Análises: Bush e a Religião
Por Prof. Manoel de Almeida Neto

Depto de Relações Internacionais PUC-Minas
10 abril 2003

Não obstante o reconhecimento da importância das questões geopolíticas e econômicas para a análise do atual ímpeto imperialista do governo norte-americano - ressurgido após os atentados de 11 de setembro e materializado na Guerra contra o Iraque -, o intuito deste artigo é propor algumas interpretações acerca da política externa e interna dos EUA a partir das ressonâncias religiosas contidas nos discursos e ações do presidente George W. Bush. Mais especificamente, a nossa hipótese é a de que é impossível compreender o sentido destes discursos e ações políticas, senão relacionando-os a seu conteúdo religioso.

Como têm ressaltado vários analistas, boa parte da política de Estado dos EUA está sendo construída a partir da adesão do presidente a algumas premissas do fundamentalismo protestante - tal como a recusa da separação entre o Estado e a Religião -, ainda que estas firam a própria Constituição Americana. Neste sentido, percebe-se que, ao contrário do fundamentalismo "terrorista" de alguns grupos radicais muçulmanos, o fundamentalismo ao qual estaria vinculado o presidente norte-americano pode ser descrito como "integralista", isto é, caracterizado por uma posição religiosa e política segundo a qual os próprios princípios religiosos devam se tornar, ao mesmo tempo, o modelo de vida política e a fonte das leis do Estado.

 De fato, o viés religioso de vários discursos e ações de Bush tem demonstrado a sua adesão a alguns princípios do fundamentalismo protestante. Com efeito, o termo "fundamentalismo" tem sua origem não no Oriente Médio, mas em uma conferência bíblica de 1910 nas Cataratas do Niágara, quando os irmãos Milton e Lyman Stewart publicaram os "Fundamentos", nos quais incitavam os protestantes a interpretar literalmente a Bíblia. Este vínculo do presidente com o fundamentalismo estaria demonstrado, por exemplo, no seu apoio ao ensino da "ciência criacionista" anti-Darwin nas escolas norte-americanas, pois, segundo ele, "na questão da evolução, ainda não existe um consenso sobre como Deus criou a Terra".

 Outro sintoma importante desta adesão ao fundamentalismo estaria presente na referência do presidente ao conjunto das nações inimigas dos EUA (caso do Irã, Iraque e Coréia do Norte, entre outros) como o "Eixo do Mal" - o qual seria, de acordo com o próprio Bush, um termo "mais teológico" do que "Eixo do Ódio", que era o que lhe haviam sugerido antes.

Alguns analistas, entretanto, já haviam percebido esta conotação religiosa fundamentalista nos discursos do presidente logo após os ataques terroristas de 11 de setembro, quando ele caracterizou uma eventual retaliação norte-americana contra o terrorismo como um "chamamento" (calling), uma "missão divina" (divine mission), "a luta do Bem contra o Mal", uma nova "Cruzada", chegando inclusive a exortar o povo americano a lutar contra "a face do Mal" (the face of Evil) e a batizar a posterior operação de guerra no Afeganistão de "Justiça Infinita"(Infinite Justice).

Por outro lado, nota-se que, para Bush, o argumento político da "libertação" dos povos através da implantação da democracia é, por vezes, suplantado pela noção de "salvação", no sentido religioso do termo. Tanto é assim que na posse do novo diretor do The White House Office on Faith-Based and Community Initiatives, Jim Towey, em 1 de Fevereiro deste ano, o presidente  apresentou-o como um homem "que entende que há coisas mais importantes do que os partidos políticos e se há algo mais importante do que eles é tentar salvar a alma das nações".

A própria iniciativa do presidente Bush de delegar, através deste novo órgão, as tarefas dos serviços sociais norte-americanos a instituições de caridade geridas por grupos religiosos (as chamadas Faith-Based Organizations - "Organizações Baseadas na Fé") demonstra o profundo vínculo existente hoje entre a religião e a política de estado norte-americana. Muitos intelectuais, como Robert S. Alley, Professor de Religião e Humanidades na Universidade de Richmond,viram nesta decisão uma tentativa de violação do Artigo VI da Constituição Americana, o qual prevê que "nenhum critério religioso pode ser evocado para a qualificação de prestadores de qualquer serviço público dos Estados Unidos".

Outra decisão polêmica de Bush foi a escolha de John Ascroft como novo Procurador-Geral da União - cargo responsável, entre outras coisas, pela fiscalização da separação entre Igreja e Estado e, assim, pela garantia do direito dos cidadãos de praticarem livremente a sua religião. Ao contrário do que prevêem as suas atribuições oficiais, Ascroft tem usado o Departamento de Justiça para dirigir diariamente um grupo de estudos bíblicos de viés fundamentalista voltado para os seus subordinados, muitos dos quais não professam o protestantismo. Além disso, o presidente norte-americano nomeou recentemente para Juiz Federal Charles Pickering, membro do Partido Republicano e ex-presidente da Congregação Batista do Mississippi, o qual aprovou a realização de uma assembléia da Convenção Constitucional para estudar a proposta de uma emenda à Constituição Americana alterando as leis que protegem a separação entre Estado e Religião e punem a segregação religiosa.

Estas ressonâncias bíblicas, entretanto, estariam presentes também em fatos da rotina cotidiana do presidente - como a leitura diária de passagens bíblicas nos cafés da manhã da Casa Branca e as orações que antecedem todas as reuniões oficiais - e na interpretação que ele propõe da sua "cura do alcoolismo" como um reflexo da sua conversão religiosa. Membro da Igreja Metodista Unida, George W. Bush se auto-denomina um "Renascido em Cristo" - ou seja, um daqueles que tiveram a revelação em suas vidas e se sentiram "nascidos outra vez em Cristo". Não por acaso, Bush chegou a afirmar em uma entrevista como candidato a presidente dos EUA que seu modelo de "filósofo político" era Jesus Cristo.

Levando esta hipótese da adesão do presidente ao fundamentalismo protestante às últimas conseqüências, pode-se supor que, paralelamente à consolidação da hegemonia política, econômica e militar dos EUA, previstas na “Doutrina Bush”, o governo norte-americano pretenda realizar uma espécie de "reforma moral", de cunho messiânico, tanto no seu próprio país quanto nos países que mais se distanciam dos preceitos religiosos deste mesmo fundamentalismo. Mesmo que alguns destes preceitos - como o da recusa da separação Estado-Religião - firam a própria democracia interna dos EUA, aliás, a mesma democracia que é um dos principais, senão o principal pretexto para a invasão do Iraque – que, ironicamente, é, do ponto de vista formal, um Estado leigo.

Fonte: http://guerra2.uai.com.br/analises/5811.html

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