Jornalista
Descreve Participação de Pastor e Médico Adventista no Genocídio de Ruanda
Entre abril e julho de 1994 mais
de um décimo da população de Ruanda foi exterminada, num genocídio só comparável
ao Holocausto dos judeus sob o nazismo. Patrocinada pelo governo ruandês, a
maioria hutu massacrou a minoria tutsi diante da indiferença da chamada
"comunidade internacional". A tragédia, supostamente motivada pelo "ódio
ancestral" entre as duas etnias, teve na verdade origens políticas e econômicas
muito concretas.
Durante três anos, o jornalista
norte-americano Philip Gourevitch mergulhou na realidade ruandesa para tentar
desvendar o amplo contexto cultural, político e étnico dos acontecimentos. Ouviu
centenas de pessoas, reconstituindo o drama pessoal dos envolvidos na tragédia,
fossem eles sobreviventes, assassinos ou cúmplices. Pesquisou as histórias
recente e remota do país e, ao traçar o desenvolvimento das tensões étnicas em
Ruanda, reuniu indícios suficientes para questionar a atuação dos colonizadores
belgas e de outras potências ocidentais na região.
Lúcido e pungente, o livro é ao
mesmo tempo testemunho e reflexão sobre um dos episódios mais terríveis de nosso
tempo, mostrando como, ainda hoje, a distância entre civilização e barbárie pode
ser curta.
O texto a seguir foi
retirado das páginas 31 a 38 do Livro
"Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos Com Nossas Famílias"
do jornalista Philip Gourevitch (best
seller internacional), publicado pela "Companhia das Letras". Você precisa ler!
Somente lendo o livro, você poderá ter uma idéia de tudo que ocorreu em Rwanda,
e as motivações do acontecido. O livro pode ser encontrado em São Paulo nas
livrarias "Siciliano", ou adquirido através da Internet (link acima).
2.
Se você pudesse andar direto
para o oeste a partir do memorial do massacre em Nyarubuye, atravessando Ruanda
de uma ponta a outra, sobre os morros, pântanos, lagos e rios até a província
de Kibuye, então, um pouco antes de cair no grande mar
interior que é o lago Kivu, você depararia com outra cidade de
montanha. Essa montanha chama-se Mugonero, e ela, também, é coroada por uma
grande igreja.
Embora Ruanda seja
esmagadoramente católica, os protestantes evangelizaram grande parte de Kibuye,
e Mugonero é sede da missão dos Adventistas do Sétimo
Dia. O lugar, com suas construções de tijolos aparentes, lembra
mais o campus de uma faculdade americana que uma aldeia africana. Limpas
alamedas comunicam a grande igreja a uma capela
menor, a uma creche, a uma enfermaria e a um complexo hospitalar
que goza da reputação de oferecer um excelente serviço médico.
Foi no hospital que Samuel
Ndagijimana buscou refúgio
durante as chacinas, e, embora uma das primeiras coisas que ele
me disse tenha sido "Eu esqueço pouco a pouco, logo ficou claro que não
esquecera tanto quanto gostaria.
Samuel trabalhava como
assistente no hospital. Havia entrado no serviço em 1991, aos 25 anos.
Perguntei-lhe sobre sua vida na época que os ruandeses chamam de "Antes” Ele
disse: "Éramos simples cristãos.” Isso era tudo. Eu podia ter perguntado sobre
outra pessoa, que ele houvesse conhecido apenas de passagem e que não lhe dizia
respeito.
Era como se suas primeiras
lembranças verdadeiras fossem dos primeiros dias de abril de
1994, quando ele viu milicianos hutus realizando exercícios
públicos do lado de fora dos prédios governamentais em Mugonero.
"Observávamos os jovens saírem toda noite, e as pessoas
falavam sobre isso no rádio, disse Samuel." Eram apenas membros
dos grupos do Poder Hutu que iam, e aqueles que não participavam eram chamados
de “inimigos”.
No dia 6 de abril, algumas
noites depois que a movimentação
começou, o ditador hutu de longa data, presidente Juvénal
Habyarimana, foi assassinado em Kigali, e uma panelinha de líderes do Poder Hutu
que faziam parte do alto comando militar tomou o poder. "O rádio anunciou que as
pessoas não deviam sair de casa", disse Samuel.
"Começamos a ver grupos de
sujeitos se reunindo
naquela mesma noite, e quando saímos de manhã para trabalhar,
vimos esses grupos junto com os líderes locais do Poder Hutu,
organizando a população. A gente não sabia exatamente o que
havia, só sabia que alguma coisa estava para acontecer.
No trabalho, Samuel observou
"uma mudança de clima”. Ele
disse que "ninguém conversava mais com ninguém, e muitos de seus
colegas passavam todo o tempo em reuniões com um certo dr. Gerard, que não fazia
segredo de seu apoio ao Poder Hutu.
Samuel ficou chocado com isso,
porque o dr. Gerard fora educado nos Estados Unidos, e era filho do presidente
da Igreja Adventista em Kibuye, portanto era visto como
uma figura de grande autoridade, um líder da comunidade - alguém que serve como
exemplo.
Depois de alguns dias, quando
Samuel olhava para o sul,
através do vale, viu casas pegando fogo em aldeias à margem do
lago. Decidiu ficar no hospital da igreja até que os problemas
terminassem, e famílias tutsis de Mugonero e arredores logo tiveram a mesma
idéia. Essa era uma tradição em Ruanda. "Sempre que havia problemas, as pessoas
corriam para a igreja," disse Samuel. "Os pastores eram cristãos."
A gente confiava que nada
aconteceria no local deles. De fato, muitas pessoas de Mugonero me disseram que
o pai do dr. Gerard, o pastor Elizaphan Ntakirutimana, presidente da igreja,
esteve orientando pessoalmente os tutsis a reunir-se no complexo adventista.
Tutsis feridos convergiam para
Mugonero, vindos de todas
as partes da região do lago. Eles vinham pelo mato, tentando evitar
as incontáveis barreiras policiais montadas pelas milícias ao longo da estrada,
e traziam histórias. Alguns contavam como,
alguns quilômetros ao norte, em Gishyita, o prefeito estava tão
frenético em sua impaciência para matar tutsis que milhares haviam sido
chacinados ainda a caminho da igreja para onde ele
os arrebanhara, e ali foram massacrados os que sobraram.
Outros contavam como, alguns
quilômetros ao sul, em Rwamatamu, mais de 10 mil tutsis se refugiaram na câmara
municipal,
e o prefeito havia trazido
caminhões de policiais, soldados e milicianos com armas e granadas
para cercar o local; atrás deles, ele
armara populares com facões,
para o caso de alguém escapar quando a fuzilaria começasse -
e de fato haviam sobrado muito poucos fugitivos de Rwamatamu.
Dizia-se que um pastor
adventista e seu filho colaboraram estreitamente com o prefeito na
organização da chacina em Rwamatamu. Mas talvez Samuel não
tenha ouvido a respeito disso
dos feridos que encontrou, que chegavam "baleados ou
atingidos por granadas, amputados de um braço, ou uma perna. Ele
ainda imaginava que Mugonero
pudesse ser poupada.
Em 12 de abril, o hospital
estava lotado por uns 2 mil refugiados, e o suprimento de água
fora cortado. Ninguém podia sair. Milicianos e membros da
Guarda Presidencial haviam sitiado o complexo. Mas quando o
dr. Gerard soube que várias dúzias
de hutus estavam entre os
refugiados, arranjou para que fossem evacuados. Ele também trancou
a farmácia, negando tratamento aos feridos e doentes -
porque eram tutsis, disse Samuel.
Espiando para fora de seu
cativeiro, os refugiados no hospital
viam o dr. Gerard e seu pai, o
pastor Ntakirutimana, rodando para cima e para baixo com
milicianos e membros da Guarda
Presidencial.
Os refugiados se perguntavam
se aqueles homens
haviam esquecido seu Deus.
Entre os tutsis no complexo da
igreja e hospital de Mugonero estavam sete pastores adventistas que logo assumiram seu
papel costumeiro de líderes do
rebanho. Quando dois policiais
apareceram no hospital para
anunciar que seu trabalho era proteger os refugiados, os
pastores tutsis fizeram uma coleta e levantaram quase quatrocentos
dólares para os policiais.
Por vários dias, tudo esteve calmo.
Então, quando caía a noite de 15 de
abril, os policiais disseram
que tinham de partir porque o hospital seria atacado na manhã
seguinte. Foram embora num carro com o dr. Gerard, e os sete
pastores aconselharam seus companheiros refugiados a se
preparar para o fim. Então os pastores
sentaram juntos e escreveram
cartas para o prefeito e para o superior deles, pastor
Elizaphan Ntakirutimana, o pai do dr. Gerard, pedindo a eles em nome
de Deus que intercedessem a
seu favor.
E a resposta veio disse
Samuel. "Foi o doutor Gerard que
a anunciou: Sábado, dia 16, às
nove em ponto da manhã, vocês serão atacados, Mas foi a
resposta do pastor Ntakirutimana que arrasou o espírito de Samuel,
e ele repetiu duas vezes, bem devagar, as palavras do presidente
da igreja: "Já foi encontrada uma solução para o seu problema.
Vocês devem morrer.
Um dos colegas de Samuel, Manase
Bimenyimana, lembrava da resposta
de Ntakirutimana de um modo
ligeiramente diferente. Ele me disse que as palavras do
pastor foram: "Vocês devem ser eliminados. Deus não quer mais vocês.
Em seu cargo de assistente
hospitalar, Manase servia como
criado doméstico de um dos
médicos, e havia permanecido na casa do médico depois de
instalar a mulher e os filhos - por segurança - entre os
refugiados do hospital. Por volta de nove
horas da manhã de sábado, 16
de abril, ele estava alimentando os cachorros do médico. Viu o
dr. Gerard rodando em direção ao hospital num carro cheio de
homens armados. Então, ouviu tiros
e explosões de granadas.
"Quando os cachorros ouviram os gritos das pessoas, ele me disse,
"também começaram a uivarl" Manase conseguiu chegar ao
hospital - estupidamente,
talvez, mas se sentia exposto
e queria estar junto com a família. Encontrou os pastores tutsis
instruindo os refugiados a se preparar para a morte.
"Fiquei
muito desapontado, disse Manase. "Eu
achava que ia morrer, e
começamos a procurar qualquer coisa
com que pudéssemos nos
defender - pedras, tijolos quebrados,
pedaços de pau. Mas eles não
serviam para nada. As pessoas estavam fracas. Não tinham nada
para comer. A fuzilaria começou, e as pessoas foram caindo e
morrendo.
Havia muitos atacantes,
lembrou Samuel, e vinham de todos os lados - "da igreja, dos
fundos, do norte, do sul. Ouvíamos os tiros, os gritos e o
slogan que cantavam: "Eliminem os tutsis!" Eles começaram a
atirar em nós, e nós jogávamos pedras
neles, porque não tínhamos
outra coisa, nem mesmo um facão.
Estávamos famintos, cansados,
ficáramos sem água por mais de
um dia. Havia gente sem os
braços. Havia mortos. Eles matavam as pessoas na capela, na
escola e depois no hospital.
Vi o doutor Gerard, e vi o carro de seu
pai passar pelo hospital e parar junto
ao seu escritório. Por volta do meio-dia, fomos para um porão.
Eu estava com alguns parentes.
Outros já haviam sido mortos.
Os agressores começaram a arrombar as portas e a matar, disparando e lançando granadas. Os
dois policiais que foram nossos protetores agora eram
agressores. A comunidade local também
ajudou. Quem não tinha armas
de fogo tinha facões ou masus.
À noite, por volta de oito ou
nove horas, começaram a lançar gás
lacrimogêneo. As pessoas que
ainda estavam vivas gritavam. Assim os invasores sabiam onde
as pessoas estavam, e podiam
matá-las diretamente. Na média nacional, os tutsis
chegavam a pouco menos de
15% da população de Ruanda,
mas na província de Kibuye a
relação entre hutus e tutsis
era mais ou menos meio a meio.
Em 6 de abril de 1994, cerca de
250 mil tutsis viviam em Kibuye, e
um mês depois mais de 200 mil
deles haviam sido assassinados.
Em muitas aldeias de Kibuye,
nenhum tutsi sobrevivera.
Manase me contou que ficou
surpreso quando ouviu que "somente 1 milhão de pessoas" foram mortas em Ruanda. "Veja
só quantas morreram só neste
lugar, e quantas foram comidas pelos pássaros, disse ele. Era
verdade que os mortos do genocídio foram uma grande bênção
para os pássaros de Ruanda, mas os pássaros também foram úteis
para os sobreviventes.
Assim como as aves de rapina formam
uma frota no ar diante do avanço de um incêndio na floresta,
para se banquetear com os animais que fogem espavoridos do
inferno, também em Ruanda durante os meses de extermínio
os bandos de abutres, milhares
e corvos que sobrevoavam os
locais de massacre desenhavam um
mapa nacional no céu,
sinalizando as zonas proibidas a pessoas como Samuel e Manase, que se esconderam
no mato para sobreviver.
Algum tempo antes da
meia-noite de 16 de abril, os assassinos no complexo adventista de
Mugonero, incapazes de encontrar alguém que houvesse
escapado da matança, foram saquear as casas dos mortos. Samuel,
no porão, e Manase escondido, com
sua mulher e filhos
assassinados, viram-se inexplicavelmente vivos.
Manase partiu
imediatamente. Fugiu para a cidade vizinha de Murambi, onde se juntou a um
pequeno grupo de sobreviventes de outros massacres,
que também haviam buscado refúgio em igrejas adventistas.
Por quase 24 horas, segundo ele, tiveram paz. Então o dr.
Gerard veio com um comboio de milicianos.
Houve fuzilaria de
novo, e Manase escapou. Dessa vez,
fugiu para as montanhas, para
um lugar chamado Bisesero, onde
o rochedo é alto e escarpado,
cheio de grutas e freqüentemente envolvido em nuvens. Bisesero
foi o único lugar de Ruanda em que milhares de civis tutsis
montaram uma defesa contra os
hutus que tentavam matá-los.
"Olhando para a quantidade de gente que havia em Bisesero,
nos convencemos de que poderíamos não morrer, contou-me
Manase. E no começo, disse ele, "só
mulheres e crianças foram
mortas, porque os homens estavam lutando. Mas, com o tempo,
dezenas de milhares de homens também tombaram ali.
Nas cidades atulhadas de
cadáveres de Kibuye, tutsis vivos
tornaram-se extremamente
difíceis de achar. Mas os assassinos nunca desistiam. A caçada se
concentrava em Bisesero, e os caçadores chegavam em caminhões e
ônibus. "Quando viram a força
da resistência, chamaram milícias de locais distantes", disse Manase.
"E eles não matavam
simplesmente. Quando estávamos fracos, economizavam balas e
nos matavam com lanças de bambu. Cortavam tendões de
Aquiles e pescoços, mas não completamente, e deixavam as vítimas
chorando por um longo tempo até morrer. Cachorros e gatos
estavam lá, simplesmente comendo as
pessoas.
Samuel também fugira para Bisesero. Ele havia ficado no
hospital de Mugonero, "cheio
de mortos até a uma da manhã. Então se arrastou para fora do
porão e, carregando "um que
tinha perdido os pés,
prosseguiu lentamente em direção às
montanhas.
O relato de Samuel
sobre seu calvário depois da chacina em seu local de trabalho
foi tão telegráfico quanto sua descrição da vida em Mugonero
antes do genocídio. Diferentemente de Manase, ele encontrou
pouco consolo em Bisesero, onde a única vantagem para as pessoas
que resistiam era o terreno. Ele havia concluído que ser um
tutsi em Ruanda significava a morte.
"Depois de um mês, disse ele,
fui para o Zaire. Para chegar lá
teve de atravessar áreas menos conturbadas descendo até o lago Kivu, e atravessar suas águas
de noite numa piroga - uma jornada violentamente perigosa,
mas Samuel não mencionou isso.
Manase permaneceu em Bisesero.
Durante a luta, disse-me,
"ficamos tão acostumados a correr que quando a gente não estava correndo, não se sentia
bem. Lutar e correr deram coragem a Manase, uma sensação de fazer
parte de um propósito maior que
sua própria existência. Então
foi baleado na coxa, e a vida mais uma vez se transformou em
pouco mais que continuar vivo. Ele achou uma caverna, "uma rocha
sob a qual passava um curso
d'água e fez dela sua casa.
"De dia, eu estava sozinho", disse ele.
"Só havia gente morta. Os
corpos haviam caído na corrente, e eu os usava como uma ponte para
atravessar a água e me juntar às outras pessoas à noite. Desse
modo, Manase sobreviveu.
Terminada a nefanda tarefa,
o Pastor e seu filho médico continuaram em Rwanda por um pouco de tempo. Assim
que a situação política se modificou, os dois fugiram. O Pastor foi para os
Estados Unidos , colocando-se sob a proteção da corporação asd e morando numa
grande mansão. Posteriormente, acabaram presos e condenados -- Elihaj HaRosh.
LEIA TAMBÉM
ARTIGOS ANTERIORES
EM OUTROS SITES:
Retornar |