento da Igreja. De facto, depois de afirmar que « a
Igreja, ou seja, o Reino de Cristo já presente em mistério, cresce visivelmente no mundo
pelo poder de Deus »,(35) querendo de algum modo
responder à questão sobre o modo como cresce, acrescenta: « Sempre que no altar se celebra
o sacrifício da cruz, no qual “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1 Cor 5, 7),
realiza-se também a obra da nossa redenção. Pelo sacramento do pão eucarístico, ao mesmo
tempo é representada e se realiza a unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em
Cristo (cf. 1 Cor 10, 17) ».(36)
Existe um influxo causal da Eucaristia nas próprias origens da
Igreja. Os evangelistas especificam que foram os Doze, os Apóstolos, que estiveram
reunidos com Jesus na Última Ceia (cf. Mt 26, 20; Mc 14, 17; Lc 22,
14). Trata-se de um detalhe de notável importância, porque os Apóstolos « foram a semente
do novo Israel e ao mesmo tempo a origem da sagrada Hierarquia ».(37)
Ao oferecer-lhes o seu corpo e sangue como alimento, Cristo envolvia-os misteriosamente no
sacrifício que iria consumar-se dentro de poucas horas no Calvário. De modo análogo à
aliança do Sinai, que foi selada com um sacrifício e a aspersão do sangue,(38)
os gestos e as palavras de Jesus na Última Ceia lançavam os alicerces da nova comunidade
messiânica, povo da nova aliança.
No Cenáculo, os Apóstolos, tendo aceite o convite de Jesus: « Tomai, comei
[...]. Bebei dele todos » (Mt 26, 26.27), entraram pela primeira vez em comunhão
sacramental com Ele. Desde então e até ao fim dos séculos, a Igreja edifica-se através da
comunhão sacramental com o Filho de Deus imolado por nós: « Fazei isto em minha memória
[...]. Todas as vezes que o beberdes, fazei-o em minha memória » (1 Cor 11, 24-25;
cf. Lc 22, 19).
22. A incorporação em Cristo, realizada pelo Baptismo, renova-se e
consolida-se continuamente através da participação no sacrifício eucarístico, sobretudo na
sua forma plena que é a comunhão sacramental. Podemos dizer não só que cada um de nós
recebe Cristo, mas também que Cristo recebe cada um de nós. Ele intensifica a
sua amizade connosco: « Chamei-vos amigos » (Jo 15, 14). Mais ainda, nós vivemos
por Ele: « O que Me come viverá por Mim » (Jo 6, 57). Na comunhão eucarística,
realiza-se de modo sublime a inabitação mútua de Cristo e do discípulo: « Permanecei em
Mim e Eu permanecerei em vós » (Jo 15, 4).
Unindo-se a Cristo, o povo da nova aliança não se fecha em si mesmo; pelo
contrário, torna-se « sacramento » para a humanidade,(39)
sinal e instrumento da salvação realizada por Cristo, luz do mundo e sal da terra (cf.
Mt 5, 13-16) para a redenção de todos.(40) A
missão da Igreja está em continuidade com a de Cristo: « Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós » (Jo 20, 21). Por isso, a Igreja tira a força espiritual
de que necessita para levar a cabo a sua missão da perpetuação do sacrifício da cruz na
Eucaristia e da comunhão do corpo e sangue de Cristo. Deste modo, a Eucaristia
apresenta-se como fonte e simultaneamente vértice de toda a evangelização,
porque o seu fim é a comunhão dos homens com Cristo e, n'Ele, com o Pai e com o Espírito
Santo.(41)
23. Pela comunhão eucarística, a Igreja é consolidada igualmente na sua
unidade de corpo de Cristo. A este efeito unificador que tem a participação no
banquete eucarístico, alude S. Paulo quando diz aos coríntios: « O pão que partimos não é
a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos,
formamos um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão » (1 Cor 10, 16-17).
Concreto e profundo, S. João Crisóstomo comenta: « Com efeito, o que é o pão? É o corpo de
Cristo. E em que se transformam aqueles que o recebem?No corpo de Cristo; não muitos
corpos, mas um só corpo. De facto, tal como o pão é um só apesar de constituído por muitos
grãos, e estes, embora não se vejam, todavia estão no pão, de tal modo que a sua diferença
desapareceu devido à sua perfeita e recíproca fusão, assim também nós estamos unidos
reciprocamente entre nós e, todos juntos, com Cristo ».(42)
A argumentação é linear: a nossa união com Cristo, que é dom e graça para cada um, faz com
que, n'Ele, sejamos parte também do seu corpo total que é a Igreja. A Eucaristia consolida
a incorporação em Cristo operada no Baptismo pelo dom do Espírito (cf. 1 Cor 12,
13.27).
A acção conjunta e indivisível do Filho e do Espírito Santo, que está na
origem da Igreja, tanto da sua constituição como da sua continuidade, opera na Eucaristia.
Bem ciente disto, o autor da Liturgia de S. Tiago, na epiclese da anáfora, pede a
Deus Pai que envie o Espírito Santo sobre os fiéis e sobre os dons, para que o corpo e o
sangue de Cristo « sirvam a todos os que deles participarem [...] de santificação para as
almas e os corpos ».(43) A Igreja é fortalecida
pelo Paráclito divino através da santificação eucarística dos fiéis.
24. O dom de Cristo e do seu Espírito, que recebemos na comunhão
eucarística, realiza plena e sobreabundantemente os anseios de unidade fraterna que vivem
no coração humano e ao mesmo tempo eleva esta experiência de fraternidade, que é a
participação comum na mesma mesa eucarística, a níveis que estão muito acima da mera
experiência dum banquete humano. Pela comunhão do corpo de Cristo, a Igreja consegue cada
vez mais profundamente ser, « em Cristo, como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento
da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano ».(44)
Aos germes de desagregação tão enraizados na humanidade por causa do
pecado, como demonstra a experiência quotidiana, contrapõe-se a força geradora de
unidade do corpo de Cristo. A Eucaristia, construindo a Igreja, cria por isso mesmo
comunidade entre os homens.
25. O culto prestado à Eucaristia fora da Missa é de um valor
inestimável na vida da Igreja, e está ligado intimamente com a celebração do sacrifício
eucarístico. A presença de Cristo nas hóstias consagradas que se conservam após a Missa –
presença essa que perdura enquanto subsistirem as espécies do pão do vinho
(45) – resulta da celebração da Eucaristia e
destina-se à comunhão, sacramental e espiritual.(46)Compete
aos Pastores, inclusive pelo testemunho pessoal, estimular o culto eucarístico, de modo
particular as exposições do Santíssimo Sacramento e também as visitas de adoração a Cristo
presente sob as espécies eucarísticas(47)
É bom demorar-se com Ele e, inclinado sobre o seu peito como o discípulo
predilecto (cf. Jo 13, 25), deixar-se tocar pelo amor infinito do seu coração. Se
actualmente o cristianismo se deve caracterizar sobretudo pela « arte da oração »,(48)
como não sentir de novo a necessidade de permanecer longamente, em diálogo espiritual,
adoração silenciosa, atitude de amor, diante de Cristo presente no Santíssimo Sacramento?
Quantas vezes, meus queridos irmãos e irmãs, fiz esta experiência, recebendo dela força,
consolação, apoio!
Desta prática, muitas vezes louvada e recomendada pelo Magistério,(49)
deram-nos o exemplo numerosos Santos. De modo particular, distinguiu-se nisto S. Afonso
Maria de Ligório, que escrevia: « A devoção de adorar Jesus sacramentado é, depois dos
sacramentos, a primeira de todas as devoções, a mais agradável a Deus e a mais útil para
nós ».(50) A Eucaristia é um tesouro
inestimável: não só a sua celebração, mas também o permanecer diante dela fora da Missa
permite-nos beber na própria fonte da graça. Uma comunidade cristã que queira contemplar
melhor o rosto de Cristo, segundo o espírito que sugeri nas cartas apostólicas
Novo millennio ineunte e
Rosarium Virginis Mariæ, não pode deixar de desenvolver também este aspecto do
culto eucarístico, no qual perduram e se multiplicam os frutos da comunhão do corpo e
sangue do Senhor.
CAPÍTULO III
A APOSTOLICIDADE
DA EUCARISTIA E DA IGREJA
26. Se a Eucaristia edifica a Igreja e a Igreja faz a Eucaristia, como
antes recordei, consequentemente há entre ambas uma conexão estreitíssima, podendo nós
aplicar ao mistério eucarístico os atributos que dizemos da Igreja quando professamos, no
Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que é « una, santa, católica e apostólica ». Também a
Eucaristia é una e católica; e é santa, antes, é o Santíssimo Sacramento. Mas é
principalmente sobre a sua apostolicidade que agora queremos concentrar a nossa atenção.
27. Quando o Catecismo da Igreja Católica explica em que sentido a
Igreja se diz apostólica, ou seja, fundada sobre os Apóstolos, individua na expressão um
tríplice sentido. O primeiro significa que a Igreja « foi e continua a ser construída
sobre o “alicerce dos Apóstolos” (Ef 2, 20), testemunhas escolhidas e enviadas em
missão pelo próprio Cristo ».(51) Ora, no caso
da Eucaristia, os Apóstolos também estão na sua base: naturalmente o sacramento remonta ao
próprio Cristo, mas foi confiado por Jesus aos Apóstolos e depois transmitido por eles e
seus sucessores até nós. É em continuidade com a acção dos Apóstolos e obedecendo ao
mandato do Senhor que a Igreja celebra a Eucaristia ao longo dos séculos.
O segundo sentido que o Catecismo indica para a apostolicidade da
Igreja é este: ela « guarda e transmite, com a ajuda do Espírito Santo que nela habita, a
doutrina, o bom depósito, as sãs palavras recebidas dos Apóstolos ».(52)
Também neste sentido a Eucaristia é apostólica, porque é celebrada de acordo com a fé dos
Apóstolos. Diversas vezes na história bimilenária do povo da nova aliança, o magistério
eclesial especificou a doutrina eucarística, nomeadamente quanto à sua exacta
terminologia, precisamente para salvaguardar a fé apostólica neste excelso mistério. Esta
fé permanece imutável, e é essencial para a Igreja que assim continue.
28. Por último, a Igreja é apostólica enquanto « continua a ser ensinada,
santificada e dirigida pelos Apóstolos até ao regresso de Cristo, graças àqueles que lhes
sucedem no ofício pastoral: o Colégio dos Bispos, assistido pelos presbíteros, em união
com o Sucessor de Pedro, Pastor supremo da Igreja ».(53)
Para suceder aos Apóstolos na missão pastoral é necessário o sacramento da Ordem, graças a
uma série ininterrupta, desde as origens, de Ordenações episcopais válidas.(54)
Esta sucessão é essencial, para que exista a Igreja em sentido próprio e pleno.
A Eucaristia apresenta também este sentido da apostolicidade. De facto,
como ensina o Concílio Vaticano II, « os fiéis por sua parte concorrem para a oblação da
Eucaristia, em virtude do seu sacerdócio real »,(55)mas
é o sacerdote ministerial que « realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de
Cristo e oferece-o a Deus em nome de todo o povo ».(56)Por
isso se prescreve no Missal Romano que seja unicamente o sacerdote a recitar a
oração eucarística, enquanto o povo se lhe associa com fé e em silêncio.(57)
29. A afirmação, várias vezes feita no Concílio Vaticano II, de que « o
sacerdote ministerial realiza o sacrifício eucarístico fazendo as vezes de Cristo (in
persona Christi) »,(58) estava já bem
radicada no magistério pontifício.(59) Como já
tive oportunidade de esclarecer noutras ocasiões, a expressão in persona Christi
« quer dizer algo mais do que “em nome”, ou então “nas vezes” de Cristo. In persona,
isto é, na específica e sacramental identificação com o Sumo e Eterno Sacerdote, que é o
Autor e o principal Sujeito deste seu próprio sacrifício, no que verdadeiramente não pode
ser substituído por ninguém ».(60) Na economia
de salvação escolhida por Cristo, o ministério dos sacerdotes que receberam o sacramento
da Ordem manifesta que a Eucaristia, por eles celebrada, é um dom que supera
radicalmente o poder da assembleia e, em todo o caso, é insubstituível para ligar
validamente a consagração eucarística ao sacrifício da cruz e à Última Ceia.
A assembleia que se reúne para a celebração da Eucaristia necessita
absolutamente de um sacerdote ordenado que a ela presida, para poder ser verdadeiramente
uma assembleia eucarística. Por outro lado, a comunidade não é capaz de dotar-se por si só
do ministro ordenado. Este é um dom que ela recebe através da sucessão episcopal que
remonta aos Apóstolos. É o Bispo que constitui, pelo sacramento da Ordem, um novo
presbítero, conferindo-lhe o poder de consagrar a Eucaristia. Por isso, « o mistério
eucarístico não pode ser celebrado em nenhuma comunidade a não ser por um sacerdote
ordenado, como ensinou expressamente o Concílio Ecuménico Lateranense IV ».(61)
30. Tanto esta doutrina da Igreja Católica sobre o ministério sacerdotal
na sua relação com a Eucaristia, como a referente ao sacrifício eucarístico foram, nos
últimos decénios, objecto de profícuo diálogo no âmbito da acção ecuménica.
Devemos dar graças à Santíssima Trindade pelos
significativos progressos e aproximações que se verificaram e que nos ajudam a esperar um
futuro de plena partilha da fé. Permanece plenamente válida ainda a observação
feita pelo Concílio Vaticano II acerca das Comunidades eclesiais surgidas no ocidente
depois do século XVI e separadas da Igreja Católica: « Embora falte às Comunidades
eclesiais de nós separadas a unidade plena connosco proveniente do Baptismo, e embora
creamos que elas não tenham conservado a genuína e íntegra substância do mistério
eucarístico, sobretudo por causa da falta do sacramento da Ordem, contudo, quando na santa
Ceia comemoram a morte e a ressurreição do Senhor, elas confessam ser significada a vida
na comunhão de Cristo e esperam o seu glorioso advento ».(62)
Por isso, os fiéis católicos,
embora respeitando as convicções religiosas destes seus irmãos separados, devem abster-se
de participar na comunhão distribuída nas suas celebrações, para não dar o seu aval a
ambiguidades sobre a natureza da Eucaristia e, consequentemente, faltar à sua obrigação de
testemunhar com clareza a verdade. Isso acabaria por atrasar o caminho para a plena
unidade visível. De igual modo, não se pode pensar em substituir a Missa do domingo por
celebrações ecuménicas da Palavra, encontros de oração comum com cristãos pertencentes às
referidas Comunidades eclesiais, ou pela participação no seu serviço litúrgico. Tais
celebrações e encontros, em si mesmos louváveis quando em circunstâncias oportunas,
preparam para a almejada comunhão plena incluindo a comunhão eucarística, mas não podem
substituí-la.
Além disso, o facto de o poder de consagrar a Eucaristia ter sido confiado
apenas aos Bispos e aos presbíteros não constitui qualquer rebaixamento para o resto do
povo de Deus, já que na comunhão do único corpo de Cristo, que é a Igreja, este dom
redunda em benefício de todos.
31. Se a Eucaristia é centro e vértice da vida da Igreja, é-o igualmente
do ministério sacerdotal. Por isso, com espírito repleto de gratidão a Jesus Cristo nosso
Senhor, volto a afirmar que a Eucaristia « é a principal e central razão de ser do
sacramento do Sacerdócio, que nasceu efectivamente no momento da instituição da Eucaristia
e juntamente com ela ».(63)
Muitas são as actividades pastorais do presbítero. Se depois se pensa às
condições sócio-culturais do mundo actual, é fácil ver como grava sobre ele o perigo da
dispersão pelo grande número e diversidade de tarefas. O Concílio Vaticano II
individuou como vínculo, que dá unidade à sua vida e às suas actividades, a caridade
pastoral. Esta – acrescenta o Concílio – « flui sobretudo do sacrifício eucarístico, que
permanece o centro e a raiz de toda a vida do presbítero ».(64)
Compreende-se, assim, quão importante seja para a sua vida espiritual, e depois para o bem
da Igreja e do mundo, que o sacerdote ponha em prática a recomendação conciliar de
celebrar diariamente a Eucaristia, « porque, mesmo que não possa ter a presença dos fiéis,
é acto de Cristo e da Igreja ».(65) Deste modo,
ele será capaz de vencer toda a dispersão ao longo do dia, encontrando no sacrifício
eucarístico, verdadeiro centro da sua vida e do seu ministério, a energia espiritual
necessária para enfrentar as diversas tarefas pastorais. Assim, os seus dias tornar-se-ão
verdadeiramente eucarísticos.
Da centralidade da Eucaristia na vida e no ministério dos sacerdotes
deriva também a sua centralidade na pastoral em prol das vocações sacerdotais.
Primeiro, porque a oração pelas vocações encontra nela o lugar de maior união com a oração
de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote; e, depois, porque a solícita atenção dos sacerdotes
pelo ministério eucarístico, juntamente com a promoção da participação consciente, activa
e frutuosa dos fiéis na Eucaristia, constituem exemplo eficaz e estímulo para uma resposta
generosa dos jovens ao apelo de Deus. Com frequência, Ele serve-Se do exemplo de zelosa
caridade pastoral dum sacerdote para semear e fazer crescer no coração do jovem o germe da
vocação ao sacerdócio.
32. Tudo isto comprova como é triste e anómala a situação duma comunidade
cristã que, embora se apresente quanto a número e variedade de fiéis como uma paróquia,
todavia não tem um sacerdote que a guie. De facto, a paróquia é uma comunidade de
baptizados que exprime e afirma a sua identidade, sobretudo através da celebração do
sacrifício eucarístico; mas isto requer a presença dum presbítero, o único a quem compete
oferecer a Eucaristia in persona Christi. Quando uma comunidade está privada do
sacerdote, procura-se justamente remediar para que de algum modo continuem as celebrações
dominicais; e os religiosos ou os leigos que guiam os seus irmãos e irmãs na oração
exercem de modo louvável o sacerdócio comum de todos os fiéis, baseado na graça do
Baptismo. Mas tais soluções devem ser consideradas provisórias, enquanto a comunidade
espera um sacerdote.
A deficiência sacramental destas celebrações deve, antes de mais nada,
levar toda a comunidade a rezar mais fervorosamente ao Senhor para que mande trabalhadores
para a sua messe (cf. Mt 9, 38); e estimulá-la a pôr em prática todos os demais
elementos constitutivos duma adequada pastoral vocacional, sem ceder à tentação de
procurar soluções que passem pela atenuação das qualidades morais e formativas requeridas
nos candidatos ao sacerdócio.
33. Quando, devido à escassez de sacerdotes, foi confiada a fiéis não
ordenados uma participação no cuidado pastoral duma paróquia, eles tenham presente que,
como ensina o Concílio Vaticano II, « nenhuma comunidade cristã se edifica sem ter a sua
raiz e o seu centro na celebração eucarística ».(66)
Portanto, hão-de pôr todo o cuidado em manter viva na comunidade uma verdadeira « fome »
da Eucaristia, que leve a não perder qualquer ocasião de ter a celebração da Missa,
valendo-se nomeadamente da presença eventual de um sacerdote não impedido pelo direito da
Igreja de celebrá-la.
CAPÍTULO IV
A EUCARISTIA E A COMUNHÃO ECLESIAL
34. Em 1985, a Assembleia extraordinária do Sínodo dos Bispos reconheceu a
« eclesiologia da comunhão » como a ideia central e fundamental dos documentos do Concílio
Vaticano II.(67) Enquanto durar a sua
peregrinação aqui na terra, a Igreja é chamada a conservar e promover tanto a comunhão com
a Trindade divina como a comunhão entre os fiéis. Para isso, possui a Palavra e os
sacramentos, sobretudo a Eucaristia; desta « vive e cresce »,(68)
e ao mesmo tempo exprime-se nela. Não foi sem razão que o termo comunhão se tornou
um dos nomes específicos deste sacramento excelso.
Daí que a Eucaristia se apresente como o sacramento culminante para levar
à perfeição a comunhão com Deus Pai através da identificação com o seu Filho Unigénito por
obra do Espírito Santo. Com grande intuição de fé, um insigne escritor de tradição
bizantina assim exprimia esta verdade: na Eucaristia, « mais do que em qualquer outro
sacramento, o mistério [da comunhão] é tão perfeito que conduz ao apogeu de todos os bens:
nela está o termo último de todo o desejo humano, porque nela alcançamos Deus e Deus
une-Se connosco pela união mais perfeita ».(69)
Por isso mesmo, é conveniente cultivar continuamente na alma o desejo do sacramento da
Eucaristia. Daqui nasceu a prática da « comunhão espiritual » em uso na Igreja há
séculos, recomendada por santos mestres de vida espiritual. Escrevia S. Teresa de Jesus:
« Quando não comungais e não participais na Missa, comungai espiritualmente, porque é
muito vantajoso. [...] Deste modo, imprime-se em vós muito do amor de nosso Senhor ».(70)
35. Entretanto a celebração da Eucaristia não pode ser o ponto de partida
da comunhão, cuja existência pressupõe, visando a sua consolidação e perfeição. O
sacramento exprime esse vínculo de comunhão quer na dimensão invisível que em
Cristo, pela acção do Espírito Santo, nos une ao Pai e entre nós, quer na dimensão
visível que implica a comunhão com a doutrina dos Apóstolos, os sacramentos e a ordem
hierárquica. A relação íntima entre os elementos invisíveis e os elementos visíveis da
comunhão eclesial é constitutiva da Igreja enquanto sacramento de salvação.(71)
Somente neste contexto, tem lugar a celebração legítima da Eucaristia e a autêntica
participação nela. Por isso, uma exigência intrínseca da Eucaristia é que seja celebrada
na comunhão e, concretamente, na integridade dos seus vínculos.
36. A comunhão invisível, embora por natureza esteja sempre em
crescimento, supõe a vida da graça, pela qual nos tornamos « participantes da natureza
divina » (cf. 2 Ped 1, 4), e a prática das virtudes da fé, da esperança e da
caridade. De facto, só deste modo se pode ter verdadeira comunhão com o Pai, o Filho e o
Espírito Santo. Não basta a fé; mas é preciso perseverar na graça santificante e na
caridade, permanecendo na Igreja com o « corpo » e o « coração »; (72)
ou seja, usando palavras de S. Paulo, é necessária « a fé que actua pela caridade » (Gal
5, 6).
A integridade dos vínculos invisíveis é um dever moral concreto do cristão
que queira participar plenamente na Eucaristia, comungando o corpo e o sangue de Cristo.
Um tal dever, recorda-o o referido Apóstolo com a advertência seguinte: « Examine-se cada
qual a si mesmo e, então, coma desse pão e beba desse cálice » (1 Cor 11, 28). Com
a sua grande eloquência, S. João Crisóstomo assim exortava os fiéis: « Também eu levanto a
voz e vos suplico, peço e esconjuro para não vos abeirardes desta Mesa sagrada com uma
consciência manchada e corrompida. De facto, uma tal aproximação nunca poderá chamar-se
comunhão, ainda que toquemos mil vezes o corpo do Senhor, mas condenação, tormento e
redobrados castigos ».(73)
Nesta linha, o Catecismo da Igreja Católica estabelece justamente:
« Aquele que tiver consciência dum pecado grave, deve receber o sacramento da
Reconciliação antes de se aproximar da Comunhão ».(74)
Desejo, por conseguinte, reafirmar que vigora ainda e sempre há-de vigorar na Igreja a
norma do Concílio de Trento que concretiza a severa advertência do apóstolo Paulo, ao
afirmar que, para uma digna recepção da Eucaristia, « se deve fazer antes a confissão dos
pecados, quando alguém está consciente de pecado mortal ».(75)
37. A Eucaristia e a Penitência são dois sacramentos intimamente unidos.
Se a Eucaristia torna presente o sacrifício redentor da cruz, perpetuando-o
sacramentalmente, isso significa que deriva dela uma contínua exigência de conversão, de
resposta pessoal à exortação que S. Paulo dirigia aos cristãos de Corinto: « Suplicamo-vos
em nome de Cristo: reconciliai-vos com Deus » (2 Cor 5, 20). Se, para além disso, o
cristão tem na consciência o peso dum pecado grave, então o itinerário da penitência
através do sacramento da Reconciliação torna-se caminho obrigatório para se abeirar e
participar plenamente do sacrifício eucarístico.
Tratando-se de uma avaliação de consciência, obviamente o juízo sobre o
estado de graça compete apenas ao interessado; mas, em casos de comportamento externo de
forma grave, ostensiva e duradoura contrário à norma moral, a Igreja, na sua solicitude
pastoral pela boa ordem comunitária e pelo respeito do sacramento, não pode deixar de
sentir-se chamada em causa. A esta situação de manifesta infracção moral se refere a norma
do Código de Direito Canónico relativa à não admissão à comunhão eucarística de
quantos « obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto ».(76)
38. A comunhão eclesial, como atrás recordei, é também visível,
manifestando-se nos vínculos elencados pelo próprio Concílio Vaticano II quando ensina:
« São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de
Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que,
pelos laços da profissão da fé, dos sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se
unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos
Bispos ».(77)
A Eucaristia, como suprema manifestação sacramental da comunhão na Igreja,
exige para ser celebrada um contexto de integridade dos laços, inclusive externos, de
comunhão. De modo especial, sendo ela « como que a perfeição da vida espiritual e o
fim para que tendem todos os sacramentos »,(78)
requer que sejam reais os laços de comunhão nos sacramentos, particularmente no Baptismo e
na Ordem sacerdotal. Não é possível dar a comunhão a uma pessoa que não esteja baptizada
ou que rejeite a verdade integral de fé sobre o mistério eucarístico. Cristo é a verdade,
e dá testemunho da verdade (cf. Jo 14, 6; 18, 37); o sacramento do seu corpo e
sangue não consente ficções.
39. Além disso, em virtude do carácter próprio da comunhão eclesial e da
relação que o sacramento da Eucaristia tem com a mesma, convém recordar que « o sacrifício
eucarístico, embora se celebre sempre numa comunidade particular, nunca é uma celebração
apenas dessa comunidade: de facto esta, ao receber a presença eucarística do Senhor,
recebe o dom integral da salvação e manifesta-se assim, apesar da sua configuração
particular que continua visível, como imagem e verdadeira presença da Igreja una, santa,
católica e apostólica ».(79) Daí que uma
comunidade verdadeiramente eucarística não possa fechar-se em si mesma, como se fosse
auto-suficiente, mas deve permanecer em sintonia com todas as outras comunidades
católicas.
A comunhão eclesial da assembleia eucarística é comunhão com o próprio
Bispo e com o Romano Pontífice. Com efeito, o Bispo é o princípio visível e o
fundamento da unidade na sua Igreja particular.(80)
Seria, por isso, uma grande incongruência celebrar o sacramento por excelência da unidade
da Igreja sem uma verdadeira comunhão com o Bispo. Escrevia S. Inácio de Antioquia: « Seja
tida como legítima somente aquela Eucaristia que é presidida pelo Bispo ou por quem ele
encarregou ».(81) De igual modo, visto que « o
Romano Pontífice, como sucessor de Pedro, é perpétuo e visível fundamento da unidade não
só dos Bispos mas também da multidão dos fiéis »,(82)
a comunhão com ele é uma exigência intrínseca da celebração do sacrifício eucarístico.
Esta grande verdade é expressa de vários modos pela Liturgia: « Cada celebração
eucarística é feita em união não só com o próprio Bispo mas também com o Papa, com a Ordem
episcopal, com todo o clero e com todo o povo. Toda a celebração válida da Eucaristia
exprime esta comunhão universal com Pedro e com toda a Igreja ou, como no caso das Igrejas
cristãs separadas de Roma, assim a reclama objectivamente ».(83)
40. A Eucaristia cria comunhão e educa para a comunhão. Ao
escrever aos fiéis de Corinto, S. Paulo fazia-lhes ver como as suas divisões, que se davam
nas assembleias eucarísticas, estavam em contraste com o que celebravam – a Ceia do
Senhor. E convidava-os, por isso, a reflectirem sobre a verdadeira realidade da
Eucaristia, para fazê-los voltar ao espírito de comunhão fraterna (cf. 1 Cor 11,
17-34). Encontramos um válido eco desta exigência em S. Agostinho quando, depois de
recordar a afirmação do Apóstolo « vós sois corpo de Cristo e seus membros » (1 Cor
12, 27), observava: « Se sois o corpo de Cristo e seus membros, é o vosso sacramento que
está colocado sobre a mesa do Senhor; é o vosso sacramento que recebeis ».(84)
E daí concluía: « Cristo Senhor [...] consagrou na sua mesa o sacramento da nossa paz e
unidade. Quem recebe o sacramento da unidade, sem conservar o vínculo da paz, não recebe
um sacramento para seu benefício, mas antes uma condenação ».(85)
41. Esta eficácia peculiar que tem
a Eucaristia para promover a comunhão é um dos motivos da importância da Missa dominical.
Já me detive sobre esta e outras razões que a tornam fundamental para a vida da Igreja e
dos fiéis, na carta apostólica sobre a
santificação do domingo
Dies Domini,(86) recordando, para além
do mais, que participar na Missa é uma obrigação dos fiéis, a não ser que tenham um
impedimento grave, pelo que aos Pastores impõe-se o correlativo dever de oferecerem a
todos a possibilidade efectiva de cumprirem o preceito.(87)
Mais tarde, na carta apostólica
Novo millennio ineunte, ao traçar o caminho pastoral da Igreja no início do
terceiro milénio, quis assinalar de modo
particular a Eucaristia dominical, sublinhando a sua eficácia para criar comunhão:
« É o lugar privilegiado, onde a comunhão é constantemente anunciada e fomentada.
Precisamente através da participação eucarística,
o dia do Senhor torna-se também o dia da Igreja, a qual poderá assim
desempenhar de modo eficaz a sua missão de sacramento de unidade ».(88)
42. A defesa e promoção da comunhão eclesial é tarefa de todo o fiel, que
encontra na Eucaristia, enquanto sacramento da unidade da Igreja, um campo de especial
solicitude. De forma mais concreta e com particular responsabilidade, a referida tarefa
recai sobre os Pastores da Igreja, segundo o grau e o ministério eclesiástico próprio de
cada um. Por isso, a Igreja estabeleceu normas que visam promover o acesso frequente e
frutuoso dos fiéis à mesa eucarística e simultaneamente determinar as condições objectivas
nas quais se deve abster de administrar a comunhão. O cuidado com que se favorece a sua
fiel observância torna-se uma expressão efectiva de amor à Eucaristia e à Igreja.
43. Quando se considera a
Eucaristia como sacramento da comunhão eclesial, há um tema que, pela sua importância, não
pode ser transcurado: refiro-me à sua relação com o empenho ecuménico. Todos
devemos dar graças à Santíssima Trindade porque, nestas últimas décadas em todo o mundo,
muitos fiéis foram contagiados pelo desejo ardente da unidade entre todos os cristãos. O
Concílio Vaticano II, ao princípio do seu decreto sobre o ecumenismo, considera isto como
um dom especial de Deus.(89) Foi uma
graça eficaz que fez caminhar pela senda ecuménica tanto a nós, filhos da Igreja Católica,
como aos nossos irmãos das outras Igrejas e Comunidades eclesiais.
A aspiração por chegar à meta da unidade impele-nos a voltar o olhar para
a Eucaristia, que é o sacramento supremo da unidade do povo de Deus, a sua condigna
expressão e fonte insuperável.(90) Na celebração
do sacrifício eucarístico, a Igreja eleva a sua prece a Deus, Pai de misericórdia, para
que conceda aos seus filhos a plenitude do Espírito Santo de modo que se tornem em Cristo
um só corpo e um só espírito.(91) Quando
apresenta esta súplica ao Pai das luzes, do Qual provém toda a boa dádiva e todo o dom
perfeito (cf. Tg 1, 17), a Igreja acredita na eficácia da mesma, porque ora em
união com Cristo, Cabeça e Esposo, o Qual assume a súplica da Esposa unindo-a à do seu
sacrifício redentor.
44. Precisamente porque a unidade da Igreja, que a Eucaristia realiza por
meio do sacrifício e da comunhão do corpo e sangue do Senhor, comporta a exigência
imprescindível duma completa comunhão nos laços da profissão de fé, dos sacramentos e do
governo eclesiástico, não é possível concelebrar a liturgia eucarística enquanto não for
restabelecida a integridade de tais laços. A referida concelebração não seria um meio
válido, podendo mesmo revelar-se um obstáculo, para se alcançar a plena comunhão,
atenuando o sentido da distância da meta e introduzindo ou dando aval a ambiguidades sobre
algumas verdades da fé. O caminho para a plena união só pode ser construído na verdade.
Neste ponto, a interdição na lei da Igreja não deixa espaço a incertezas,(92)
atendo-se à norma moral proclamada pelo Concílio Vaticano II.(93)
No entanto quero reafirmar as palavras que ajuntei, na carta encíclica
Ut unum sint, depois de reconhecer a impossibilidade da partilha eucarística: « E
todavia nós temos o desejo ardente de celebrar juntos a única Eucaristia do Senhor, e este
desejo torna-se já um louvor comum, uma mesma imploração. Juntos dirigimo-nos ao Pai e
fazemo-lo cada vez mais com um só coração ».(94)
45. Se não é legítima em caso algum a concelebração quando falta a plena
comunhão, o mesmo não acontece relativamente à administração da Eucaristia, em
circunstâncias especiais, a indivíduos pertencentes a Igrejas ou Comunidades eclesiais
que não estão em plena comunhão com a Igreja Católica. De facto, neste caso tem-se como
objectivo prover a uma grave necessidade espiritual em ordem à salvação eterna dos fiéis,
e não realizar uma intercomunhão, o que é impossível
enquanto não forem plenamente reatados os laços
visíveis da comunhão eclesial.
Nesta direcção se moveu o Concílio Vaticano II ao fixar como comportar-se
com os Orientais que de boa fé se acham separados da Igreja Católica, quando
espontaneamente pedem para receber a Eucaristia do ministro católico e estão bem
preparados.(95) Tal modo de proceder seria
depois ratificado por ambos os Códigos canónicos, nos quais é contemplado também, com os
devidos ajustamentos, o caso dos outros cristãos não orientais que não estão em plena
comunhão com a Igreja Católica.(96)
46. Na encíclica
Ut unum sint, manifestei a minha complacência por esta norma que consente prover à
salvação das almas, com o devido discernimento: « É motivo de alegria lembrar que os
ministros católicos podem, em determinados casos particulares, administrar os sacramentos
da Eucaristia, da Penitência e da Unção dos Enfermos a outros cristãos que não estão em
plena comunhão com a Igreja Católica, mas que desejam ardentemente recebê-los, pedem-nos
livremente e manifestam a fé que a Igreja Católica professa nestes sacramentos.
Reciprocamente, em determinados casos e por circunstâncias particulares, os católicos
também podem recorrer, para os mesmos sacramentos, aos ministros daquelas Igrejas onde
eles são válidos »(97)
É preciso reparar bem nestas condições que são imprescindíveis, mesmo
tratando-se de determinados casos particulares, porque a rejeição duma ou mais verdades de
fé relativas a estes sacramentos, contando-se entre elas a necessidade do sacerdócio
ministerial para serem válidos, deixa o requerente impreparado para uma legítima recepção
dos mesmos. E, vice-versa, também um fiel católico não poderá receber a comunhão numa
comunidade onde falte o sacramento da Ordem.(98)
A fiel observância do conjunto das normas estabelecidas nesta matéria
(99) é prova e simultaneamente garantia de amor
por Jesus Cristo no Santíssimo Sacramento, pelos irmãos de outra confissão cristã aos
quais é devido o testemunho da verdade, e ainda pela própria causa da promoção da unidade.
CAPÍTULO V
O DECORO DA CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
47. Quando alguém lê o relato da instituição da Eucaristia nos Evangelhos
Sinópticos, fica admirado ao ver a simplicidade e simultaneamente a dignidade com que
Jesus, na noite da Última Ceia, institui este grande sacramento. Há um episódio que, de
certo modo, lhe serve de prelúdio: é a unção de Betânia. Uma mulher, que João
identifica como sendo Maria, irmã de Lázaro, derrama sobre a cabeça de Jesus um vaso de
perfume precioso, suscitando nos discípulos – particularmente em Judas (Mt 26,
8; Mc 14, 4; Jo 12, 4) – uma reacção de protesto contra tal gesto que, em
face das necessidades dos pobres, constituía um « desperdício » intolerável. Mas Jesus faz
uma avaliação muito diferente: sem nada tirar ao dever da caridade para com os
necessitados, aos quais sempre se hão-de dedicar os discípulos – « Pobres, sempre os
tereis convosco » (Jo 12, 8; cf. Mt 26, 11; Mc 14, 7) –, Ele pensa no
momento já próximo da sua morte e sepultura, considerando a unção que Lhe foi feita como
uma antecipação daquelas honras de que continuará a ser digno o seu corpo mesmo depois da
morte, porque indissoluvelmente ligado ao mistério da sua pessoa.
Nos Evangelhos Sinópticos, a narração continua com o encargo dado por
Jesus aos discípulos para fazerem uma cuidadosa preparação da « grande sala »,
necessária para comer a ceia pascal (cf. Mc 14, 15; Lc 22, 12), e com a
descrição da instituição da Eucaristia. Deixando entrever, pelo menos em parte, o
desenrolar dos ritos hebraicos da ceia pascal até ao canto do « Hallel » (cf. Mt
26, 30; Mc 14, 26), o relato, de maneira tão concisa como solene, embora com
variantes nas diversas tradições, refere as palavras pronunciadas por Cristo sobre o pão e
sobre o vinho, assumidos por Ele como expressões concretas do seu corpo entregue e do seu
sangue derramado. Todos estes particulares são recordados pelos evangelistas à luz duma
prática, consolidada já na Igreja primitiva, da « fracção do pão ». O certo é que, desde o
tempo histórico de Jesus, no acontecimento de Quinta-feira Santa são visíveis os traços
duma « sensibilidade » litúrgica, modulada sobre a tradição do Antigo Testamento e pronta
a remodular-se na celebração cristã em sintonia com o novo conteúdo da Páscoa.
48. Tal como a mulher da unção de Betânia, a Igreja não temeu
« desperdiçar », investindo o melhor dos seus recursos para exprimir o seu enlevo e
adoração diante do dom incomensurável da Eucaristia. À semelhança dos primeiros
discípulos encarregados de preparar a « grande sala », ela sentiu-se impelida, ao longo
dos séculos e no alternar-se das culturas, a celebrar a Eucaristia num ambiente digno de
tão grande mistério. Foi sob o impulso das palavras e gestos de Jesus, desenvolvendo a
herança ritual do judaísmo, que nasceu a liturgia cristã. Porventura haverá algo
que seja capaz de exprimir de forma devida o acolhimento do dom que o Esposo divino
continuamente faz de Si mesmo à Igreja-Esposa, colocando ao alcance das sucessivas
gerações de crentes o sacrifício que ofereceu uma vez por todas na cruz e tornando-Se
alimento para todos os fiéis? Se a ideia do « banquete » inspira familiaridade, a Igreja
nunca cedeu à tentação de banalizar esta « intimidade » com o seu Esposo, recordando-se
que Ele é também o seu Senhor e que, embora « banquete », permanece sempre um banquete
sacrificial, assinalado com o sangue derramado no Gólgota. O Banquete eucarístico é
verdadeiramente banquete « sagrado », onde, na simplicidade dos sinais, se esconde o
abismo da santidade de Deus: O Sacrum convivium, in quo Christus sumitur! - « Ó
Sagrado Banquete, em que se recebe Cristo! » O pão que é repartido nos nossos altares,
oferecido à nossa condição de viandantes pelas estradas do mundo, é « panis angelorum »,
pão dos anjos, do qual só é possível abeirar-se com a humildade do centurião do Evangelho:
« Senhor, eu não sou digno que entres debaixo do meu tecto » (Mt 8, 8; Lc 6,
6).
49. Movida por este elevado sentido do mistério, compreende-se como a fé
da Igreja no mistério eucarístico se tenha exprimido ao longo da história não só através
da exigência duma atitude interior de devoção, mas também mediante uma série de
expressões exteriores, tendentes a evocar e sublinhar a grandeza do acontecimento
celebrado. Daqui nasce o percurso que levou progressivamente a delinear um estatuto
especial de regulamentação da liturgia eucarística, no respeito pelas várias tradições
eclesiais legitimamente constituídas. Sobre a mesma base, se desenvolveu um rico
património de arte. Deixando-se orientar pelo mistério cristão, a arquitectura, a
escultura, a pintura, a música encontraram na Eucaristia, directa ou indirectamente, um
motivo de grande inspiração.
Tal é, por exemplo, o caso da arquitectura que viu a passagem, logo que o
contexto histórico o permitiu, da sede inicial da Eucaristia colocada na « domus »
das famílias cristãs às solenes basílicas dos primeiros séculos, às imponentes
catedrais da Idade Média, até às igrejas, grandes ou pequenas, que pouco a
pouco foram constelando as terras onde o cristianismo chegou. Também as formas dos altares
e dos sacrários se foram desenvolvendo no interior dos espaços litúrgicos, seguindo não só
os motivos da imaginação criadora, mas também os ditames duma compreensão específica do
Mistério. O mesmo se pode dizer da música sacra; basta pensar às inspiradas
melodias gregorianas, aos numerosos e, frequentemente, grandes autores que se afirmaram
com os textos litúrgicos da Santa Missa. E não sobressai porventura uma enorme quantidade
de produções artísticas, desde realizações de um bom artesanato até verdadeiras
obras de arte, no âmbito dos objectos e dos paramentos utilizados na celebração
eucarística?
Deste modo, pode-se afirmar que a Eucaristia, ao mesmo tempo que plasmou a
Igreja e a espiritualidade, incidiu intensamente sobre a « cultura », especialmente no
sector estético.
50. Neste esforço de adoração do mistério, visto na sua perspectiva ritual
e estética, empenharam-se, como se fosse uma « competição », os cristãos do Ocidente e do
Oriente. Como não dar graças ao Senhor especialmente pelo contributo prestado à arte
cristã pelas grandes obras arquitectónicas e pictóricas da tradição greco-bizantina e de
toda a área geográfica e cultural eslava? No Oriente, a arte sacra conservou um sentido
singularmente intenso do mistério, levando os artistas a conceberem o seu empenho na
produção do belo não apenas como expressão do seu génio, mas também como autêntico
serviço à fé. Não se contentando apenas da sua perícia técnica, souberam abrir-se com
docilidade ao sopro do Espírito de Deus.
Os esplendores das arquitecturas e dos mosaicos no Oriente e no Ocidente
cristão são um património universal dos crentes, contendo em si mesmos um voto e – diria –
um penhor da desejada plenitude de comunhão na fé e na celebração. Isto supõe e exige,
como na famosa pintura da Trindade de Rublëv, uma Igreja profundamente « eucarística »,
na qual a partilha do mistério de Cristo no pão repartido esteja de certo modo imersa na
unidade inefável das três Pessoas divinas, fazendo da própria Igreja um « ícone » da
Santíssima Trindade.
Nesta perspectiva duma arte que em todos os seus elementos visa exprimir o
sentido da Eucaristia segundo a doutrina da Igreja, é preciso prestar toda a atenção às
normas que regulamentam a construção e o adorno dos edifícios sacros. A Igreja
sempre deixou largo espaço criativo aos artistas, como a história o demonstra e como eu
mesmo sublinhei na
Carta aos Artistas; (100) mas, a arte
sacra deve caracterizar-se pela sua capacidade de exprimir adequadamente o mistério lido
na plenitude de fé da Igreja e segundo as indicações pastorais oportunamente dadas pela
competente autoridade. Isto vale tanto para as artes figurativas como para a música sacra.
51. O que aconteceu em terras de antiga cristianização no âmbito da arte
sacra e da disciplina litúrgica, está a verificar-se também nos continentes onde o
cristianismo é mais jovem. Tal é a orientação assumida pelo Concílio Vaticano II a
propósito da exigência duma sã e necessária « inculturação ». Nas minhas numerosas viagens
pastorais, pude observar por todo o lado a grande vitalidade de que é capaz a celebração
eucarística em contacto com as formas, os estilos e as sensibilidades das diversas
culturas. Adaptando-se a condições variáveis de tempo e espaço, a Eucaristia oferece
alimento não só aos indivíduos, mas ainda aos próprios povos, e plasma culturas de
inspiração cristã.
Mas é necessário que tão importante trabalho de adaptação seja realizado
na consciência constante deste mistério inefável, com que cada geração é chamada a
encontrar-se. O « tesouro » é demasiado grande e precioso para se correr o risco de o
empobrecer ou prejudicar com experimentações ou práticas introduzidas sem uma cuidadosa
verificação pelas competentes autoridades eclesiásticas. Além disso, a centralidade do
mistério eucarístico requer que tal verificação seja feita em estreita relação com a Santa
Sé. Como escrevia na exortação apostólica pós-sinodal
Ecclesia in Asia, « tal colaboração é essencial porque a Liturgia Sagrada exprime
e celebra a única fé professada por todos e, sendo herança de toda a Igreja, não pode ser
determinada pelas Igreja locais isoladamente da Igreja universal ».(101)
52. De quanto fica dito, compreende-se a grande responsabilidade que têm
sobretudo os sacerdotes na celebração eucarística, à qual presidem in persona Christi,
assegurando um testemunho e um serviço de comunhão não só à comunidade que participa
directamente na celebração, mas também à Igreja universal, sempre mencionada na
Eucaristia. Temos a lamentar, infelizmente, que sobretudo a partir dos anos da reforma
litúrgica pós-conciliar, por um ambíguo sentido de criatividade e adaptação, não
faltaram abusos, que foram motivo de sofrimento para muitos. Uma certa reacção contra
o « formalismo » levou alguns, especialmente em determinadas regiões, a considerarem não
obrigatórias as « formas » escolhidas pela grande tradição litúrgica da Igreja e do seu
magistério e a introduzirem inovações não autorizadas e muitas vezes completamente
impróprias.
Por isso, sinto o dever de fazer um veemente apelo para que as normas
litúrgicas sejam observadas, com grande fidelidade, na celebração eucarística. Constituem
uma expressão concreta da autêntica eclesialidade da Eucaristia; tal é o seu sentido mais
profundo. A liturgia nunca é propriedade privada de alguém, nem do celebrante, nem da
comunidade onde são celebrados os santos mistérios. O apóstolo Paulo teve de dirigir
palavras àsperas à comunidade de Corinto pelas falhas graves na sua celebração
eucarística, que tinham dado origem a divisões (skísmata) e à formação de facções ('airéseis)
(cf. 1 Cor 11, 17-34). Actualmente também deveria ser redescoberta e valorizada a
obediência às normas litúrgicas como reflexo e testemunho da Igreja, una e universal, que
se torna presente em cada celebração da Eucaristia. O sacerdote, que celebra fielmente a
Missa segundo as normas litúrgicas, e a comunidade, que às mesmas adere, demonstram de
modo silencioso mas expressivo o seu amor à Igreja. Precisamente para reforçar este
sentido profundo das normas litúrgicas, pedi aos dicastérios competentes da Cúria Romana
que preparem, sobre este tema de grande importância, um documento específico, incluindo
também referências de carácter jurídico. A ninguém é permitido aviltar este mistério que
está confiado às nossas mãos: é demasiado grande para que alguém possa permitir-se de
tratá-lo a seu livre arbítrio, não respeitando o seu carácter sagrado nem a sua dimensão
universal.
CAPÍTULO VI
NA ESCOLA DE MARIA, MULHER « EUCARÍSTICA »
53. Se quisermos redescobrir em toda a sua riqueza a relação íntima entre
a Igreja e a Eucaristia, não podemos esquecer Maria, Mãe e modelo da Igreja. Na carta
apostólica
Rosarium Virginis Mariæ, depois de indicar a Virgem Santíssima como Mestra na
contemplação do rosto de Cristo, inseri também entre os mistérios da luz a instituição
da Eucaristia.(102) Com efeito, Maria pode
guiar-nos para o Santíssimo Sacramento porque tem uma profunda ligação com ele.
À primeira vista, o Evangelho nada diz a tal respeito. A narração da
instituição, na noite de Quinta-feira Santa, não fala de Maria. Mas sabe-se que Ela estava
presente no meio dos Apóstolos, quando, « unidos pelo mesmo sentimento, se entregavam
assiduamente à oração » (Act 1, 14), na primeira comunidade que se reuniu depois
da Ascensão à espera do Pentecostes. E não podia certamente deixar de estar presente,
nas celebrações eucarísticas, no meio dos fiéis da primeira geração cristã, que eram
assíduos à « fracção do pão » (Act 2, 42).
Para além da sua participação no banquete eucarístico, pode-se delinear a
relação de Maria com a Eucaristia indirectamente a partir da sua atitude interior.
Maria é mulher « eucarística » na totalidade da sua vida. A Igreja, vendo em Maria o
seu modelo, é chamada a imitá-La também na sua relação com este mistério santíssimo.
54. Mysterium fidei! Se a Eucaristia é um mistério de fé que excede
tanto a nossa inteligência que nos obriga ao mais puro abandono à palavra de Deus, ninguém
melhor do que Maria pode servir-nos de apoio e guia nesta atitude de abandono. Todas as
vezes que repetimos o gesto de Cristo na Última Ceia dando cumprimento ao seu mandato:
« Fazei isto em memória de Mim », ao mesmo tempo acolhemos o convite que Maria nos faz
para obedecermos a seu Filho sem hesitação: « Fazei o que Ele vos disser » (Jo 2,
5). Com a solicitude materna manifestada nas bodas de Caná, Ela parece dizer-nos: « Não
hesiteis, confiai na palavra do meu Filho. Se Ele pôde mudar a água em vinho, também é
capaz de fazer do pão e do vinho o seu corpo e sangue, entregando aos crentes, neste
mistério, o memorial vivo da sua Páscoa e tornando-se assim “pão de vida” ».
55. De certo modo, Maria praticou a sua fé eucarística ainda antes
de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação
do Verbo de Deus. A Eucaristia, ao mesmo tempo que evoca a paixão e a ressurreição,
coloca-se no prolongamento da encarnação. E Maria, na anunciação, concebeu o Filho divino
também na realidade física do corpo e do sangue, em certa medida antecipando n'Ela o que
se realiza sacramentalmente em cada crente quando recebe, no sinal do pão e do vinho, o
corpo e o sangue do Senhor.
Existe, pois, uma profunda analogia entre o fiat pronunciado
por Maria, em resposta às palavras do Anjo, e o amen que cada fiel pronuncia quando
recebe o corpo do Senhor. A Maria foi-Lhe pedido para acreditar que Aquele que Ela
concebia « por obra do Espírito Santo » era o « Filho de Deus » (cf. Lc 1, 30-35).
Dando continuidade à fé da Virgem Santa, no mistério eucarístico é-nos pedido para crer
que aquele mesmo Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria, Se torna presente nos sinais do
pão e do vinho com todo o seu ser humano-divino.
« Feliz d'Aquela que acreditou » (Lc 1, 45): Maria antecipou
também, no mistério da encarnação, a fé eucarística da Igreja. E, na visitação, quando
leva no seu ventre o Verbo encarnado, de certo modo Ela serve de « sacrário » – o primeiro
« sacrário » da história –, para o Filho de Deus, que, ainda invisível aos olhos dos
homens, Se presta à adoração de Isabel, como que « irradiando » a sua luz através dos
olhos e da voz de Maria. E o olhar extasiado de Maria, quando contemplava o rosto de
Cristo recém-nascido e O estreitava nos seus braços, não é porventura o modelo inatingível
de amor a que se devem inspirar todas as nossas comunhões eucarísticas?
56. Ao longo de toda a sua existência ao lado de Cristo, e não apenas no
Calvário, Maria viveu a dimensão sacrificial da Eucaristia. Quando levou o menino
Jesus ao templo de Jerusalém, « para O apresentar ao Senhor » (Lc 2, 22), ouviu o
velho Simeão anunciar que aquele Menino seria « sinal de contradição » e que uma
« espada » havia de trespassar também a alma d'Ela (cf. Lc 2, 34-35). Assim foi
vaticinado o drama do Filho crucificado e de algum modo prefigurado o « stabat Mater »
aos pés da Cruz. Preparando-Se dia a dia para o Calvário, Maria vive uma espécie de
« Eucaristia antecipada », dir-se-ia uma « comunhão espiritual » de desejo e oferta, que
terá o seu cumprimento na união com o Filho durante a Paixão, e manifestar-se-á depois, no
período pós-pascal, na sua participação na celebração eucarística, presidida pelos
Apóstolos, como « memorial » da Paixão.
Impossível imaginar os sentimentos de Maria, ao ouvir dos lábios de Pedro,
João, Tiago e restantes apóstolos as palavras da Última Ceia: « Isto é o meu corpo que vai
ser entregue por vós » (Lc 22, 19). Aquele corpo, entregue em sacrifício e presente
agora nas espécies sacramentais, era o mesmo corpo concebido no seu ventre! Receber a
Eucaristia devia significar para Maria quase acolher de novo no seu ventre aquele coração
que batera em uníssono com o d'Ela e reviver o que tinha pessoalmente experimentado junto
da Cruz.
57. « Fazei isto em memória de Mim » (Lc 22, 19). No « memorial »
do Calvário, está presente tudo o que Cristo realizou na sua paixão e morte. Por isso, não
pode faltar o que Cristo fez para com sua Mãe em nosso favor. De facto, entrega-Lhe
o discípulo predilecto e, nele, entrega cada um de nós: « Eis aí o teu filho ». E de igual
modo diz a cada um de nós também: « Eis aí a tua mãe » (cf. Jo 19, 26-27).
Viver o memorial da morte de Cristo na Eucaristia implica também receber
continuamente este dom. Significa levar connosco – a exemplo de João – Aquela que sempre
de novo nos é dada como Mãe. Significa ao mesmo tempo assumir o compromisso de nos
conformarmos com Cristo, entrando na escola da Mãe e aceitando a sua companhia. Maria está
presente, com a Igreja e como Mãe da Igreja, em cada uma das celebrações eucarísticas. Se
Igreja e Eucaristia são um binómio indivisível, o mesmo é preciso afirmar do binómio Maria
e Eucaristia. Por isso mesmo, desde a antiguidade é unânime nas Igrejas do Oriente e do
Ocidente a recordação de Maria na celebração eucarística.
58. Na Eucaristia, a Igreja une-se plenamente a Cristo e ao seu
sacrifício, com o mesmo espírito de Maria. Tal verdade pode-se aprofundar relendo o
Magnificat em perspectiva eucarística. De facto, como o cântico de Maria, também a
Eucaristia é primariamente louvor e acção de graças. Quando exclama: « A minha alma
glorifica ao Senhor e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador », Maria traz
no seu ventre Jesus. Louva o Pai « por » Jesus, mas louva-O também « em » Jesus e « com »
Jesus. É nisto precisamente que consiste a verdadeira « atitude eucarística ».
Ao mesmo tempo Maria recorda as maravilhas operadas por Deus ao longo da
história da salvação, segundo a promessa feita aos nossos pais (cf. Lc 1, 55),
anunciando a maravilha mais sublime de todas: a encarnação redentora. Enfim, no
Magnificat está presente a tensão escatológica da Eucaristia. Cada vez que o Filho de
Deus Se torna presente entre nós na « pobreza » dos sinais sacramentais, pão e vinho, é
lançado no mundo o germe daquela história nova, que verá os poderosos « derrubados dos
seus tronos » e « exaltados os humildes » (cf. Lc 1, 52). Maria canta aquele « novo
céu » e aquela « nova terra », cuja antecipação e em certa medida a « síntese »
programática se encontram na Eucaristia. Se o Magnificat exprime a espiritualidade
de Maria, nada melhor do que esta espiritualidade nos pode ajudar a viver o mistério
eucarístico. Recebemos o dom da Eucaristia, para que a nossa vida, à semelhança da de
Maria, seja toda ela um magnificat!
CONCLUSÃO
59. « Ave, verum corpus natum de Maria Virgine ». Celebrei há
poucos anos as bodas de ouro do meu sacerdócio. Hoje tenho a graça de oferecer à Igreja
esta encíclica sobre a Eucaristia, na Quinta-feira Santa do meu vigésimo quinto ano de
ministério petrino. Faço-o com o coração cheio de gratidão. Há mais de meio século
todos os dias, a começar daquele 2 de Novembro de 1946 quando celebrei a minha Missa Nova
na cripta de S. Leonardo na catedral do Wawel, em Cracóvia, os meus olhos concentram-se
sobre a hóstia e sobre o cálice onde o tempo e o espaço de certo modo estão « contraídos »
e o drama do Gólgota é representado ao vivo, desvendando a sua misteriosa
« contemporaneidade ». Cada dia pôde a minha fé reconhecer no pão e no vinho consagrados
aquele Viandante divino que um dia Se pôs a caminho com os dois discípulos de Emaús para
abrir-lhes os olhos à luz e o coração à esperança (cf. Lc 24, 13-35).
Deixai, meus queridos irmãos e irmãs, que dê com íntima emoção, em
companhia e para conforto da vossa fé, o meu testemunho de fé na Eucaristia: « Ave,
verum corpus natum de Maria Virgine, / vere passum, immolatum, in cruce pro homine! ».
Eis aqui o tesouro da Igreja, o coração do mundo, o penhor da meta pela qual, mesmo
inconscientemente, suspira todo o homem. Mistério grande, que nos excede – é certo – e põe
a dura prova a capacidade da nossa mente em avançar para além das aparências. Aqui os
nossos sentidos falham – « visus, tactus, gustus in te fallitur », diz-se no hino
Adoro te devote –; mas basta-nos simplesmente a fé, radicada na palavra de Cristo
que nos foi deixada pelos Apóstolos. Como Pedro no fim do discurso eucarístico, segundo o
Evangelho de João, deixai que eu repita a Cristo, em nome da Igreja inteira, em nome de
cada um de vós: « Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras de vida eterna » (Jo
6, 68).
60. Na aurora deste terceiro milénio, todos nós, filhos da Igreja, somos
convidados a progredir com renovado impulso na vida cristã. Como escrevi na carta
apostólica
Novo millennio ineunte,
« não se trata de inventar um “programa novo”. O programa já existe: é o mesmo de sempre,
expresso no Evangelho e na Tradição viva. Concentra-se em última análise, no próprio
Cristo, que temos de conhecer, amar, imitar, para n'Ele viver a vida trinitária e com Ele
transformar a história até à sua plenitude na Jerusalém celeste ».(103)
A concretização deste programa de um renovado impulso na vida cristã passa pela
Eucaristia.
Cada esforço de santidade, cada iniciativa para realizar a missão da
Igreja, cada aplicação dos planos pastorais deve extrair a força de que necessita do
mistério eucarístico e orientar-se para ele como o seu ponto culminante. Na Eucaristia,
temos Jesus, o seu sacrifício redentor, a sua ressurreição, temos o dom do Espírito Santo,
temos a adoração, a obediência e o amor ao Pai. Se transcurássemos a Eucaristia, como
poderíamos dar remédio à nossa indigência?
61. O mistério eucarístico – sacrifício, presença, banquete – não
permite reduções nem instrumentalizações; há-de ser vivido na sua integridade, quer na
celebração, quer no colóquio íntimo com Jesus acabado de receber na comunhão, quer no
período da adoração eucarística fora da Missa. Então a Igreja fica solidamente edificada,
e exprime-se o que ela é verdadeiramente: una, santa, católica e apostólica; povo, templo
e família de Deus; corpo e esposa de Cristo, animada pelo Espírito Santo; sacramento
universal de salvação e comunhão hierarquicamente organizada.
O caminho que a Igreja percorre nestes primeiros anos do terceiro milénio
é também caminho de renovado empenho ecuménico. Os últimos decénios do segundo
milénio, com o seu apogeu no Grande Jubileu do ano 2000, impeliram-nos nesta direcção,
convidando todos os baptizados a corresponderem à oração de Jesus « ut unum sint »
(Jo 17, 11). É um caminho longo, cheio de obs- táculos que superam a capacidade
humana; mas temos a Eucaristia e, na sua presença, podemos ouvir no fundo do coração, como
que dirigidas a nós, as mesmas palavras que ouviu o profeta Elias: « Levanta-te e come,
porque ainda tens um caminho longo a percorrer » (1 Re 19, 7). O tesouro
eucarístico, que o Senhor pôs à nossa disposição, incita-nos para a meta que é a sua plena
partilha com todos os irmãos, aos quais estamos unidos pelo mesmo Baptismo. Mas para não
desperdiçar esse tesouro, é preciso respeitar as exigências que derivam do facto de ele
ser sacramento da comunhão na fé e na sucessão apostólica.
Dando à Eucaristia todo o realce que merece e procurando com todo o
cuidado não atenuar nenhuma das suas dimensões ou exigências, damos provas de estar
verdadeiramente conscientes da grandeza deste dom. A isto nos convida uma tradição
ininterrupta desde os primeiros séculos, que mostra a comunidade cristã vigilante na
defesa deste « tesouro ». Movida pelo amor, a Igreja preocupa-se em transmitir às
sucessivas gerações cristãs a fé e a doutrina sobre o mistério eucarístico, sem perder
qualquer fragmento. E não há perigo de exagerar no cuidado que lhe dedicamos, porque,
« neste sacramento, se condensa todo o mistério da nossa salvação ».(104)
62. Meus queridos irmãos e irmãs, vamos à escola dos Santos,
grandes intérpretes da verdadeira piedade eucarística. Neles, a teologia da Eucaristia
adquire todo o brilho duma vivência, « contagia-nos » e, por assim dizer, nos « abrasa ».
Ponhamo-nos sobretudo à escuta de Maria Santíssima, porque n'Ela, como em mais
ninguém, o mistério eucarístico aparece como o mistério da luz. Olhando-A,
conhecemos a força transformadora que possui a Eucaristia. N'Ela, vemos o mundo
renovado no amor. Contemplando-A elevada ao Céu em corpo e alma, vemos um pedaço do « novo
céu » e da « nova terra » que se hão-de abrir diante dos nossos olhos na segunda vinda de
Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e, de algum modo, antecipação: «
Veni, Domine Iesu » (Ap 22, 20)!
Nos sinais humildes do pão e do vinho transubstanciados no seu corpo e
sangue, Cristo caminha connosco, como nossa força e nosso viático, e torna-nos testemunhas
de esperança para todos. Se a razão experimenta os seus limites diante deste mistério, o
coração iluminado pela graça do Espírito Santo intui bem como comportar-se, entranhando-se
na adoração e num amor sem limites.
Façamos nossos os sentimentos de S. Tomás de Aquino, máximo teólogo e ao
mesmo tempo cantor apaixonado de Jesus eucarístico, e deixemos que o nosso espírito se
abra também na esperança à contemplação da meta pela qual suspira o coração, sedento como
é de alegria e de paz:
« Bone Pastor, panis vere
Iesu, notri miserere... ».
« Bom Pastor, pão da verdade,
Tende de nós piedade,
Conservai-nos na unidade,
Extingui nossa orfandade
E conduzi-nos ao Pai.
Aos mortais dando comida
Dais também o pão da vida:
Que a família assim nutrida
Seja um dia reunida
Aos convivas lá do Céu ».
Dado em Roma, junto de S. Pedro, no dia 17 de Abril, Quinta-feira
Santa, do ano 2003, vigésimo quinto do meu Pontificado e Ano do Rosário.
IOANNES PAULUS II