O Espírito nos Guiará a Toda a Verdade

Por EDEGARD SILVA PEREIRA

Minha intenção é abordar aqui, brevemente, uma das funções atuais do Espírito: guiar “a toda a verdade”. Trata-se de uma função típica do novo tempo (o tempo do Novo Testamento) inaugurado com o derramamento do Espírito sobre “toda a humanidade” no Pentecostes. (Veja o artigo “Reflexão sobre o Espírito”). Esta função do Espírito é importante, a tal ponto, que sem ela não existiria vida cristã nem Igreja. Ela está bem clara em João 16:13-15, palavras de Jesus.

Mas, que é verdade? Tentemos encontrar uma luz para este problema. Em primeiro lugar constatamos que, no Novo Testamento, a verdade se confunde com a pessoa de Jesus Cristo. Jesus afirmou: “Eu sou a verdade” (João 14:6). Todo o testemunho do Novo Testamento assevera isso, no sentido de que é Cristo quem revela os eternos propósitos de Deus para a humanidade.

Mencionarei apenas quatro exemplos do testemunho do Novo Testamento que relaciona Cristo e verdade.

1.  No prólogo do Evangelho de João, Cristo é a encarnação da Palavra divina criadora (não do próprio Deus), ou seja, é a Palavra de Deus expressa na forma de vida humana, de atividade humana, na pessoa de Cristo.

2.  Segundo o prólogo de Hebreus, Deus nos fala hoje através de seu Filho. E a palavra de Cristo supera a palavra de todos os inspirados carismáticos através dos quais Deus falou ao homem no passado. Em Heb 8:5 apresenta as verdades do Antigo Testamento como “sombras” da verdade revelada em Cristo.

3.  No texto citado no começo, Jesus diz: “o Espírito da verdade... não falará por si mesmo... Ele me glorificará, porque há de receber do que é meu e vo-lo há de anunciar”. Aí está claro: a função do Espírito de guiar a toda a verdade significa anunciar, revelar o que é próprio de Cristo. Dito de outro modo, guiar a toda a verdade significa guiar a Cristo, porque ele é a verdade. Em perfeita consonância com a ação do Espírito, Paulo disse aos crentes de Corinto: “Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado (1 Cor 2:2).

4.  Segundo João 6:29, 8:31 e 14:6, “praticar a verdade” de 3:21 nada mais significa do que “crer em Jesus”, que é o mesmo que “seguir a Jesus” ou “permanecer na palavra de Jesus”. Esse é o sentido das passagens do Evangelho de João sobre a “verdade”. Por exemplo, em 8:32 a verdade libertadora só pode ser Cristo, o qual é apresentado em todo o Novo Testamento como o libertador por excelência.

Em segundo lugar, comprovamos, nas passagens citadas e em todo o Novo Testamento, que conhecemos a verdade (a Cristo) não por especulação, mas por revelação; e a verdade (o Cristo) que o Espírito revela é para o mundo e por causa do mundo, e não apenas para alguns eleitos. O Novo Testamento entende o primeiro elemento dessa constatação a partir do segundo: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3:16). Deus amou o mundo a tal ponto de se revelar a ele em Cristo. O resultado da revelação deste amor ao mundo foi o surgimento da comunidade de fé (Igreja). E esse mesmo amor constrange a comunidade primitiva a proclamá-lo ao mundo. O que Paulo  expressa muito bem quando exclama: “ai de mim se não pregar o Evangelho!” (1 Cor 9:16). E Paulo não considera Evangelho qualquer pregação que se refere a Cristo, o interpreta como a mensagem da justificação exclusivamente por graça e por fé. (Veja em Gál 1:11, 12; 2: 1 e 1 Cor 15:1-11 o que ele considera evangelho; veja em Gál 1:6 e 2 Cor 11:4 o que ele denomina de “outro evangelho que não é evangelho”, mensagens que abandonam a identidade de Cristo e do Espírito (2 Cor 11:4) e pervertem a existência cristã (Gál 3:1-3; 5:4; 1 Cor 15:17-19; 2 Cor 13:5).

É de importância fundamental notar o seguinte: a Igreja primitiva não apresenta um conjunto de doutrinas como sendo a verdade. Prega o Evangelho, que o descreve cristologicamente (Jesus Cristo é o conteúdo central do Evangelho) como acontecimento escatológico e cumprimento de promessa, no sentido de que através do Evangelho torna-se efetiva a justiça de Deus. Ela crê em Cristo, no Cristo vivo, ressuscitado e glorificado, não em doutrinas. O Evangelho está relacionado com o Espírito e a fé. É pregando o Evangelho que a Igreja abre o caminho para a ação do Espírito e o surgimento da fé. Pois onde a palavra do Evangelho for autêntica, o Espírito age fazendo surgir a fé e uma nova vida em Cristo.

As Escrituras não estabelecem um corpo de doutrinas metodicamente ordenadas como sendo a “religião de Israel” ou a “religião de Jesus”. Tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento nunca existiu coisa semelhante. A própria idéia de considerar a religião como um corpo de doutrinas e esse corpo de doutrinas formado por conceitos exclusivistas como sendo a verdade é uma abstração criada por mentes que não percebem a própria intenção das Escrituras. Esta atitude está se revelando muito problemática, em face dos estudos sérios em curso sobre teologia bíblica.

Em terceiro lugar, verificamos que Paulo não está  preocupado com o Jesus histórico, como fazem os Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas); seu interesse está no Ressuscitado, aquele que foi morto pelas mãos do judeus, mas está vivo, entronizado na glória de Deus e faz-se presente agora no mundo sob uma nova forma, como o Kyrios (o Senhor). Para Paulo conhecemos a verdade e vivemos de acordo com ela quando, pelo Espírito:

  • Cristo é o Senhor de nossa vida e passamos a “viver em Cristo” (1 Cor 12:3; Gál 2:20).
     

  • Estamos unidos ao Cristo vivo. Fiel à intenção de Jesus (veja João 17:20 e 21), Paulo expressa que devemos ser “um com Cristo”, o que significa comprometer-se, engajar-se e ligar-se com Cristo por uma vontade comum. O apóstolo explica detalhadamente como chegamos a ser “um com Cristo” em concepções tão ricas como as expressas em Rom 6:5; 12:5; 1 Cor 6:15;  10:16; 12:27; Efe 5:30, 31.
     

  • Temos a mente de Cristo (1 Cor. 2:16), que também descreve como “Cristo em vós” (Col. 1:27) e “revestidos de Cristo” (Rom. 13:14).
     

  • O alvo da vida cristã é crescer para atingir a medida da plenitude humana de Cristo (Efe 4:13 e 15; Col 1:28; 2 Tes 2:14).
     

  • Em nossa vida se manifestam o fruto e os dons do Espírito (Gál 5:22 e 23; 1 Cor 12:4-11). 
     

  • Nos dirigimos a Deus como nosso Pai e mantemos um novo relacionamento direto com ele (Gál 4:6; Rom 8:12-17).

Compare essa lista com o que sua comunidade religiosa considera viver de acordo com a verdade, talvez você encontre diferenças notáveis. Nessas passagens a verdade não é uma verdade dogmática, doutrinária, mas consiste em se estabelecer e manter um novo relacionamento direto com Deus e um novo relacionamento dos crente entre si, conforme a vontade de Jesus expressa em João 17:20-23: “Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim, por intermédio da sua palavra; a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste. Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste, como também amaste a mim”.

Essa unidade, desejada por Jesus, não se consegue pregando ou ensinando verdades dogmáticas, doutrinárias; pois elas tendem para a divisão, para a rivalidade. Conhecer a Cristo significa, no sentido bíblico, tornar-se um com ele. O conhecimento meramente literário ou doutrinário está longe dessa experiência.

Em quarto lugar, constatamos, que nem a verdade nem a missão pertencem à Igreja. No contexto do Novo Testamento, a Igreja não pode dizer que possui a verdade, porque seria o mesmo que dizer que ela possui a Cristo, uma afirmação inadmissível no mundo apostólico. A função da Igreja é confessar que a verdade é idêntica ao Senhor Jesus Cristo e é função do Espirito revelá-la ao homem. A missão não pertence à Igreja. A missão é de Deus e, acima de tudo, resultado da dinâmica do Espírito. Pois é ele que guia à verdade e permite que a nova vida revelada em Cristo seja nova vida para cada converso. A missão da Igreja é anunciar o Evangelho, cujo próprio conteúdo é o Cristo-Espírito (2 Cor 3:17; 1 Cor 12:3). Mas é o Espírito quem torna efetivo o anuncio do Evangelho pela Igreja, gerando arrependimento, fé, uma nova vida e unindo as pessoas a Cristo, enfim, operando uma profunda transformação interior.

Na realidade, a Igreja proclama a Cristo, mas não pode pretender possuir toda a verdade sobre Cristo; e proclama a vida da qual não é a fonte dispensadora. Agora a Igreja é aquela que está a caminho para conhecer toda a verdade (1 Cor 13:12). Enquanto caminha, ela está constantemente sendo medida, julgada e iluminada por essa verdade. Portanto, a Igreja não é o seu próprio critério de ação, mas este critério lhe é dado em Cristo. A Igreja é apenas Igreja na obediência à verdade, isto é, a Cristo. 

Em certos momentos, a Igreja falhou em sua obediência à verdade. Falhou:

  • Quando se colocou como fundamento, centro e critério de sua missão.

  • Quando tratou de edificar a si mesma criando instituições (como hospitais, escolas e fábricas de alimentos!), em vez de deixar-se construir pelos dons do Espírito.

  • Quando deixou de anunciar o Evangelho e passou a anunciar o conjunto de doutrinas que ela mesma formulou, ou, dito de outro modo, quando deixou de proclamar a Cristo como a verdade revelada pelo Espírito e passou a proclamar suas próprias doutrinas como sendo a verdade.

  • Quando fez sua teologia culminar em um moralismo resultante da reflexão de seus líderes, os quais imaginam que sua função é tutelar, isto é, ditar padrões morais de maneira impositiva. E assim, a Igreja deixou de ser agente da nova vida em Cristo, a qual nos é dada pelo Espírito, aquele que revela a verdadeira vida e o verdadeiro homem.

  • Quando deixou de perceber que sua missão é tão humilde como a do Espírito (ele não falará de si mesmo, mas do que pertence a Cristo) e passou a falar mais de si mesma.    

Chamo a atenção para o seguinte fato psicológico: Tudo o que cremos passa a ser considerado por nós como verdade. Essa é a nossa verdade. E há tantas verdades quanto pessoas e comunidades, pois cada uma considera como verdade a sua maneira de ver e interpretar a realidade. Mas no Novo Testamento a verdade se concentra na pessoa de Cristo e não na correspondência entre nossas imagens conceptuais das coisas e as próprias coisas. Portanto, só estamos a salvo de desviar-nos para uma “verdade” pessoal ou comunitária quando aceitamos que Cristo é a verdade e, estando disponíveis à ação do Espírito, pregamos o Evangelho em sua pureza apostólica.

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