Perigos que Ameaçam o Movimento Leigo - 1: SER UMA COMUNIDADE PUNITIVA

Por Edegard Silva Pereira

O autor formou-se em Teologia no Colégio Adventista do Prata, Argentina. É Mestre em Ciências da Religião e Mestre em Comunicação Social. Foi pastor da IASD entre 1965 e 1988. Atualmente dedica-se a realizar palestras em empresas sobre desenvolvimento humano, numa perspectiva cristã.

“Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão unidos a Cristo Jesus.” - Rom. 8:1r

Este artigo é o começo de uma série, na qual trato de refletir sobre a herança que o movimento leigo recebeu da IASD, e também sugerir o que esse movimento pode fazer para livra-se do fardo do passado. O ponto de partida é a herança da tendência que a IASD tem de ser uma comunidade obscura, punitiva e restrita, caraterísticas que são a raiz de muitos conflitos, de uma atmosfera religiosa carregada de elementos perturbadores.

Não tenho dúvidas quanto ao movimento leigo ter herdado essas características. Pois é uma herança inevitável: o resultado da socialização psicológica e de diversos processos de condicionamiento (doutrinas, cultos, escola sabatina, propaganda denominacional, entre outros), dos quais a IASD se vale de forma tenaz e incansável para criar consensos e ilusões necessárias ao controle da organização. A minha preocupação é que se o movimento leigo não conseguir livrar-se o mais rápido possível dessa herança terrível, os participantes sofrerão as mesmas frustrações que quando eram membros da IASD, como de fato já aconteceu e está acontecendo no Brasil e em outros países.

Minha intenção neste artigo é que a reflexão, baseada na experiência de Jesus, Paulo e Lutero, que sofreram cruéis punições de comunidades religiosas restritas, possa ajudar as pessoas que foram alvos da violência da IASD, por causa de seus pontos de vista, e que hoje se encontram numa situação de insegurança, frustração e sem saber o que fazer para superar suas aflições. Posso compreender tais pessoas, pois eu também passei por essa dolorosa experiência. Além disso, pretendo que a reflexão seja um alerta aos perigos que ameaçam o movimento leigo, caso ele se torne uma cópia, mesmo que um pouco modificada, da IASD.

Sobre a primeira caraterística —uma comunidade profundamente obscura, principalmente pelo fato de ser uma organização de dominação— eu já disse o suficiente no Leviatã Adventista, publicado anteriormente nesta página da Internet. Espero que o movimento leigo não imite a forma de organização da IASD. Quanto a ser uma comunidade punitiva —o tema deste artigo—,  também já foi explicado no trabalho antes mencionado, ao falar como o Leviatã usa sua força para punir os que se opõem a seu poder de dominação. Portanto, o que me resta fazer agora é falar sobre como resistir, com dignidade, sem sentir-se como um trapo rejeitado, à truculência de uma igreja punitiva. A última característica —uma comunidade restrita— será abordada no próximo artigo.

 

Seguros no amor de Deus

Quando o Leviatã Adventista foi publicado nesta página da Internet, muitas pessoas punidas pela IASD devido a suas opiniões particulares, ou desiludidas com o comportamento administrativo de alguns dirigentes, me escreveram querendo saber o que poderiam fazer para encontrar de novo o rumo da vida cristã. Minha resposta era: "Sigam a Jesus; isso vocês não podem deixar de fazer." Agora quero ampliar um pouco a resposta.

O primeiro que devem fazer é confiar no eterno amor de Deus. Os eruditos em geral, a partir de Lutero, consideram a Epístola aos Romanos o coração da Bíblia, e o capítulo 8 o coração da epístola. Os versos 1 e 36 a 39 desse capítulo são muito confortadores e fortalecedores:

Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão unidos a Cristo Jesus...

Como está escrito: Por amor de ti, somos entregues à morte dia todo, fomos considerados como ovelhas para o matadouro. Em todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que nos amou. Porque estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. 

Se você permanece unido a Cristo, jamais será lançado fora da comunhão com Ele  (João 6:37). Pois Jesus não veio para condenar conforme as normas da religião, mas para salvar, o que é exemplar no episódio com Maria Magdalena (João 8:10 e 11). E mais, não sofrerá nenhuma condenação por parte de Deus. E assim é porque o Pai celestial nos trata conforme seu amor eterno, e não segundo as normas da religião (que Paulo chama a “lei do pecado e da morte” em Rom. 8:2), como faz a IASD. Você será condenado por Deus só se deixar de crer em Jesus Cristo (Marc. 16:16). Mas nunca por suas opiniões. Seria injusto da parte de Deus condenar-nos por questão de opiniões, uma vez que nos deu liberdade para tê-las, desde que não se oponham à fé evangélica. 

Portanto, não confunda punição humana com condenação divina. Se você foi punido por discordar com algum ponto de vista da IASD, não significa que foi condenado por Deus. Nossa salvação depende de nossa união com Cristo e não por pertencer a uma instituição religiosa e assumir as obrigações com suas normas e doutrinas. Logo, siga em frente com Jesus, ao abrigo do eterno amor de Deus. Saiba que se está unido a Cristo, nada, incluso a punição imposta por religiosos, principalmente por questão de opiniões ou termos, poderá separá-lo do amor de Deus.

Você entenderá melhor a inutilidade das normas religiosas quanto à salvação (são úteis só para organizar uma comunidade) se ler a Epístola aos Romanos como sugere Lutero em seu comentário sobre essa mesma epístola: Cada vez que aparecer a palavra “lei”, entenda como “normas da religião”, o que é correto, porque o que foi traduzido como “lei” se refere às normas do judaísmo.

Lembremos que a maioria dos sofrimentos tanto de Cristo quanto de Paulo foram causados por religiosos. Hoje não é diferente. Toda pessoa que ingresse no serviço do reino de Deus, atendendo o chamado de Jesus, terá sua parcela de sofrimento, isto é, terá que carregar sua cruz (Mat. 10:38 e 16:24). E a cruz que carregamos não simboliza qualquer sofrimento, mas o sofrimento por causa da fé que nos une a Cristo. Como Paulo, podemos carregá-la com a certeza de que “se sofremos com Cristo, também com ele seremos glorificados” (Rom. 8:17).

No Novo Testamento, estar unido a Cristo pela fé é o mesmo que seguir a Jesus. E  seguir a Jesus significa seguir suas exigências, nas quais Ele expressa claramente o que Deus espera de nós, o que nos convém agora. Infelizmente a IASD fala pouco dessas exigências (fala mais de suas próprias exigências, segue mais suas próprias normas) e quando fala delas, as apresenta de forma isolada e não o conjunto. Por isso, preparei um estudo sobre as exigências de Jesus (intitulado As Exigências de Jesus), que coloco a disposição dos leitores desta página da Internet.

Se realmente queremos a salvação, o que temos que fazer é seguir a Jesus seguindo suas exigências. E, nisso, os adventistas não foram bem instruídos, pois foram condicionados a seguir doutrinas e normas de uma igreja restrita, presumindo que assim estavam seguindo a Jesus. (No artigo seguinte abordo essa questão mais detalhadamente.) Se o leitor fizer uma comparação, o que é recomendável, entre as exigências de Jesus e as exigências da IASD, descobrirá que há uma grande diferença entre ambas. Ficará claro que seguir a IASD e seguir a Jesus não são a mesma coisa.

Faça o seguinte teste quando encontrar membros da IASD. Pergunte a queima roupa: Responda rapidinho, por que você é adventista? A primeira resposta que vem à mente é a que vale. Você se surpreenderá com as respostas: “Porque é a igreja verdadeira”; “Porque é a igreja que tem a doutrina verdadeira”; “Porque é a igreja que guarda os mandamentos”; “Porque nasci numa família adventista”, e outras razões desse tipo. Pouquíssimos vão responder: “Porque estou seguindo a Jesus Cristo”. E esta resposta é rara devido a que na IASD quase não se ouve o “segue-me” de Jesus. O que mais se ouve é o convite “Seja um adventista do sétimo dia. Siga as doutrinas e as normas da denominação”.

Resumindo: você pode sentir-se desapontado com as falhas humanas que percebe na igreja (sempre existirão enquanto estivermos neste mundo) e com a forma punitiva como ela exerce sua autoridade, mas  nunca se sentirá assim em relação ao eterno amor de Deus. Este amor é nosso verdadeiro refúgio.

 

O que importa é ser membro da igreja invisível

Sabemos que Lutero foi excomungado da Igreja Católica, devido a sua crítica ao papado e às reivindicações deste. Naquela época, ser excomungado era muito pior que ser excluído da igreja hoje, por causa das graves conseqüências sociais implicadas. Contudo, Lutero manteve-se firme, inabalável, na fé, e inspirado por um conceito novo de igreja, tornou-se o pai da Reforma. Para se entender o conceito de igreja de Lutero é preferível usarmos o termo “congregação cristã”, visto a palavra “igreja”, como é usada hoje, possuir conotação diferente do conceito de Lutero (e do Novo Testamento).

Para Lutero, a igreja (ecclesia, palavra usada no original grego do Novo Testamento e traduzida como “igreja”) é em primeiro lugar e principalmente a comunhão dos crentes. É o conjunto de todos na terra que têm fé em Cristo. Isto não se refere a uma associação externa com instituições e ofícios, mas a uma comunhão interna compartilhada por todos os que possuem fé comum e a mesma esperança. Como tal, a igreja é questão de fé. A forte ênfase de Lutero nesta comunhão espiritual, invisível, como formadora da igreja era algo novo. A igreja para ele não era a instituição governada pelo papa, mas a união dos fiéis produzida pelo Espírito Santo em resposta à pregação da palavra de Deus em Cristo (Heb. 1:1-3). Essa comunhão é invisível e independente de tempo e espaço. Pois ninguém pode ver quem tem fé verdadeira, ou saber onde esta fé pode ser encontrada.

Mas também se pode falar da igreja em outro sentido. Ela é também a comunhão externa, uma assembléia visível de pessoas que se reúnem num edifício especial, que pertencem a certa paróquia ou diocese, etc. Neste sentido a igreja possui regulamentos específicos, cargos, ministérios e costumes. Todos os que foram batizados, todos os que foram atingidos pela pregação da Palavra e confessam a fé cristã pertencem a esta cristandade exterior. Nela não se pode traçar uma linha demarcatória entre os que realmente crêem e os hipócritas.

A comunhão mencionada em primeiro lugar se denomina cristandade ou igreja invisível, interna, espiritual, enquanto a outra é denominada cristandade visível, externa, física. Não devem ser separadas. Devem ser relacionadas tão intimamente como possível. Pois a comunhão invisível, interna, espiritual, é o elemento essencial da congregação visível, externa, física. É por causa desta comunhão espiritual que a congregação é mantida junta.

Segundo esse conceito, é errado identificar a igreja apenas com a instituição visível, como, por exemplo, com a IASD governada pela Associação Geral. Se você foi excluído da igreja visível, isto não significa que foi excluído da igreja invisível. Continuará sendo membro dessa comunhão essencial produzida pelo Espírito Santo, e que só Deus conhece os que participam dela, se tem fé verdadeira e realmente segue a Cristo. A final de contas, é isso o que realmente importa.

Nada o impede, portanto, de continuar no caminho da salvação e fazer como Lutero (também Jesus e Paulo): formar ou participar de uma outra comunhão visível, na qual a fé se apegue aos sinais externos, a saber, o batismo, a santa ceia e a pregação da Palavra, centrada nas instruções ou exigências de Jesus, conforme foram compreendidas e interpretadas por Paulo, o apóstolo que melhor entendeu o ensino de Jesus Cristo e, por isso mesmo, recebeu a missão de separar o cristianismo do judaísmo..

 

Preocupe-se, em primeiro lugar, em ser um templo vivo

Muito mais importante que freqüentar uma igreja visível é ser igreja, isto é, nas palavras de Paulo, que você seja um templo do Espírito Santo (1 Cor. 3:16; 6:19 e 2 Cor. 6:16). Como está escrito, Deus não habita em templos construídos pela mão do homem, mas em pessoas por meio do Espírito. Se o Espírito habita em nós, então estamos unidos a Cristo e pertencemos à igreja invisível. E essa é a comunhão mais fundamental, sem a qual não tem valor a reunião dos crentes, tanto as que acontecem num edifício (que chamamos “igreja”), quanto as que acontecem numa organização religiosa (que também denominamos “igreja”).

E o Espírito Santo é para Paulo a dádiva por parte de Deus do poder de uma nova vida: a vida que Jesus Cristo veio trazer e é vital à carreira cristã: a vida de fé (2 Cor. 4:13; 5:5,7) e amor (Rom. 5:5). Pelo Espírito, Cristo se torna “espírito vivificante” (1 Cor. 15:45). É o poder através do qual o Glorificado age no presente, tornando-se ativo no homem e tornando o homem ativo em alternativa com Cristo (Rom.8:9-11) ou com Deus (1 Cor. 3:16). Porque é o Espírito do Cristo glorificado (Rom. 8:11), Paulo afirma “o Senhor é o Espírito” (2 Cor. 3:17) e “Cristo está em vós” (Rom. 8:10).

Verificamos que a palavra “espírito” (referindo-se ao ser humano ou de Deus) traduz, às vezes, os termos ruach (hebraico) e pneuma (grego), traduzidos mais freqüentemente, nas várias versões da Bíblia, como “vida”; e também que é estranho às línguas grega e hebraica qualificar o Espírito de sujeito autônomo, de “pessoa”, o que Paulo não faz. Ele não tem a intenção de elucidar a estrutura interna da divindade, como fez a posterior doutrina da Trindade.

Penso que se entendemos o Espírito como a nova vida que recebemos de Deus em Cristo, conseguiremos evitar as especulações sobre sua natureza, principalmente como parte da Trindade, as quais não esclarecem a questão, mas a complicam ainda mais. Quem é capaz de entender e explicar os mistérios de Deus? Se conseguíssemos explicar tais mistérios, não precisaríamos de fé. Por essa razão o interlocutor humano do único Deus pode ser somente a fé. Que podemos pensar de pessoas que, em vez de receber a graciosa dádiva do Espírito —isto é, a nova vida em Cristo— como vital à carreira cristã, preferem torná-lo parte da especulação da Trindade? Para essas pessoas, o Espírito não é uma realidade, mas uma abstração: foi reduzido a uma questão doutrinária.

O melhor que você pode fazer é viver com intensidade a vida abundante que Jesus veio trazer (João 10:10 ú.p.). É através dessa vida nova, especial, que Deus realiza sua obra redentora em você, transformando-o num templo vivo de sua presença, numa testemunha viva de sua graça e amor. E se Deus habita em você pelo Espírito, livrando-o de toda condenação “da lei do pecado e da morte” —isto é, das normas da religião—, nenhuma punição eclesiástica por questão de opiniões tem sentido.

E quanto ao movimento leigo, o que ele pode fazer para não transformar-se numa religião punitiva? Note-se que não estou abordando as questões morais.

Há dois tipos comuns de expressão religiosa: a religião de autoridade (representada pela grande meretriz de Apoc. 17) e a religião do espírito (representada pela mulher vestida do sol de Apoc. 12). A primeira impõe arbitraria e diretamente aquilo que considera a vontade de Deus. Ostenta um sistema institucional e doutrinário com tal peso de autoridade (ao modo do poder político), que faz as pessoas acreditarem que sem ela não é possível a salvação. A segunda, procura dar testemunho, com a ênfase de Jesus, da religião do espírito, cujo coração é a tríade fundamental, impossível de ser institucionalizada, que aparece no ensino de Jesus e de Paulo: graça, fé e amor, como meios de comunhão com Deus e de criar fraternidade entre os homens. Nesse sentido, a religião do espírito, na visão do Apocalipse, sempre está para dar a luz a Cristo na nova vida gerada pelo Espírito naqueles que crêem.

Para que o movimento leigo não se transforme em uma comunidade obscura, punitiva e restrita deve dar testemunho, com a ênfase de Jesus, da religião do espírito. Que assim seja!

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