EUA Constróem Imagem da Besta Romana
Artigo: De volta à Idade Média
NICOLAU SEVCENKO
Especial para a Folha de S.Paulo
Em meio ao oceano de cartazes na marcha de um milhão por Londres (número
oficial; extra-oficial: dois milhões), uma das placas dizia: "Bush quer
bombardear a lei"; outra anunciava: "Os EUA estão criando as Nações Desunidas";
outra clamava: "Salvem a Terra, mandem Blair e Bush a uma missão em Netuno".
Afora os slogans pacifistas que a ocasião exigia, a passeata pululava de
mensagens alertando que, para além dos horrores da guerra, pairam as ameaças de
uma ruptura irreversível das instituições multilaterais. Depois da
desregulamentação dos mercados e das garantias da legislação social, estaríamos
assistindo agora à desestruturação da ordem internacional. Soem os alarmes!
De fato há muito mais em jogo do que se encontra circunscrito pelas fronteiras
do Iraque. Livro recente do historiador Michael Howard, ex-professor de Oxford e
Yale e um dos fundadores do International Institute for Strategic Studies, ajuda
a refletir sobre a questão. O título é esclarecedor, "The Invention of Peace and
the Reinvention of War" (Profile Books, 2002). Parte de conclusão surpreendente
de Sir Henry Maine, em seu clássico sobre direito internacional (1888), de que
"a guerra parece ser tão antiga quanto a humanidade, mas a paz é uma invenção
moderna".
Nos tempos antigos e medievais, para governantes e elites de orientação
belicosa, os breves períodos de paz é que pareciam anomalia. A guerra lhes era
tão natural quanto as tempestades, predatórias, mas também inevitáveis. Só com
os filósofos iluministas surgiria a idéia de que os confrontos militares são
catástrofes provocadas pela cobiça dos poderosos. A gestão racional das
sociedades deveria portanto restringir as causas, o impacto e o efeito das
guerras. A idéia seria criar tribunais internacionais autônomos para a resolução
dos conflitos, dotados de mecanismos de consenso e estabilização.
Foi Kant quem concebeu a idéia de uma Liga das Nações. A longo prazo, o objetivo
era erradicar a guerra, como uma obsolescência típica de tempos primitivos.
Se nesse sentido a paz foi deveras uma invenção moderna, sua implementação porém
levou mais tempo. Os acordos de Versalhes, após a Revolução e as guerras
napoleônicas, criaram um sistema informal de consultas entre governos que
pacificou a Europa por um século até a Grande Guerra. O fim do conflito em 1918
assinalou o declínio europeu e a ascensão dos EUA como potência mundial. O país
foi o primeiro a ter constituição e aparato institucional inspirados nos
preceitos iluministas. Não surpreende que tenha encabeçado a criação da liga
após a Primeira Guerra e a Organização das Nações Unidas após a segunda.
Malgrado seus defeitos, não há como negar que a ONU funcionou como câmara de
descompressão de tensões internacionais na turbulenta segunda metade do século
20.
Por mais insatisfeitos que estivéssemos com os limites da ONU, agora,
vislumbrando a possibilidade do seu declínio, sentimos como é apavorante encarar
um mundo sem instância com autoridade para gerar mediação, consenso e concórdia.
O que aponta parece ser a reinvenção da guerra como componente intrínseco de uma
nova ordem, em que uma cultura bélica recoberta de simbolismos religiosos e
preconceitos inconfessáveis se sobrepõe à herança do iluminismo. De volta à
Idade Média, prenunciada pela volta da caça às bruxas.
Esse retrocesso cultural ou essa manobra reacionária, como quer que se a
conceba, tem fonte clara. Dentre os vários "thinking tanks" que vicejaram nos
meios conservadores, empenhados no impeachment de Bill Clinton, ganhou destaque
o núcleo duro chamado Project for the New American Century.
Sediado em Washington, reunia conselheiros políticos que se destacaram no
círculo áulico da administração Bush sênior. Gente como Dick Cheney, Donald
Rumsfeld, Jeb Bush, Richard Perle, Paul Wolfowitz, que viriam a se tornar, como
se sabe, homens-chaves do governo Bush junior. Um dos membros era Zalmad
Khalilzad, articulador das lideranças iraquianas no exílio e um dos principais
candidatos ao suposto governo de transição no Iraque libertado.
O objetivo básico dessa corrente é a construção do que chamam de "dominação de
espectro pleno". Ou seja, a idéia de que no século 21 os EUA se tornem
militarmente invencíveis. Daí a iniciativa de levar adiante o projeto "Guerra
nas Estrelas" e o empenho em desenvolver uma nova geração de armas nucleares,
com tecnologia de exclusivo domínio americano. Levado às últimas consequências,
esse projeto deixaria os EUA na posição de ditar a política mundial pela
convicção da superioridade inquestionável de seu destino manifesto e pelo seu
ilimitado poder de coerção.
Para parte significativa dos americanos e para a população mundial, esse projeto
revela os riscos impensáveis do unilateralismo e a necessidade de se reajustar
os desequilíbrios de poder atualmente vigentes na ONU e no Conselho de
Segurança.
O que essa crise revela é tão medonho, que faz soar o alarme. Em tempos sombrios
como estes, as maiorias que amam a vida, a liberdade e a paz entendem e atendem
ao apelo das luzes.
Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura
na USP
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u53326.shtml
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