EUA não são Roma, diz
ex-redator de Bush
23/02/2003 -
09h57
MARCIO AITH
da Folha de S.Paulo, em Washington
Apesar da supremacia militar, os EUA não são a Roma moderna porque a segurança
de sua população depende da cooperação internacional. A opinião é de David Frum,
ex-redator de discursos do presidente George W. Bush que ajudou a cunhar a
controversa expressão "eixo do mal". Em entrevista à Folha, Frum contou
que Bush "não é bom com palavras".
A expressão "eixo do mal" foi lida pelo presidente quatro meses depois dos
atentados de 11 de setembro. Ao colocar sob a mesma classificação Coréia do
Norte, Irã e Iraque, sugeriu uma aliança desses três países contra os EUA.
Frum disse ter sugerido primeiro "eixo do ódio", mas teve de trocar o "ódio"
pelo "mal" como forma de atrair o forte apelo religioso da população. "Num país
onde quase dois terços da população acreditam na existência do diabo, o uso da
palavra mal ['evil'] tem impacto", disse Frum, judeu.
Jornalista, Frum trabalhou na Casa Branca como redator de discursos entre
janeiro de 2001 e fevereiro de 2002 -período sobre o qual escreveu o livro "The
Right Man". Foi demitido depois que sua mulher informou a amigos, por meio de
e-mails, que fora seu marido o autor da expressão "eixo do mal".
Folha - Sendo um não-cristão, como o sr. se sentiu trabalhando numa Casa
Branca onde reuniões começam com orações e o presidente promove leituras da
Bíblia?
David Frum - Foi um pouco exótico no começo. A primeira frase que ouvi na
Casa Branca foi: "Não te vi na leitura da Bíblia". Mas não foi desconfortável.
Teria sido pior se eu fosse apenas descendente de judeus. Mas, como sou judeu de
fato, compreendo que somos minoria onde quer que estejamos.
No entanto a imagem que os evangélicos carregam, de rígidos e implacáveis, não é
a mesma que vi no governo. Os evangélicos da Casa Branca de Bush são
extremamente gentis e cordiais. Levaram a Washington um tom de seriedade moral.
Quando Bush foi eleito, pesquisas indicavam que os republicanos perdiam para os
democratas em todos os critérios, a não ser no quesito da moralidade. Al Gore
deveria ter ganhado a eleição, não fosse o quesito da moralidade e, talvez, o da
religião.
Folha - Qual é a influência da fé de Bush sobre sua administração?
Frum - Tudo no governo está ligado à natureza do presidente. E você não pode
entender Bush sem entender o poder de suas convicções religiosas. A fé do
presidente marcou sua reação aos atentados de 11 de setembro, seu projeto
político para os EUA e para o mundo. Além disso, o eleitorado republicano deixou
de ser só de ricos para tornar-se um partido de famílias religiosas. Pessoas
casadas, com filhos e que vão à igreja uma vez por semana deram a vitória ao
partido do presidente nas eleições legislativas de novembro passado.
Essa é uma das razões pelas quais a religião se tornou importante. Mas Bush não
ameaça a secularidade ou a separação entre igreja e Estado. O presidente só quer
energizar valores religiosos.
Europeus ficam horrorizados com a religiosidade de Bush. No entanto, na
Alemanha, os cidadãos são obrigados a pagar taxas para a igreja. No Reino Unido,
a igreja ainda é o segundo ou terceiro maior proprietário de terras.
Folha - Como era seu contato com o presidente Bush?
Frum - Ele lia meus rascunhos e mandava de volta com correções do tipo "isso
vai aqui" e "isso não faz sentido algum". Sua maior preocupação é com a lógica
dos textos. Houve também contatos telefônicos. Antes do 11 de setembro, o
presidente reunia-se com seus redatores de discursos a cada duas semanas para
expressar o que pensava. Bush, visivelmente, não é bom com as palavras. Para
pessoas assim, normalmente há duas reações. A primeira é dizer: "Não ligo para
palavras, elas não importam". Essa era a reação de seu pai. Outra é dizer:
"Entendo o poder das palavras, quero usá-las apropriadamente e, para isso, quero
que vocês [redatores de discursos] entendam o que estou pensando". Semanalmente,
Bush convocava cinco a sete de nós para o Salão Oval para conversar.
Folha - O sr. poderia ser mais claro com relação a Bush não ser bom com
palavras?
Frum - Quando Bush está de pé, improvisando, sabe muito bem o que quer
dizer. Não se trata de um homem com opiniões frágeis. O presidente tem posições
sólidas, claras e coerentes. Várias pessoas, quando enfrentam o público,
procuram por palavras que nunca vêm. É o caso de Bush. As câmeras estão lá, ele
procura pelas palavras, mas elas simplesmente não vêm. Não fluem para ele como
para outros políticos. Para algumas pessoas, pensar significa transformar idéias
em pensamentos. Outras têm impressões, idéias e imagens, mas não palavras. Ele
está no segundo grupo.
Folha - O sr. foi co-autor da expressão "eixo do mal". De quem foi a idéia de
colocar esses três países distintos [Irã, Iraque e Coréia do Norte] dentro do
mesmo saco?
Frum - Um discurso como aquele envolve o trabalho de cerca de cem pessoas.
Redatores trabalham com base no condicional. Dizemos ao presidente: "Se o sr.
quiser dizer isso, talvez essa seja a melhor forma". Meu pensamento inicial foi
descobrir a ligação entre o terrorismo e esses países. Embora informações de
inteligência mostrem se tratar de um grupo heterogêneo e rival, é óbvio que
odeiam os EUA mais do que a si próprios e que, se pretendem vencer os
americanos, devem se unir.
Folha - Alguém pediu que o sr. buscasse uma ligação entre esses países ou o
sr. a sugeriu ao presidente espontaneamente?
Frum - A idéia inicial, solicitada pelo presidente, foi preparar um discurso
explicando por que Saddam Hussein deveria ser deposto. Pensei: se formos fazer
essa ligação [entre o 11 de setembro e Saddam], qual seria a melhor maneira?
Minha primeira sugestão foi usar a expressão "eixo do ódio". Mas, como Michael
Gerson [chefe dos redatores de discursos] queria aproveitar a referência
teológica usada por Bush após o 11 de setembro, "eixo do ódio" transformou-se em
"eixo do mal". Bush chamara os autores do atentado de malfeitores ["evil ones"].
Num país onde quase dois terços da população crêem na existência do diabo, a
comparação teve impacto. A inclusão do Irã partiu da assessora de segurança
nacional, Condoleezza Rice.
Folha - Em sua opinião, qual é o plano de Bush para o mundo?
Frum - Pessoas frequentemente traçam paralelos entre os EUA e o Império
Romano. Mas não é verdade. Os romanos não dependiam tanto da cooperação de seus
aliados quanto os EUA agora. Quando irritadas, as autoridades dos EUA podem
ameaçar ações unilaterais, mas nunca seriamente. A dependência não é só
econômica, mas também de inteligência. Veja o caso da Tríplice Fronteira (entre
Brasil, Argentina e Paraguai). Tudo o que os EUA sabem dessa região vem dos
governos aliados. É por isso que os EUA não são um poder imperial.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u52053.shtml
Leia também:
Retornar |