Folha de S.Paulo Faz Referência a Trabalho Missionário de Leigos de Poá, SP


28/07/2002 - 03h48
"Santa da janela" acirra rivalidade religiosa em Ferraz de Vasconcelos

ARMANDO ANTENORE
da Folha de S.Paulo

Os contornos da santa ou de algo que lembra Nossa Senhora continuam lá, na pequena janela da casa igualmente modesta. Mas agora há quem vislumbre novo desenho logo abaixo da Virgem. Um semblante sereno, que estaria se insinuando num outro vidro daquela mesma janela em Ferraz de Vasconcelos (SP). A face de um homem com barba e longos cabelos. O rosto de Cristo.

Não são poucos os que o vêem ainda que ali não exista nada, apenas um vidro transparente, sem manchas ou riscos. Também não são poucos os que defendem: o surgimento da santa (e a sutil aparição de Jesus) prova que os católicos trilham o caminho certo e que os dogmas dos evangélicos não passam de um equívoco.

O inquietante fenômeno místico responsável pela súbita notoriedade da rua Antonio Bernardino Correia aguça, portanto, as rixas entre os dois principais grupos religiosos do país. A discórdia se dá porque, diferentemente dos católicos, os evangélicos não cultuam Maria nem reverenciam imagens.

Na última quinta-feira, o vendedor alagoano Valdemir Vicente de Paula, 57, resumiu assim a rivalidade: "Padre Cícero anunciou, há muito tempo, que uma gente estranha iria tocar nossas campainhas para tentar nos convencer a mudar de religião. Sou católico e cansei de atender crentes em minha porta. Eles insistem: "Abandone a idolatria". Falam que santo nenhum tem poder. Se não tem, como explicam o que está acontecendo aqui? A Mãe Senhora apareceu na janela justamente para nos avisar que não devemos negar nossa fé".

Morador de Poá (SP), Valdemir já visitou a "Virgem de Ferraz" seis vezes. Nas mais recentes, enxergou o rosto de Cristo. "Vi, sim, com uma clareza danada. Você não vê?" O vendedor acredita que, surgindo sob os traços da santa, Jesus age como uma espécie de avalista e reitera os recados que "a Imaculada" pretende disseminar.

Idéias semelhantes povoam a cabeça de Maria Helena Monteiro, 54. Pernambucana, a auxiliar de limpeza contou que, na tarde de quinta-feira, saiu do trabalho, pegou três ônibus e se dirigiu "à rua do milagre".

Encontrou uma multidão em fila, a peregrinar pela garagem da casa térrea de número 330. A Guarda Municipal de Ferraz de Vasconcelos organizava os fiéis. Cantando, rezando ou simplesmente em silêncio, os devotos se aproximavam da janela a única que dá para a garagem, observavam a silhueta da santa no vidro e partiam. Vários deixavam flores ou bilhetes com pedidos. Outros se benziam.

O ritual se repete sem parar há duas semanas, das 8h às 20h -- período que os donos da casa franquearam à romaria. A guarda estima que pelo menos 163 mil pessoas passaram por lá. O número fica ainda mais eloquente quando se considera que a cidade tem 142 mil habitantes.

"Desci do terceiro ônibus imaginando que avistaria apenas Nossa Senhora", prosseguiu a auxiliar de limpeza. "Só que, de repente, notei o rosto de Cristo também e uma coroa de espinhos sobre a cabeça dele. É um sinal de Deus. Um alerta do céu. No meu serviço, conheço uma porção de crentes. Todos pregam que não se deve guardar imagem de santo e que o demônio se esconde atrás das estátuas sagradas. Pois, agora, Maria veio dizer que os evangélicos estão errados."

"Errados!", reforçava o ajudante geral Lázaro Roza, 65. Bêbado, perambulava pela rua, gritando: "A Igreja Universal é grana. A santa da janela é fé".

"Juro que tentei enxergar Jesus. Fui até a casa um monte de vezes, me apliquei à beça e não consegui. Vi somente a Virgem", lamentava o estudante Diego Lira José, 14. "Provavelmente, minha crença não é tão elevada assim... Uma pena... Você sabe, não sabe? A crença faz a gente ver."

Pode, ainda, fazer fiéis gastarem dinheiro. Cinquenta e seis pontos de comércio informal se instalaram na rua desde que a notícia da aparição tomou vulto. Vendem de tudo: cigarro, pipoca, cocada, churrasquinho, bolo, cerveja, tapioca. Mas vendem principalmente a imagem da santa, reproduzida em camisetas, bonés e porta-retratos. Os preços variam de R$ 5 a R$ 10.

Conflito de interesses
A discordância entre católicos e evangélicos beirou a pancadaria no dia 21. Quem relata é o inspetor Ricardo Coutinho, da Guarda Municipal: "O povo rezava junto à janela quando duas pessoas começaram a distribuir uma revistinha. Na capa, havia uma pergunta: "Nossa Senhora está viva ou morta?". Os devotos da Virgem se irritaram, e o clima esquentou. Se não agíssemos rápido... Pedimos às duas pessoas que se retirassem para evitar o conflito de interesses."

Na "rua do milagre", moram quatro famílias evangélicas. São minoria absoluta. "Ficamos em maus lençóis", confidencia uma jovem de 24 anos, adepta da Assembléia de Deus, que prefere não se identificar. "Barulho, sujeira, bagunça na nossa porta e o risco de ouvir um "cala a boca" se a gente opina sobre o episódio. Não acredito em santa nenhuma, mas respeito os que crêem. E queria o mesmo: que me respeitassem."

A Assembléia de Deus é também a igreja frequentada por parentes de Ana Maria de Jesus Rosa, 32, e Antônio José da Rosa, 38, os proprietários do imóvel em que a imagem se fixou. O casal e a maior parte do numeroso "clã", originários da Bahia, orgulham-se de cultivar o catolicismo. Antônio, que trabalha com demolição não costuma perder missas dominicais e participa de grupos de oração.

Há, no entanto, dissidentes. Por exemplo, o primo Vilton de Oliveira, 35, diácono da Assembléia de Deus. "A Bíblia não deixa dúvida: aqueles contornos da janela são apenas um desenho."

Embora divergentes, os dois ramos prezam pelas relações harmoniosas. "Fazemos questão de nos dar bem", afirma Ana Maria.

Atitude que dom Paulo Mascarenhas Roxo, 74 -- bispo da diocese de Mogi das Cruzes -- aplaude. "Nada justifica ofensas e pressões entre evangélicos e católicos." Como engloba Ferraz de Vasconcelos, a diocese criou uma comissão de cientistas e teólogos para investigar o fenômeno.

"Precisamos aguardar os resultados da análise", pondera dom Paulo -- sem, contudo, evitar conjecturas. "Se os estudiosos demonstrarem que a aparição é autêntica, aí, sim: estará confirmada a legitimidade da reverência que a Igreja Católica sempre dedicou à mãe de Cristo."

Emprego
Alheios aos debates da comissão, os devotos que se aglomeram diante da janela não hesitam em atribuir prodígios à santa. "Ela arranja emprego para quem lhe solicita com fervor", garante o burburinho que já corre pela rua.

"Espie só o caso do meu irmão Wilson", testemunha a paranaense Jane Aparecida Giroto da Costa, 45. "O pobre não conseguia trabalho permanente desde 98. Domingo passado, acompanhando o programa do Gugu, soube da Virgem. Uma coisa lhe tocou fundo o coração _e o Wilson pediu. Quase implorou. Terça-feira, à 1h, um conhecido bateu na casa dele. Convidou Wilson para virar instalador de interfones. Salário de R$ 1.000. É ou não milagre?"

Fonte: http://www.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u55742.shl

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