Série Descobrindo
as Riquezas da Teologia da Criação no Gênesis
Por Edegard Silva Pereira Na teologia da criação, o Deus criador é também o Senhor da vida, isto é, aquele que tem completo domínio sobre a vida e exerce sua soberania por meio dela. Ele é o Senhor da vida porque é o Deus vivo e o Deus que dá a vida a todos os seres deste mundo. O encontro com o Senhor da vida resulta em uma lição de vida, que nos faz refletir sobre o prodígio de estar vivo e de viver.
O Senhor da vida Gênesis começa assim: “No princípio criou Deus o céu e a terra”. Nesta primeira frase, o verbo "criar" é uma tradução do verbo bara', empregado nas Escrituras hebraicas especificamente para referir-se ao poder criador de Deus. Esse verbo nunca é usado para descrever qualquer ação criadora do ser humano. A sua colocação logo no começo constitui uma espécie de advertência: "Encare o poder criador de Deus com humildade e respeito, pois é completamente diferente da capacidade criativa do ser humano. Trata-se de um poder cósmico, o único capaz de gerar e sustentar a vida”. Esse recado é importante para todos, porque a gente sempre tem a tendência de atribuir a Deus forma, ações e atributos humanos. É especialmente importante para os cientistas e os tecnólogos, principalmente para os físicos, que imaginam que, pelo conhecimento e a capacidade que adquiriram (estudando a criação!), podem dispensar a Deus. Quando contemplamos a natureza e o Universo perdemos as ilusões arrogantes, pois percebemos que a inteligência e o poder do homem são pequeninos se comparados com a inteligência e o poder de Deus. Mas qual seria o principal motivo para se encarar o poder criador de Deus com humildade e respeito? É a diferença entre o que Deus cria e o que o homem inventa. Vejamos alguns exemplos. Primeiro, uma comparação entre as células e os laboratórios de química. As células são como minúsculos laboratórios vivos especializados em sintetizar certas substâncias químicas necessárias à manutenção da vida. Elas conseguem produzir em seu reduzidíssimo espaço interno e em tempo recorde diversas substâncias complexas ao mesmo tempo. E isso deixa abismados os químicos porque eles conseguem produzir apenas um único produto químico de cada vez, trabalhando muitas horas, em seus enormes laboratórios. Outro exemplo é a semente. Tão pequena, ela contém não só o embrião de uma planta —podendo ser uma gigantesca e centenária árvore—, mas também todas as instruções para comandar, entre outros, o nascimento e o crescimento do vegetal, determinando-lhe o tipo de tronco, casca, folhas, flores, frutos, o tamanho, a época de florir e produzir frutos, os mecanismos de defesa e restauração e a duração de seu ciclo de vida. Ou seja, tudo sobre a planta encontra-se no minúsculo espaço da semente. Imaginemos ser possível construir um computador para fazer o que a semente faz. Teria que ser uma máquina enorme e com uma potência extraordinária. Consumiria milhões de dólares e anos de pesquisa para construí-la e programá-la a fim de realizar tal função. Posso assegurar-lhe isto: é mais fácil para um computador controlar o vôo de um foguete espacial do que controlar o desenvolvimento de uma planta desde que nasce até o fim de seu ciclo de vida. Comparemos agora a parafernália eletrônica e mecânica que controla o vôo de um avião com o minúsculo cérebro de um pássaro. Mesmo com todo seu sofisticado equipamento, o avião é incapaz de realizar, entre muitas coisas mais, as manobras que um pássaro realiza com extrema facilidade, como pousar e alçar vôo de um galho de árvore. Esses exemplos são suficientes para mostrar a diferença entre o que Deus cria e o homem inventa: Deus tem completo domínio da tecnologia da vida — cria e sustenta seres vivos; enquanto o homem tem domínio de uma tecnologia que lhe permite inventar coisas, manipulando princípios e materiais obtidos na criação . Jamais conheceremos o Senhor da vida se não sabemos o que é a vida. Pois atrás da vida está Deus, a única potencia criadora capaz de trazer a existência uma nova realidade. ]
As propriedades da vida O que é vida? Só Deus sabe! Ninguém pode pegar um pouco de vida na palma da mão e dizer: “Isto é vida”. Essa maravilha das maravilhas é algo imaterial. Só é possível conhecê-la, indiretamente e em parte, pela maneira como se manifesta nos seres vivos. Quando observamos atentamente o espetáculo contínuo e grandioso da vida, percebemos um pouco de suas propriedades. Segue um resumo das principais. 1. Única. Procure onde quiser, por todas partes, e não vai encontrar nada igual à vida, porque ela é única. Não existe nada comparável a ela. Nada pode produzi-la a não ser ela mesma. Não passa de pura ficção sugerir que a eletricidade pode gerá-la, como fazem algumas teorias sobre a origem da vida. Admitir isso significa banalizar a vida, ignorar que ela é única e sua fonte é Deus. Do ponto de vista científico, trata-se de uma imaginação tão monstruosa como Frankenstein, que, na ficção cinematográfica, adquiriu vida mediante uma descarga elétrica. O oposto é verdadeiro: a vida pode gerar eletricidade, como acontece, por exemplo, no cérebro. Porque a vida é única, nada pode substitui-la. Portanto, não podemos colocar outro fundamento a nossa existência (como dinheiro, status, poder, fama...) senão o que já está posto pelo Criador: a própria vida, isto é, viver com plenitude e intensidade. 2. Transcendente. O uso desta expressão indica compreender bem a impossibilidade de definir uma realidade tão misteriosa e, ao mesmo tempo, tão evidente como a vida. Ela está acima de como a imaginamos e é sempre muito, mas muito mais que formas de existência particulares ou coletivas que adotamos. Devido a transcender eternamente nossas formas de existência, a vida (melhor Deus através da vida) nos desafia constantemente a encontrar novas e melhores formas nas quais possa se consubstanciar adequadamente. Acredito que daí provém o desejo, existente em todos nós, de uma existência melhor que a presente. Por isso, o incessante fluxo da vida tem sido constantemente modificado em sua maneira de consubstanciar-se em formas de existência e estruturas. No transcurso da história, observamos o seguinte: formas de existência sendo superadas por outras formas. Apesar de todos os avanços, hoje não é diferente. As pessoas e as sociedades modernas estão sempre desejando melhorar a forma de vida. Pois a vida está sempre a nos dizer: "Eu sou mais do que vocês imaginam". O desafio que ela constantemente nos propõe é este: aprender novamente a viver. A vida estava aqui muito antes de chegarmos e permanecerá aqui depois de partirmos. Contudo, enquanto permanecermos aqui, ela residirá em nós e agirá continuamente a nosso favor, sustentando nosso ser de modo prodigioso, até completarmos o ciclo por ela determinado. 3. Inteligência. Em suas manifestações, a vida revela uma inteligência elevada e sem limites, expressa em cada fibra, célula, órgão, sistema e função dos seres vivos e na adequação a seus respectivos ambientes. Graças a essa inteligência descomunal, a vida conhece minuciosamente cada detalhe dos seres vivos e os comanda. Por isso, é a única capaz de sustentar-lhes o ser. Nossa inteligência é uma gota desse oceano, uma dádiva de Deus através da vida. Nosso grande erro é não confiar na vida. Conseqüentemente, não a fazemos comparecer na base de todas nossas ações (da educação, do trabalho, da política, da economia...). Quando nos separamos da vida, passamos a pensar de modo estúpido e a viver marginalmente. 4. Poder. A força da vida é incomensurável. Como pode estar em todas as partes ao mesmo tempo e manifestar-se em tantas formas diferentes? E em cada forma, como pode gerar tantos indivíduos diferentes? De fato, não existem dois indivíduos iguais; cada um é único; no passado não houve, no presente não há e no futuro não haverá outro igual a ele. Pense na vida sustentando, neste momento, todos os seres vivos do mundo. Você ficará estarrecido com a dimensão da força ativa que ela libera continuamente para sustenta-los. A tudo isso, acrescente o seguinte: imagine o poder que a vida já liberou no passado e ainda vai liberar no futuro, durante milênios. É fantástico. A força da vida é a maior força do mundo que está permanentemente à nossa disposição. A questão é: Como a encaramos? O que fazemos com ela? Podemos esconder e até negar que essa força reside em nós, age em nosso favor e por nosso meio. Não obstante, ela continua onde deveria estar, cumprindo fielmente sua missão. Por que não se aliar a ela? 5. Harmonia. Ficamos fascinados com a harmonia estabelecida pela vida em cada organismo, entre a enorme diversidade de seres vivos, na estonteante complexidade de funções destes e em seus ambientes próprios. Nosso corpo está formado por bilhões de células agrupadas em fibras, órgãos e sistemas, com funções específicas, todas trabalhando em perfeita harmonia. Em nosso próprio organismo, a vida nos mostra a chave da harmonia: consiste em concentrar-se num projeto comum, tirando o máximo proveito da diversidade de recursos. É essa harmonia que temos que reproduzir constantemente em todas a área de nossa vida. Ela é para produzir bons resultados. Por exemplo, se você tem a habilidade de estabelecer harmonia com as pessoas certas, formará com elas um poderoso vínculo comum e um relacionamento de compreensão. Conseguirá uma soma de recursos —os delas com os seus—, isto é, um fortalecimento mútuo. Será capaz de preencher as necessidades delas e elas serão capazes de preencher as suas. Se há harmonia em sua família, terá importante apoio de retaguarda para estudar, trabalhar e fixar metas. Vivendo em harmonia com o meio ambiente, estará contribuindo a fim de que o mundo seja melhor para todos. 6. Amor. Surpreso? Você não esperava encontrar este termo aqui? Eu entendo, pois o amor é o atributo menos compreendido da vida. Mesmo assim, é o principal. Fomos criados por puro amor e vivemos para amar. Através da vida, Deus derramou o amor em nós e a nossa volta. Nosso grande erro é tolher esse amor. Viver para amar significa atingir o nível mais elevado da existência. Há uma grande diferença entre a pessoa que ama e a que não, entre o trabalho realizado com amor e o realizado apenas por necessidade ou obrigação. As pessoas mais produtivas e felizes são as que amam mais. Viver sem amor não é viver. A falta de amor descaracteriza a vida, diminui o potencial e abre as portas para todo tipo de padecimento. Qual destes médicos você escolheria: o que trata seus pacientes com amor ou o que trata simplesmente de maneira profissional? O melhor é sempre o que é feito com amor. Sem amor, uma criança não consegue crescer nem desenvolver uma personalidade saudável e normal. Torna-se doente, apática, triste e sem brilho. Uma criança precisa viver mergulhada no amor. Quando isso acontece, lá pelos dezesseis anos de idade, ela estará pronta. Um adulto sem amor torna-se uma pessoa confusa, perdida no mundo, insatisfeita, agressiva e de relacionamento difícil. 7. Generosidade. O fluxo da vida age do mesmo modo que Deus quando, nas palavras de Jesus, faz chover ou sair o sol sobre todos. sem fazer distinção de pessoas. A vida também não faz distinção de pessoas. Oferece a todos suas dádivas por igual. Não se importa se estamos alegres ou tristes, se somos gordos ou magros, ricos ou pobres, lindos ou feios, cultos ou ignorantes. Não se importa com raça, religião, nacionalidade ou credo político. Se uns extraem mais e outros menos da vida, é porque cada indivíduo define a porção dos benefícios que está disposto a receber. Aqueles que vivem à margem da vida têm a tendência de culpa-la por suas carências. Na realidade, fazem isso para proteger-se das perguntas reais: Que tipo de existência eu decidi levar? Quanto estou disposto a extrair da vida? Ninguém de bom senso seria capaz de questionar a generosidade da vida. Dependemos dela por completo, pois é o elemento fora do qual nós não poderíamos viver. Sem ela, somos nada e nada podemos. Neste mundo não existe nada mais generoso que a vida. Constatamos observando a natureza que a vida come a si mesma para continuar vivendo. Este é também nosso caso. Através de outros seres vivos, a vida se doa graciosamente para sustentar nossa existência. Nos alimentamos de seres vivos e seus produtos, como frutas, verduras, sementes, leite, ovos, carne, aves e peixes. Ela nos fornece até os microorganismos amigáveis que vivem em nosso intestino e nos ajudam a aproveitar os alimentos. De seres vivos obtemos fibras para o vestuário, a útil madeira e um sem número de substâncias para fabricar remédios e outros produtos. Em Jesus Cristo encontramos a mesma generosidade da vida, porém numa dádiva suprema. Ele disse “Eu sou a vida”, e deu sua vida em benefício da nossa. Antes, ensinou que precisamos alimentar-nos de sua vida para continuarmos vivendo. Não é isso que fazemos quando, na Santa Ceia, bebemos o símbolo de seu sangue derramado e comemos o símbolo de seu corpo sacrificado por nós na cruz? Eu imagino o que o leitor pode estar dizendo agora: "Essas propriedades da vida parecem atributos divinos". E eu respondo: são mesmo. Todas as religiões reconhecem que a vida é um dom de Deus. No Gênesis, ela e apresentada como o “sopro de Deus”, como algo de Deus que reside em nós. Portanto, não é estranho que ela tenha tais atributos. Nas Escrituras, ela está totalmente identificada com Deus e até se confunde com ele, tanto que a ação vivificante divina foi personificada no Espírito de Deus ou Espírito Santo. E essa personificação tem sentido, pois os atributos da vida não deixam dúvidas quanto a ela ser uma manifestação do Deus vivo e pessoal. Muitas pessoas não acreditam em milagre. Não percebem que a vida é um milagre, que o que realmente conta é o prodígio de estar vivo e de viver, e que há uma só vida que procede de uma única fonte, de Deus. A mesma vida que está em mim está também no outro, seja homem, animal ou planta. Os seres vivos formam uma comunidade de vida, na qual todos dependem de todos para continuar vivendo. E esta verdade deveria fazer-nos sentir um profundo respeito pela vida que está no outro. Esses atributos da vida atestam não só sua origem divina, mas também que, por meio dela, Deus está presente em todos e exerce assim sua soberania. As Escrituras estão repletas de exemplos de pessoas que foram conduzidas por Deus a um destino através das circunstâncias da vida. Ali vemos que a umas a vida leva, e a outras, empurra. No Gênesis há exemplos disso: Abraão, Isaque, Jacó, José, entre outros. E nos outros livros da Bíblia há muitos mais. Como um alfaiate, Deus nos costura com a linha da vida. Neste ponto, é provável que o leitor tenha em mente a seguinte questão: Como poderei lidar com a vida se eu mal a conheço? Eu respondo: do mesmo modo que dirige um automóvel ou usa um computador. Você não precisa saber tudo sobre automóveis ou computadores para usa-los. Basta saber relacionar-se adequadamente com essas máquinas. Assim é com a vida. Ela não exige que você conheça tudo a seu respeito. Requer apenas que sua relação com ela seja sã. Não fique preocupado. Sobre como deve ser tal relação, encontrará informação suficiente nas instruções de Jesus, as quais incrementam as instruções do Gênesis e de todo o Antigo Testamento. O fundamental é assumir um compromisso total com a vida.
Compromisso total com a vida A mensagem de Gênesis 1 e 2 sobre a origem divina da vida nos impressiona e até desperta em nós o desejo de conhecer melhor o Autor e Senhor da vida, de respeitar mais a vida, de extrair o máximo dela. A vida é a dádiva mais preciosa que o homem recebeu de Deus; por isso, o Gênesis coloca como primeiro compromisso do homem o compromisso com a vida. Não é à toa que o Gênesis coloca a criação, isto é, a doação da vida, em primeiro lugar. E, de fato, o que é o ser humano sem a vida que há nele e sem a que há no mundo? Apesar disso, o Gênesis mostra (a partir do capítulo 3) que nós não assumimos o compromisso com a vida; pelo contrário, fizemos um pacto com a morte. E realmente, nossas formas de vida e estruturas não têm dado expressão adequada à vida. Sempre a limitam e a impedem de manifestar-se com plenitude e intensidade. O desafio que o Gênesis nos propõe é encontrar novas formas de vida e estruturas que superem as existentes e sejam mais coerentes com a vida. Em vez de uma relação sã com a vida, temos com ela relacionamentos que são, em geral, doentios. Nossa tendência é despreza-la, destruí-la. Pensamos que ela é uma coisa à que todos temos direito e podemos fazer com ela o que bem entendermos. Não são poucos os que a odeiam. Descobrimos muitas maneiras de destruir a vida que está em nós e a que está no mundo. Toda a destruição provocada durante milênios, devido a nosso desdém pela vida, é uma tragédia de proporções inimagináveis, que está pondo em perigo nossa sobrevivência neste mundo. Nos dias de hoje, quando o desdém pela vida adquire uma espantosa dimensão, o compromisso com a vida torna-se cada vez mais relevante. Precisamos assumi-lo hoje mais do que nunca. Deus já fez sua parte. Ele assumiu, em Jesus Cristo, o mais sério compromisso com a vida humana e com o mundo do homem (veja João 3:16). O próprio Senhor Jesus anunciou claramente o objetivo de sua atividade terrena: "Eu vim para que tenham vida e vida completa" (João 10:10). O compromisso com a vida, que o Gênesis coloca em primeiro lugar, transforma-se, em Jesus Cristo, numa exigência total que a tudo sobrepuja. Leonhard Goppelt (Teologia do Novo Testamento) a expressa assim: "Temos que agir, sempre e em toda parte, de tal maneira que tornemos possível a vida no sentido de Deus!" Deus faz esta exigência porque, através de toda a história, o ser humano assumiu mais um compromisso com os aspectos materiais relacionados com a vida e não com ela mesma. E saber que sempre estivemos dispostos a sacrificar a própria vida em favor desse materialismo! Mas essa é a "vida" no sentido do homem: uma espantosa deturpação. Um resumo da mensagem do Gênesis sobre o Senhor da vida pode ser este: A vida só merece ser chamada assim quando a vemos com os olhos de Deus. E quanto à própria vida, pode ser o seguinte: Não resista à vida no sentido de Deus. Fazer isso significa colocar-se numa situação de extremo perigo (relacionar com Gênesis 3). Diga sim à vida e ela dirá sim a você. Leia também: |
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