Série Descobrindo as Riquezas da Teologia da Criação no Gênesis
1. O Deus Criador — Sua Soberania Incontestável

 

Por Edegard Silva Pereira

NOTA INTRODUTÓRIA À SÉRIE (Segue Capítulo 1)

Os objetivos principais desta série de artigos são dois: abordar a teologia da criação apresentada no Gênesis; e que a reflexão teológica retome, em categorias atuais e segundo a própria intenção do Gênesis, questões que esse livro levantou no passado.

Por que escolhi esse tema?

A razão é a seguinte: a compreensão adventista dos relatos da criação está muito contaminada com o criacionismo. Esta teoria da criação leva os adventistas pelo caminho do racionalismo, que não é o caminho da teologia bíblica, a fim de combaterem a teoria da evolução, como faz, por exemplo, o Comentário Bíblico oficial da IASD. Esse desvio tem impedido os adventistas de descobrirem a riqueza espiritual contida no Gênesis. Muitos adventistas não sabem que a teologia da criação existe.

Tenho a seguinte convicção: mais do que combater a teoria da evolução, o melhor que podemos fazer é revelar as riquezas da teologia da criação, cujos valores universais e idéias transcendentes são de benefício incalculável para a existência humana. Só desse modo podemos tornar evidente a pobreza da teoria da evolução, no sentido de que ela não oferece, como faz a teologia da criação, valores universais e idéias transcendentes, que contribuam para melhorar o mundo e a humanidade.

Minha intenção não é abordar a teologia da criação de forma exaustiva. É mais modesta: vou escolher alguns temas, os que me parecem relevantes para os leitores modernos, a fim de que entendam a realidade que o Gênesis apresenta e o significado de suas expressões. Quero que não considerem esse livro como uma peça arqueológica, mas descubram que ele é uma verdadeira caverna de Ali Babá, cujos tesouros nunca se extinguem. E a reflexão não será teológica no sentido estrito, formal, porque seus destinatários são os leitores comuns.

Deus mediante, pretendo reunir, finalmente, os artigos em um livro digital. Então incluirei uma introdução que substitua esta e aborde de forma mais ampla as questões preliminares, das quais não podemos fugir.

Dessas questões vou antecipar duas, porque são fundamentais para encarar com seriedade a leitura do livro:

1) O Gênesis não foi escrito no vazio. Pelo contrário, ele pode ser situado no ambiente cultural do Antigo Oriente Médio. Foi escrito de acordo com formas literárias desse ambiente, e mantém um certo paralelismo com os grandes mitos sociais da região, a fim de criticar e contradizer as idéias que difundiam. Para entender o Gênesis, é preciso projetá-lo sobre esse fundo cultural e estabelecer um paralelismo com os mitos sociais mais influentes da região.

2) Uma maneira bastante comum, equivocada e infrutífera de abordar o Gênesis é considerar suas narrativas como peças soltas. Elas adquirem seu verdadeiro sentido só quando se respeita a forma como estão concatenadas no texto. Portanto, recomendo a leitura dos artigos desta série na ordem numérica  na qual são apresentados.

 

Série Descobrindo as Riquezas da Teologia da Criação no Gênesis
1. O Deus Criador — Sua Soberania Incontestável

Gênesis tem uma estrutura de caixa chinesa: a maior contém outra menor, e esta outra, em um processo que, em teoria, poderia ser infinito. Cada história menor está contida dentro de outra anterior e mais ampla, e assim sucessivamente. E nessas histórias há personagens e episódios que são outras caixas chinesas. Todas as histórias menores, personagens e episódios estão contidos na história mais ampla do livro, a história das origens, que, por sua vez, leva os leitores a uma outra que a contém, a história da salvação, que lhes parece não ser exatamente aquela que estão lendo, porém é a mais ampla da Bíblia, e que os menos informados só conseguem adivinhar.

 

O Deus criador

O que o Gênesis faz em primeiro lugar é que os leitores tenham um encontro com o Deus criador de todos os seres e coisas deste mundo, e logo o apresenta como o principal protagonista da história das origens. Uma análise cuidadosa do conteúdo das narrativas dos capítulos 1 e 2 revela o seguinte: Deus é o sujeito e a criação manifesta seu poder cósmico único; e o fato de ser o Criador comparece na base de sua soberania e da fé nele.

Certamente a intenção desses dois capítulos iniciais não é provar a existência de Deus. Conforme o caminho seguido pelo espírito dos que desconhecem a Deus, para saber se ele existe pretendem ir do conhecido ao desconhecido por indução, dedução ou analogia. Mas mediante a adoção desse processo lógico e psicológico colocam a criação na frente do Criador e não produzem outra coisa senão glorificar o juízo e o raciocínio puramente humanos. A narrativa não supõe primeiro a verdade do mundo para depois perguntar se Deus existe. Começa primeiro por Deus, contrariando a lógica dos néscios e insensatos.

Não pretende informar às pessoas que houve uma criação, para que elas "creiam" na criação. Tampouco deseja especular sobre como foi o processo criativo para responder à curiosidade das pessoas. A mentalidade do Israel bíblico não era dada à especulação. As Escrituras não foram elaboradas apenas para informar ou satisfazer a simples curiosidade sobre o que Israel pensava, filosófica ou cientificamente, sobre as origens do mundo.

Todos esse rumos eram sumariamente rejeitados pelos autores das Escrituras, porque, para eles, pretender provar a existência de Deus pela criação, tratar de incutir fé na criação e fornecer informações sobre o processo da criação são todas maneiras de conduzir o assunto colocando a criação em primeiro plano. E isto não é lógico, pois não se pode falar em criação quando não há Criador. A criação só é reconhecida como tal quando se conhece o Criador. Por isso, o Criador deve ocupar sempre o primeiro plano. Nas Escrituras, dar mais importância à criação que ao Criador é a própria idolatria. E as Escrituras são coerentes com si mesmas.

A criação está aí. É tão incontestável que, tanto Israel como os demais povos antigos, jamais duvidaram da existência de divindade criadora do ser humano e do mundo. Evidentemente, cada povo acreditava na divindade e na criação a seu próprio modo. Portanto, a intenção principal de Gênesis 1 e 2 não é informar que houve um Criador e uma criação.

Esses capítulos iniciais enfrentam outras questões universais sobre a condição humana, as quais veremos, uma de cada vez, nos artigos que seguem. Agora nossa atenção se volta para a primeira questão: a negação da soberania de Deus. O incrédulo, segundo as Escrituras, é aquele que não duvida da existência de Deus, mas o considera inoperante: não age, não exerce soberania, nem julga (ver, por exemplo, Salmos 12:4; 64:5 e 94:7). Na base da incredulidade está a seguinte crença: Deus criou tudo, mas deixou o homem por conta própria no mundo; mantém-se afastado num céu distante, alheio às ações da humanidade. Ou seja, no Gênesis começa a investida das Escrituras contra a descrença na soberania divina. Esta descrença existia nos tempos antigos e existe ainda hoje em formas mais requintadas, como as teorias que pretendem que o Universo foi criado por forças impessoais e a transferência dos atributos de Deus para a natureza, que constatamos no naturalismo.

A intenção das narrativas da criação é mostrar que absolutamente tudo procede de Deus e absolutamente tudo está subordinado a ele. Nesses capítulos, o poder de Deus sobre o mundo e a vida é irrestrito. Tudo, especialmente o homem, está subordinado àquele que criou o mundo e mantém a vida por puro amor. Onde havia vacuidade, informidade e escuridão, por virtude do poder cósmico de Deus, surgem o céu e a terra, o marco da vida do ser humano. E quando este chega ao mundo pela criação, encontra tudo pronto. Céu, terra, seres vivos e coisas são criação de Deus. O próprio homem é obra de Deus. Toda realidade criada saiu da vacuidade informe e escura e é sustentada por Deus sobre essa mesma vacuidade — o lugar, segundo uma concepção muito antiga, onde se encontra o que ainda não foi criado. Pode-se expressar com mais força o poder único de Deus?

A credenda não é "creio na criação", porque ela pode conduzir por um perigoso desvio: transferir os atributos de Deus para a natureza, submeter-se à natureza e adorar a criatura em vez do Criador como faziam os povos antigos. Ao concentra-se em Deus, o texto coloca já no começo a fé em sua expressão mais fundamental: "creio no Deus único, criador de tudo quanto existe". E essa fé se expressa mediante a aceitação livre e amorável de sua soberania, isto é, comprometer-se, engajar-se, ligar-se a Deus por uma vontade comum.

 

Soberania incontestável

Gênesis 1 e 2 destacam três aspectos da soberania de Deus, os quais a tornam incontestável. Ele é o...

1. Senhor da vida. Nesses capítulos, a vida é um dom de Deus; sem dúvida, o mais precioso de todos. Ela é possível porque Deus é o Deus vivo e o Deus da vida. Justamente, porque Deus é vida e dá a vida, ele não é um ser passivo, habitante de um céu distante. Por ser vivo, Deus é essencialmente ativo: cria o Universo e o homem, comunica-se com suas criaturas, dirige, intervém na história.

A narrativa procura tornar isso mais evidente na criação do homem. O primeiro ser humano foi formado por Deus com base em elementos idênticos a muitos dos que constituem o pó da terra. Ali está Adão, pronto, perfeito nos mínimos detalhes. Já podia ser chamado "homem". Porém, faltava-lhe o mais importante — a vida. Esta ele não poderia obter por si mesmo, da natureza, ou de qualquer outro ser criado. Recebe-a do único que poderia doá-la — de Deus. Só de posse do sopro divino é que Adão podia ser qualificado como "ser vivente".

O Deus criador é o Senhor da vida. Outorga-a a todos os seres vivos. Promete-a em sua plenitude aos homens que o amam e acatam sua soberania de amor. Aquilo que dá sustentação ao ser do homem não vem dele, mas de Deus. Há um ponto mais forte do que a vida para o assentamento da soberania divina?

 

2. Senhor do ser humano. Como o céu, a terra, as plantas e os animais foram todos criados com base no homem e para o homem, as narrativas da criação atingem seu ponto culminante ao tratar a soberania de Deus sobre o ser humano. Vale-se de uma série de atos de soberania divina para expressar que o Deus criador é o único e legítimo Senhor do ser humano.

Começa estabelecendo um contraste entre a criação do ser humano e a criação do mundo. Este foi chamado à existência: "E disse Deus haja... (tal coisa), e houve... (tal coisa)”. Mas o homem foi feito por Deus: "E disse Deus: façamos o homem..."; e "formou Deus o homem do pó da terra, e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida". Tais expressões sugerem um envolvimento mais íntimo de Deus na criação do ser humano, como se o criador o tivesse feito com suas próprias mãos, com toda dedicação e carinho (ver Salmos 119:73). O processo teve duas etapas. Primeiro Deus planejou o ser humano, depois o tornou realidade. O ser humano não deve ter dúvidas quanto a ser uma criatura de Deus e quanto a dever obediência a Deus.

Se bem que a narração, por um lado, frise a solidariedade entre o ser humano e a natureza, por outro lado, deixa bem claro que o homem está sujeito a um Deus vivo e pessoal, e não à natureza. Faz uma distinção entre Deus e a natureza — um é o Criador, a outra é a criatura. E mostra que todos os elementos da natureza estão submetidos a Deus, inclusive o sol e a lua, adorados como divindades por alguns povos relacionados com Israel.

Como Senhor do homem, Deus determina também o padrão rítmico da ação humana: alternar trabalho em Deus com descanso em Deus (Gênesis 2:2 e 3).

E, ainda, num ato de soberania da mais alta expressão, Deus fixa os limites: o ser humano tem domínio sobre o animal e Deus tem domínio sobre o homem (Gênesis 1:28). A proibição de tocar ou comer a fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal, coloca a vontade divina como superior à vontade humana. Esta deve estar submetida àquela. O ser humano tem plena liberdade dentro do campo do bem. Mas está proibido de entrar no terreno do mal. O verdadeiro lugar do homem é dentro desses limites. Fora deles sua vida e sua ação não tem sentido (Gênesis 2:16 e 17).

3. Senhor da história. Para o Gênesis não há dúvidas: é Deus e não o homem quem começa a história e a dirige. Como muito bem destaca Gerhard von Rad em sua Teologia do Antigo Testamento, a criação é a primeira obra de Deus dentro do tempo. Ela inicia a história. Mas ela não está só, outras obras do Deus criador vão segui-la dentro do tempo e da história. Deus não pode ser plenamente Senhor do homem sem ser também Senhor da história. Soberania de Deus sobre o homem e soberania de Deus na história andam juntas. Como diz Paul Ricoeur (História e Verdade), ao ser soberano do homem, Deus é também soberano da história.

 

Soberania que espera consentimento

Para o Gênesis, assim como nas demais Escrituras, a essência de Deus é ser ele vivo, criador e soberano. Ele quer a vida do homem. E porque sua soberania é de amor, ele que ser amado pelo homem. Seu desígnio agora é salvar a criação de seu rompimento que aconteceu em tempos primordiais e é a causa de todo sofrimento, da destruição e da morte que imperam neste mundo. Segundo Gênesis 3, a origem do rompimento da criação é o rompimento do homem com seu Criador. Começou quando o homem não mais reconheceu a soberania divina, e se transformou em um antagonista do Criador. O primeiro requisito para resgatar o homem e seu mundo das conseqüências terríveis de tal rompimento é que ele volte para o Criador.

As narrativas sobre o Deus criador têm como pano de fundo a existência de uma humanidade despedaçada por seus antagonismos, cuja matriz é uma questão universal que ainda não foi resolvida: a tendência da humanidade de não consentir com a soberania divina. Eis alguns exemplos:

O antagonismo erguido entre os indivíduos por suas inclinações passionais: cada um pensando ter condições, como qualquer outro, de decidir o que é justo ou injusto; de governar a si próprio; querendo leis gerais para a sua conservação, mas está propenso a isentar-se delas em segredo.

O antagonismo erguido entre os povos por suas más disposições, constituindo cada um obstáculo para os outros.

O antagonismo erguido pelo poder político, que se propõe garantir pela força a segurança externa e a concórdia interna. Mas —isto é muitas vezes verdade—, malgrado da maioria, faz a guerra e se vale do poder despótico para dominar a comunidade política.

Antagonismos como esses resultam numa humanidade constituída por indivíduos isolados, na qual cada um se vê contra todos; num mundo em pedaços onde o conflito entre indivíduos e povos é onipresente, pois nele impera a desconfiança, o medo do outro, os interesses particulares e ninguém está seguro.

No Gênesis, o poder de Deus é menos aquilo que domina as pessoas, que aquilo que as cria; e mais importante que atribuir a Deus um poder incomensurável é o fato de todos sentirem a necessidade de sua soberania, de darem a ela seu consentimento. É por aí que o homem deve começar a fim de curar suas doenças, resolver seus conflitos e superar as ambigüidades e contradições de sua existência.

Tal conceito de soberania divina é uma novidade no mundo antigo. Significa uma profunda mudança na forma de pensar a humanidade e as sociedades que a conformam. Porque Deus é o criador da humanidade, ele exige que os homens vivam em fraternidade. Tal conceito destrói os fundamentos de toda idéia que separa e isola os seres humanos e gera antagonismos entre eles, como o despotismo, a idéia de uma hierarquia natural (segundo a sabedoria, a nobreza, a riqueza...) e toda justificativa para uma sociedade de castas.

O Gênesis coloca o consentimento à soberania de Deus, que quer a vida do ser humano, em primeiro lugar na estrutura dada ao material narrativo, porque tal consentimento comparece na base de uma nova atitude de vida, cujo embrião é Israel, o povo Aliança. É no ensino de Jesus que esse fundamento posto à vida ocupa o lugar mais importante. Para ele a questão primária e decisiva consiste em buscar em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça (Mateus 6:33).* Lembre isto: não existe reino sem soberania.

Mas o ensino de Jesus sobre a soberania de Deus contrasta com a crença generalizada no mundo antigo (inclusive com a de Israel) em divindades que exercem sua soberania como monarcas ou imperadores sentados em seus tronos, impondo sua vontade a todos, determinando tudo mediante leis imutáveis, pouco se importando com as pessoas. Jesus não pensa em Deus como um rei. Prefere usar uma imagem exclusiva: a de um pai amoroso. Pois a imagem do Pai celestial expressa melhor a soberania de Deus: é uma soberania de amor, muito diferente da exercida pelos reis, já que não se impõe pela força e não se vale da coerção, mas tem como mira a vida do homem.

E para você, leitor, o que é mais fundamental e decisivo em sua vida? O que é assim para sua igreja? É o que Jesus colocou como tal, ou é outra coisa? Você se relaciona com Deus como se ele fosse um monarca legislador que exige a guarda de suas leis, ou se relaciona com um Pai celestial amoroso, a cujo amor deve corresponder com todo seu entendimento, com toda sua alma e com toda sua força? Este é o consentimento que Deus espera que nós demos a sua soberania.

* Para saber mais sobre o ensino de Jesus quanto ao “reino de Deus”, veja meu trabalho As Exigências de Jesus, publicado nesta página da Internet.

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