
A religião tem sido e deverá ser um
fator básico nos conflitos bélicos
Marcos De Benedicto
Editor
O
dia 11 de setembro de 2001 entrou para a história e a psicologia humana por vários
motivos. Nessa data trágica, em que os terroristas seqüestraram aviões comerciais e
os lançaram contra as torres do World Trade Center, em Nova York, e o Pentágono, não
foram apenas os símbolos americanos que ruíram.
Em estilo hollywoodiano, os ataques inauguraram um
novo tipo de terrorismo, diferente não apenas em grau, mas em gênero, como insistiu
o escritor Carlos Heitor Cony; foi um terror sem assinatura, alvejando uma bandeira
específica em nome de uma causa difusa. Matando presumivelmente mais de 6 mil
pessoas, os atentados deram início à primeira guerra global do século 21, uma guerra
quase virtual, já que o inimigo não mostrou a face. Feriram o orgulho da única
superpotência do planeta e despertaram um senso de vulnerabilidade e solidariedade
geral. Trouxeram a conscientização de que a natureza humana não mudou, o mal ainda
existe e nem tudo está OK no mundo. Destruíram boa parte do estoque mundial de bom
senso. E, finalmente, revelaram a limitação da língua, pois adjetivos como "infame"
e "inominável" pareceram inadequados para qualificá-los.
Que sentimento, além do ódio, está por trás de
atos como esse? Qual é o papel da religião na história das guerras? Qual é a lógica
da intolerância? O que podemos esperar no futuro?

Motivos –
No momento em que escrevo, ainda não há provas definitivas da autoria do atentado,
mas tudo indica que ele tem a marca do milionário saudita Bin Laden e da organização
Al Qaeda. Isso fornece algumas pistas sobre a motivação dos ataques – pistas
exploradas pelos analistas de botequim e da academia. Vejamos alguns fatores:
1. Fator bumerangue (ou
causa e efeito). Os adeptos da rigidez
kármica logo apontaram o dedo para os próprios americanos, dizendo que eles estavam
apenas colhendo o que plantaram. Afinal, não têm eles matado tanta gente em
diferentes países como o Japão, o Vietnã e o Iraque? Não foram eles mesmos que,
inicialmente, apoiaram Bin Laden e o Taleban? Esse raciocínio é simplista e
insensível, mas muito tentador para a mentalidade antiamericana.
2. Fator econômico/político.
Os Estados Unidos lideram o processo de globalização e são a vitrine do sucesso
democrático capitalista, enquanto boa parte do mundo, incluindo países islâmicos,
sofre no atraso e na miséria. Um argumento nessa linha apareceu no editorial da
edição especial da revista Veja (19 de setembro) sobre o tema. Para o
editorialista, o que incomoda o terror fundamentalista é a modernidade, a existência
de uma sociedade que oferece possibilidade real de sucesso.
3. Fator Israel.
Para o fundamentalismo islâmico, Israel é visto como o "pequeno Satã", apoiado pelos
Estados Unidos, o "grande Satã". Esse é um fator que não deve ser descartado, pois a
presença de Israel no coração do Oriente Médio simboliza um obstáculo à hegemonia
islâmica na área.
4. Fator cultural. Alguns aplicaram aos
atentados a tese de Samuel P. Huntington de que o mundo está ameaçado por um choque
de civilizações. Huntington, professor na Universidade de Harvard, aposta que "os
principais conflitos globais ocorrerão entre nações e grupos de diferentes
civilizações". De um lado, no caso, estaria a civilização islâmica, baseada no
Alcorão, e do outro, a civilização cristã, baseada na Bíblia. Na tentativa de
recuperar a glória islâmica do passado e enraizados na dicotomia entre o mundo do
Islã (Dar al-Islam) e o mundo da heresia (Dar al-Harb), os muçulmanos
radicais protestam contra o poderio, o modo de vida e a espiritualidade ocidentais.
5. Fator fundamentalismo.
O esforço, até do presidente George W. Bush, para desvincular o islamismo das
manifestações extremistas é louvável. Todo estereótipo é perigoso e injusto. Tem-se
dito que o islamismo em si é pacífico, e que os terroristas que praticam o mal em
nome de Allah traem a sua fé e blasfemam o nome de Allah. Mas a verdade é que o Islã
não é homogêneo. Não deve ser "demonizado", mas também não pode ser "angelizado". No
Islã, há gente boa e má, acertos e erros – assim como no cristianismo. No momento, o
nome genérico do problema é fundamentalismo.

Iniciada pelo profeta Maomé (570-632) no 7o
século, a fé islâmica se espalhou da Península Arábica para o mundo e hoje tem cerca
de 1,3 bilhão de adeptos. Última das três grandes religiões monoteístas, o islamismo
(do árabe Islam, "submissão a Deus") não é beligerante por natureza. Mas,
dentro de uma massa tão grande de fiéis, surgem os extremistas. Além disso, a
mentalidade islâmica tende a associar religião com política, o que quase sempre gera
intolerância.
O Islã tem um problema para resolver. Como disse o
escritor israelense Amos Oz, "uma onda de fanatismo religioso e nacionalista está
crescendo por todo o mundo islâmico". É esse fanatismo que tem projetado a imagem do
islamismo no mundo. Afinal, uma cena concreta de terrorismo é mais visível do que um
conceito abstrato do Alcorão. Se há um grande número de muçulmanos moderados, sua
voz deve ser mais ouvida.
6. Fator religião.
José Saramago parece ter ido quase ao centro da questão no ensaio "O fator Deus",
publicado pela Folha de S. Paulo. Para o premiado escritor português, "em
nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior,
principalmente o mais horrendo e cruel". O genial filósofo francês Blaise Pascal
assinaria embaixo, pois séculos antes afirmou que as pessoas nunca odeiam com ódio
tão mortal como quando odeiam por motivos religiosos. Embora a análise de Saramago
seja condicionada por seu ateísmo e precise de reparos, a idéia básica é correta.
Desde que Caim matou Abel, na tentativa de impor o seu próprio estilo de culto, as
mortes em nome de Deus não cessaram mais.
Em geral, a lógica perversa do ódio religioso
funciona a partir de uma falsa premissa. Essa lógica diz que, se um grupo que adora
Yahweh, Allah ou Deus tem a verdade, outro grupo que adora um deus com outro nome,
ou seguindo um ritual diferente, não pode ter a verdade. Se não tem a verdade, é
inimigo. Se é inimigo, merece morrer. Isso funcionou com o antigo Israel, na época
da conquista de Canaã; funcionou com o cristianismo de Roma, na época da Inquisição;
e funciona com os grupos mais radicais do islamismo, no início do século 21.
A religião em si não é a causa da barbárie. Aliás,
regimes ateus podem ser muito mais cruéis. É aqui que o raciocínio de Saramago
falha. Os profetas hebreus sempre sonharam com um mundo de paz e prosperidade.
Cristo ensinou a ética mais amorosa já imaginada. Maomé não idealizou um Islã
intolerante. O problema está com o mau uso da religião. Enquanto funciona como uma
ponte transcendente para Deus e o próximo, a religião é legítima e uma bênção para
milhões. Ele se torna venenosa quando é usada como justificativa psicológica para
atos diabólicos cometidos com objetivos materialistas e egoístas.
7. Fator bem X mal.
George W. Bush disse que os atentados iniciavam uma guerra do bem contra o mal. O
conceito faz sentido, mas não exatamente na perspectiva do presidente americano.
Encontrada no zoroastrismo (religião da antiga Pérsia), apresentada na Bíblia e
desenvolvida com detalhes por Ellen White (autora adventista), a idéia de que existe
em andamento um conflito espiritual entre o bem e o mal, ou a luz e as trevas, é a
explicação definitiva para todo tipo de desgraça no mundo. O apóstolo Paulo disse
que a nossa luta não é contra pessoas, mas contra poderes invisíveis do mal (Efé.
6:12). Isso não quer dizer que não haja o envolvimento de gente real, com nome real,
usando aviões reais, atingindo alvos reais, matando gente real. Significa apenas
que, por trás da maldade, está a mente de um ser espiritual maligno chamado Satanás.
O fato é que, além de Deus ou Allah, ninguém sabe
exatamente o motivo dos ataques terroristas, nem mesmo Bin Laden – ou algum outro
terrorista. Talvez haja uma combinação de fatores. Mas, quaisquer que sejam eles,
não existe justificativa. O mal nunca tem razão de ser.
Desdobramentos –
Desde as primeiras imagens dos
atentados, pairava no ar a sensação de que o mundo nunca mais seria o mesmo. Mas, da
perspectiva religiosa, em que sentido o mundo mudou? O significado profético dos
ataques está mais na reação ao que ocorreu do que no fato em si, por mais terrível
que tenha sido. Em termos mais científicos, pode ter havido uma mudança de
paradigma.
Os
paradigmas levam muito tempo, às vezes séculos, para mudar. Mas grandes crises
aceleram o processo.
No livro Disaster and the Millennium (Yale University
Press, 1974), o cientista social Michael Barkun argumentou que os desastres têm o
potencial de criar as circunstâncias em que a mudança de paradigma pode ocorrer
muito rapidamente. Os desastres destroem a moldura referencial costumeira e remove o
ambiente familiar. Assim, as pessoas abandonam velhos valores e aderem a novas
crenças. Uma série de desastres tende a dar origem a movimentos milenaristas.
Os ataques terroristas aparentemente criaram
o impacto emocional necessário para mudar o paradigma americano. Queira-se ou não,
os EUA
têm sido os campeões da liberdade e dos direitos civis. Mas, em nome da segurança,
deram sinais de que podem restringir a liberdade e invadir a privacidade. Na
linguagem do Apocalipse, o cordeiro vai passar a falar como dragão (13:11).
A imagem de superpotência invulnerável é, ou
era, bem enraizada na psiquê americana. Os
EUA se
tornaram uma espécie de Torre de Babel. A essência da metáfora da Torre de Babel,
nascida de uma mistura de orgulho e medo, tem a ver com a percepção de segurança,
independência, auto-suficiência, salvação própria e capacidade de impor ordem no
caos. As torres do World Trade Center eram um monumento ao sucesso americano. Por
isso, duas semanas após os ataques, os arquitetos já discutiam o que deveriam
construir em seu lugar. Mas o espírito de Babel não é exclusividade americana. As
Torres Gêmeas Petronas, em Kuala Lumpur, capital da Malásia, podem ser igualmente
monumentos ao orgulho.

Há décadas, os intérpretes adventistas anunciam
uma futura mudança de paradigma na política e na mentalidade americana (ver o artigo
"O império americano", na edição de janeiro-fevereiro/2000). Baseados em Apocalipse
13, eles prevêem que o governo americano interferirá na tradicional separação entre
Igreja e Estado, violará as liberdades civis e acabará perseguindo minorias
inocentes. No novo paradigma, a religião teria um papel de destaque. É como se a
religião voltasse a dominar as instituições e mesmo os governos, como na Idade
Média. Naturalmente, tudo isso acontecerá com um toque de modernidade.
Dentro desse quadro, é provável que o papado se
sinta ainda mais justificado a ser a bússola moral do mundo, e os Estados Unidos a
atuar como a polícia do planeta. Juntos, o poder religioso-político de Roma, que tem
grande influência na União Européia, e o poder político-religioso de Washington, que
detém a liderança global, controlariam os destinos do planeta.
Até pessoas da esfera secular vislumbram uma
exacerbação dos poderes americanos. Naomi Klein, mentora de grupos antiglobalização,
disse que os atentados seriam usados para calar as vozes contrárias à política
americana. Otávio Frias Filho, diretor editorial da Folha de S. Paulo,
escreveu que "os Estados Unidos, que já detinham as demais hegemonias (econômica,
militar e cultural), obtiveram a última que lhes faltava, a hegemonia moral,
conforme a sua causa se confunde com a do Ocidente e, num círculo ainda mais amplo,
com a da própria civilização".
Qual é o papel do islamismo nesse xadrez
profético? É difícil dizer. O Islã tanto pode se radicalizar contra o Ocidente e se
aproximar dos extremistas quanto pode isolar os extremistas e se aproximar do
Ocidente. Se a profecia de João em Apocalipse 13:3 (a terra toda enfeitiçada pelo
poder ditatorial da "besta") se aplicar ao caso, o que não está claro, é de se
prever que o islamismo se aproxime do cristianismo, ainda que a longo prazo.
Bom Senso –
A dor, a raiva e o desejo de
retaliação são compreensíveis diante da gravidade dos ataques terroristas. Mas os
líderes americanos precisam ter bom senso e não pôr em risco a herança de liberdade
e democracia que fez a grandeza do seu país. Em momentos de forte emoção, o mais
sóbrio dos povos pode assumir um comportamento de massa. Após os ataques, o índice
de aprovação da retórica de George W. Bush chegou a estratosféricos 90%, o mais alto
que um presidente americano já conseguiu. Isso sem falar no apoio externo, até de
países antiamericanos.
Comentando o aval do
Vaticano ao uso da força pelos
EUA,
Joaquín Navarro-Valls, porta-voz do papa João Paulo II, disse: "Na ética cristã, a
paz é um valor bastante elevado, mas o bem comum, tanto moral quanto físico, às
vezes está acima disso." Esse tipo de raciocínio lembra o argumento de Caifás
durante uma reunião do Sinédrio judaico para planejar a morte de Jesus (João 11:49 e
50). É um raciocínio perigoso, pois decide-se sacrificar a minoria em nome da
maioria. O terror muda de lado e torna-se legalizado. O filósofo americano Richard
Rorty comenta que, em tempos de guerra, os direitos dos cidadãos sempre saíram
prejudicados em face do poder estatal.
Além de solidarizar com o povo americano em sua
dor e orar pelos familiares das vítimas, é bom começar a orar também pelo destino
das minorias e do mundo. Salaam, shalom, peace!
Terrorismo religioso
Terrorismo é o uso da
violência ou da exploração do medo através da ameaça de violência, na busca de
mudança política. O terrorismo tem uma longa história, mas ganhou dimensão
internacional nos anos 60.
O terrorismo religioso apareceu com a Revolução
Iraniana, no fim da década de 1980, e hoje é uma modalidade atuante e temida. Por
volta de 1995, 26 dos 56 grupos terroristas conhecidos no mundo tinham motivação
religiosa. Embora os terroristas religiosos tenham cometido somente 25% dos
incidentes registrados desde 1995, eles são responsáveis por 58% das mortes.
Juízo divino?
Bem ao estilo da
Direita Cristã americana, os televangelistas Jerry Falwell e Pat Roberson
especularam, no ar, que os ataques terroristas aos
EUA
eram um juízo divino causado pela imoralidade e a secularização da América. Depois,
diante das críticas, voltaram atrás.
A cúpula da Igreja Adventista, em Washington,
procurou enfatizar as orações e a solidariedade efetiva, evitando polêmicas. Mas, no
Brasil, houve quem associasse os ataques com uma visão que Ellen White (1827-1915)
teve em 1909.
A autora relata que certa vez estava em Nova York,
e foi "convidada, à noite, para contemplar os edifícios que se erguiam, andar sobre
andar, para o céu". Esses edifícios, erigidos às custas da exploração dos pobres e
construídos para expressar o orgulho de seus proprietários, despertando inveja, eram
considerados "à prova de fogo". Ela viu, então, uma cena de fogo e a impotência dos
bombeiros diante do incêndio, que consumiu os edifícios como se fossem feitos de
resina.
Não dá para dizer categoricamente se ela se
referia aos atentados de 11 de setembro. Os detalhes não correspondem 100% aos
acontecimentos, mas talvez o quadro de denúncia profética da autora se aplique ao
caso.
Vale lembrar que o olhar profético é diferente do
olhar meramente sociológico/histórico. Os profetas vêem mais longe e às vezes
atribuem a Deus ações humanas, que Ele apenas permite. O fato de um suposto juízo
ser executado por um instrumento "maligno" não anularia a teoria, pois Deus usou
poderes pagãos para castigar/disciplinar Israel e outras nações. Ciro não conhecia
Deus, mas é chamado de "messias" (ungido) de Deus (Isa. 45:1 e 4). Nos juízos contra
uma cidade ou nação, muitas pessoas inocentes podem perder a vida.
Acima de tudo, devemos lembrar que a essência do
Deus retratado na Bíblia é o amor, jamais o terror. Deus sofre quando sofremos. Seu
Filho morreu para que vivêssemos.
Ellen White é considerada profetisa pelos
adventistas. Seus livros são publicados no Brasil pela Casa Publicadora Brasileira.
Representante muçulmano nega conflito religioso
Samir El Hayek, membro da
Sociedade Beneficente Muçulmana de São Paulo e tradutor do Alcorão para o português,
não concorda com a aura religiosa com a qual o conflito está sendo revestido pela
mídia. Ele condena tanto os ataques terroristas quanto uma retaliação
norte-americana, e afirma que o problema é econômico, não religioso. Procurado pela
reportagem da Sinais, ele afirmou:
"Não se pode apagar o vestígio de um
crime insensato com outro crime insensato, matando inocentes. Se os ataques
atingirem inocentes, acredito que o mundo todo irá condenar a atitude dos Estados
Unidos, não só o mundo muçulmano. Ninguém da população muçulmana apóia uma ofensiva
norte-americana. Quem está dando apoio são governantes que tem interesses econômicos
em comum com os Estados Unidos. A guerra não é entre cristãos e muçulmanos. A mídia
é que está levando para esse lado. O que está em disputa são interesses econômicos.
Não tem nada a ver com religião. O próprio Alcorão identifica os cristãos como
amigos. Não podemos voltar à barbárie da época das Cruzadas. E as causas das
Cruzadas nunca foram religiosas, mas econômicas. O que é preciso fazer é acabar com
a concentração da riqueza e das desigualdades do mundo."
Guilherme
Silva |