Análises: Bush e a Religião Por Prof. Manoel de Almeida Neto
Depto de Relações Internacionais PUC-Minas Não
obstante o reconhecimento da importância das questões geopolíticas e
econômicas para a análise do atual ímpeto imperialista do governo
norte-americano - ressurgido após os atentados de 11 de setembro e
materializado na Guerra contra o Iraque -, o intuito deste artigo é propor
algumas interpretações acerca da política externa e interna dos EUA a partir
das ressonâncias religiosas contidas nos discursos e ações do presidente
George W. Bush. Mais especificamente, a nossa hipótese é a de que é impossível
compreender o sentido destes discursos e ações políticas, senão
relacionando-os a seu conteúdo religioso.
Como têm ressaltado vários
analistas, boa parte da política de Estado dos EUA está sendo construída a
partir da adesão do presidente a algumas premissas do fundamentalismo
protestante - tal como a recusa da separação entre o Estado e a Religião -,
ainda que estas firam a própria Constituição Americana. Neste sentido,
percebe-se que, ao contrário do fundamentalismo "terrorista" de alguns grupos
radicais muçulmanos, o fundamentalismo ao qual estaria vinculado o presidente
norte-americano pode ser descrito como "integralista", isto é,
caracterizado por
uma posição religiosa e política segundo a qual os próprios princípios
religiosos devam se tornar, ao mesmo tempo, o modelo de vida política e a
fonte das leis do Estado.
De fato, o viés religioso
de vários discursos e ações de Bush tem demonstrado a sua adesão a alguns
princípios do fundamentalismo protestante. Com efeito, o termo
"fundamentalismo" tem sua origem não no Oriente Médio, mas em uma conferência
bíblica de 1910 nas Cataratas do Niágara, quando os irmãos Milton e Lyman
Stewart publicaram os "Fundamentos", nos quais incitavam os protestantes a
interpretar literalmente a Bíblia. Este vínculo do presidente com o
fundamentalismo estaria demonstrado, por exemplo, no seu apoio ao ensino da
"ciência criacionista" anti-Darwin nas escolas norte-americanas, pois, segundo
ele, "na questão da evolução, ainda não existe um consenso sobre como Deus
criou a Terra". Outro
sintoma importante desta adesão ao fundamentalismo estaria presente na
referência do presidente ao conjunto das nações inimigas dos EUA (caso do Irã,
Iraque e Coréia do Norte, entre outros) como o "Eixo do Mal" - o qual seria,
de acordo com o próprio Bush, um termo "mais teológico" do que "Eixo do Ódio",
que era o que lhe haviam sugerido antes.
Alguns analistas, entretanto, já haviam percebido esta conotação religiosa
fundamentalista nos discursos do presidente logo após os ataques terroristas
de 11 de setembro, quando ele caracterizou uma eventual retaliação
norte-americana contra o terrorismo como um "chamamento" (calling), uma
"missão divina" (divine mission), "a luta do Bem contra o Mal", uma
nova "Cruzada", chegando inclusive a exortar o povo americano a lutar contra
"a face do Mal" (the face of Evil) e a batizar a posterior operação de
guerra no Afeganistão de "Justiça Infinita"(Infinite Justice). Por
outro lado, nota-se que, para Bush, o argumento político da "libertação" dos
povos através da implantação da democracia é, por vezes, suplantado pela noção
de "salvação", no sentido religioso do termo. Tanto é assim que na posse do
novo diretor do
The White House Office on Faith-Based and Community Initiatives,
Jim Towey, em 1 de Fevereiro deste ano, o presidente apresentou-o como um
homem "que entende que há coisas mais importantes do que os partidos políticos
e se há algo mais importante do que eles é tentar salvar a alma das nações".
A
própria iniciativa do presidente Bush de delegar, através deste novo órgão, as
tarefas dos serviços sociais norte-americanos a instituições de caridade
geridas por grupos religiosos (as chamadas Faith-Based Organizations -
"Organizações Baseadas na Fé") demonstra o profundo vínculo existente hoje
entre a religião e a política de estado norte-americana. Muitos intelectuais,
como Robert S. Alley, Professor de Religião e Humanidades na Universidade de
Richmond,viram nesta decisão uma tentativa de violação do Artigo VI da
Constituição Americana, o qual prevê que "nenhum critério religioso pode ser
evocado para a qualificação de prestadores de qualquer serviço público dos
Estados Unidos". Outra
decisão polêmica de Bush foi a escolha de John Ascroft como novo
Procurador-Geral da União - cargo responsável, entre outras coisas, pela
fiscalização da separação entre Igreja e Estado e, assim, pela garantia do
direito dos cidadãos de praticarem livremente a sua religião. Ao contrário do
que prevêem as suas atribuições oficiais, Ascroft tem usado o Departamento de
Justiça para dirigir diariamente um grupo de estudos bíblicos de viés
fundamentalista voltado para os seus subordinados, muitos dos quais não
professam o protestantismo. Além disso, o presidente norte-americano nomeou
recentemente para Juiz Federal Charles Pickering, membro do Partido
Republicano e ex-presidente da Congregação Batista do Mississippi, o qual
aprovou a realização de uma assembléia da Convenção Constitucional para
estudar a proposta de uma emenda à Constituição Americana alterando as leis
que protegem a separação entre Estado e Religião e punem a segregação
religiosa.
Estas ressonâncias
bíblicas, entretanto, estariam presentes também em fatos da rotina cotidiana
do presidente - como a leitura diária de passagens bíblicas nos cafés da manhã
da Casa Branca e as orações que antecedem todas as reuniões oficiais - e na
interpretação que ele propõe da sua "cura do alcoolismo" como um reflexo da
sua conversão religiosa. Membro da Igreja Metodista Unida, George W. Bush se
auto-denomina um "Renascido em Cristo" - ou seja, um daqueles que tiveram a
revelação em suas vidas e se sentiram "nascidos outra vez em Cristo". Não por
acaso, Bush chegou a afirmar em uma entrevista como candidato a presidente dos
EUA que seu modelo de "filósofo político" era Jesus Cristo.
Levando esta hipótese da
adesão do presidente ao fundamentalismo protestante às últimas conseqüências,
pode-se supor que, paralelamente à consolidação da hegemonia política,
econômica e militar dos EUA, previstas na “Doutrina Bush”, o governo
norte-americano pretenda realizar uma espécie de "reforma moral", de cunho
messiânico, tanto no seu próprio país quanto nos países que mais se distanciam
dos preceitos religiosos deste mesmo fundamentalismo. Mesmo que alguns destes
preceitos - como o da recusa da separação Estado-Religião - firam a própria
democracia interna dos EUA, aliás, a mesma democracia que é um dos principais,
senão o principal pretexto para a invasão do Iraque – que, ironicamente, é, do
ponto de vista formal, um Estado leigo.
Fonte:
http://guerra2.uai.com.br/analises/5811.html
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