PAULO DANIEL FARAH
da Folha de S.Paulo
Quarenta anos após a abertura do Concílio Vaticano 2º, crescem as vozes, dentro
e fora da hierarquia católica, em prol da convocação de uma nova assembléia para
discutir temas-chave que foram abordados parcialmente ou ignorados por aquela
"revolução inconclusa" -como o descrevem autoridades religiosas.
Embora, nas palavras do papa João Paulo 2º, o Concílio Vaticano 2º seja "uma
bússola confiável para nos orientar no século 21" e apesar de suas reformas
positivas, a igreja enfrenta crises: queda de vocações e da prática religiosa,
questionamentos sobre o papel da mulher no catolicismo, relações estremecidas
com a Igreja Ortodoxa, igrejas ocidentais que se esvaziam, dificuldade em
transmitir a religião aos jovens (a despeito das Jornadas Mundiais da Juventude
promovidas pelo papa e que reuniram milhões).
O Vaticano ainda enfrenta críticas em relação a temas como a obrigatoriedade do
celibato clerical, a interdição das ordenações femininas e a situação dos
divorciados que se casam novamente.
É verdade que mudanças importantes foram bem acolhidas, como a renúncia à pompa
litúrgica, a adoção de línguas locais nas cerimônias (em vez do latim ou ao lado
dele) e o diálogo com outras denominações cristãs e religiões não-cristãs
(judaísmo, hinduísmo, islamismo etc), mas as ausências ou as reformas
consideradas brandas demais precisariam de uma nova assembléia, segundo
autoridades católicas e grupos reformistas e de direitos humanos como Nós Somos
Igreja, Apelo por Ação, Igreja Futura, Igreja da Mulher e Dignidade, entre
outros.
Com os sinais do mal de Parkinson de João Paulo 2º, 82, cada vez mais evidentes
e sua saúde em geral se agravando, intensificam-se os debates sobre os desafios
do próximo papa e sobre um possível Concílio Vaticano 3º.
No 40º aniversário do Concílio Vaticano 2º, autoridades católicas cogitam a
possibilidade de uma nova convocação _algumas a defenderam abertamente. O
cardeal Carlo Maria Martini, quando ainda estava à frente da Arquidiocese de
Milão, disse que, se fosse papa, convocaria um novo concílio. Outros cardeais
também analisariam a idéia.
A decisão do papa João 23 de convocar, em 1962, um novo concílio para que
ventilasse a Igreja Católica com "novos ares" e para sacudir "o pó imperial
acumulado no trono de são Pedro" recordou a importância do instrumento
conciliar.
Ecumenismo "Não há nada de decisivo a fazer na Igreja Católica enquanto
ela não abandonar suas pretensões senhoriais e temporais. É preciso destruir
isso tudo. E isso vai ser feito." As palavras de revolta de Yves Congar, um dos
principais teólogos do século 20, remontam a 14 de outubro de 1962, três dias
após a abertura do concílio presidido por João 23 -morto no decorrer daquela
assembléia.
Congar diz, na obra "Mon Journal du Concile" (meu diário do concílio,
recém-publicada na França, após o embargo até o ano 2000 imposto pelo autor),
comentando o discurso de Paulo 6º na reabertura do concílio em outubro de 1963,
que "ninguém pode duvidar de que a evolução promovida por João 23 e pelo
concílio seja irreversível".
Segundo o sociólogo Joan Estruch i Gibert, diretor do Centro de Investigações em
Sociologia da Religião na Universidade Autônoma de Barcelona, "por meio do
Concílio Vaticano 2º, a Igreja Católica se incorpora à modernidade e faz as
pazes com ela. Representa um passo adiante muito importante no campo ecumênico.
A idéia inicial do concílio, para João 23, estava indissociavelmente ligada ao
tema da unidade entre os cristãos. O Concílio Vaticano 2º não fracassou e ainda
está presente, embora o Vaticano tenha dado passos importantes para congelá-lo
em muitos aspectos relevantes". O sonho de uma reunificação cristã também deve
integrar a pauta de um futuro concílio.
Divergências
Os católicos têm opiniões divergentes quando são questionados se as
determinações do Concílio Vaticano 2º foram amplamente implementadas e se há
necessidade de uma nova assembléia.
Na opinião do cardeal Roberto Tucci, "no que diz respeito aos direitos humanos e
ao ecumenismo, o Concílio Vaticano 2º obteve grandes resultados, mas ainda há um
longo caminho a percorrer, sobretudo no que está relacionado à valorização dos
leigos e das mulheres dentro da comunidade eclesiástica".
Para Giovanni Felice Mapelli, responsável pelo Centro de Estudos Teológicos de
Milão, o atual papa não parece aprovar a realização de tal concílio, mas o que
se espera é que a nova liderança reconheça a necessidade de discutir temas
pertinentes.
"Com João Paulo 2º, a igreja voltou à atmosfera pré-conciliar. O Concílio
Vaticano 2º sancionou a separação entre a igreja e o Estado, mas o papa tenta
dizer ao governo o que ele deve fazer. As mulheres continuam a ter um papel
marginal, e não há aquela colegialidade que nós todos esperávamos. Por exemplo,
quando escolheram o sucessor do cardeal Martini em Milão, ninguém pensou em
consultar os fiéis", afirma.
Segundo Mapelli, o Concílio Vaticano 3º provavelmente virá com o próximo papa,
"mas as mudanças internas da igreja têm seu ritmo próprio, por vezes considerado
lento demais", o que dificulta uma definição precisa.
Alguns religiosos consideram a convocação de um novo concílio desnecessária
porque o Concílio Vaticano 1º (1868-69) proclamou a infalibilidade do papa em
questões pertinentes à fé e, portanto, seria supérfluo consultar os bispos sobre
temas vitais para a igreja. De qualquer forma, o Concílio Vaticano 3º teria
papel semelhante ao de outros concílios, como o de Éfeso, que sancionaram ou
rejeitaram temas polêmicos da época. Para aprovar alguns temas, porém, como a
ordenação feminina, seria necessário rejeitar outros concílios.
"Fora de questão"
Para o arcebispo francês Gérard Defois, autor de "Le Second Souffle de Vatican
II" (o segundo alento do Concílio Vaticano 2º), "uma boa parte do conteúdo do
Vaticano 2º, provavelmente 90% dele, ainda não foi integrada à vida da Igreja
Católica. Por isso está fora de questão sonhar com um Vaticano 3º. Primeiro, é
preciso executar o que falta e retomar a participação católica na vida
litúrgica". Ainda segundo ele, "o problema dos cristãos é assumir sua
responsabilidade perante Deus. Quanto a questões médicas e genéticas novas, não
estou certo de que o concílio possa abordar isso".
Para Luigi De Paoli, coordenador do movimento católico Somos Igreja (fundado em
1996 e presente em mais de 15 países) na Itália (Noi Siamo Chiesa), "o concílio
não foi implementado pela hierarquia eclesiástica. Com a eleição de João Paulo
2º, o desenvolvimento do concílio foi bloqueado, assim como a participação dos
leigos, embora isso se opusesse ao espírito conciliar".
O papel dos leigos na transmissão da mensagem de Cristo e na solução de impasses
dentro da igreja deve ser um dos principais temas de um futuro concílio.
Outro assunto pouco abordado pelo Concílio Vaticano 2º são as questões relativas
à vida humana e à sexualidade em geral. Em 1968, Paulo 6º proclamou a encíclica
Humanae vitae. Em pleno ano de liberação sexual, o papa prolongou e reafirmou a
posição tradicional da igreja. A idéia principal era a "paternidade
responsável", ou seja, a imoralidade de lançar uso de métodos contraceptivos
artificiais. Os métodos deveriam ser exclusivamente naturais, mas um casal não
deveria ter mais filhos do que sua capacidade de educá-los dignamente
permitisse.
Como se nota, são vários os temas a serem abordados numa futura assembléia, e o
único consenso entre leigos, teólogos e religiosos é que ainda há muito o que
fazer, embora os meios suscitem discordâncias. No século 19, foi organizado o
Concílio Vaticano 1º. No século 20, o Concílio Vaticano 2º. A proposta que ganha
força é que, no século 21, sob os auspícios do próximo papa, se realize o
Concílio Vaticano 3º.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u49567.shtml
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