Notícias e Artigos Seculares Confirmam Hipóteses Adventistas Sobre Eventos Finais


Bin Laden reaparece e diz que guerra é entre religiões

Washington - O terrorista Osama bin Laden resolveu aparecer novamente na rede de televisão Al Jazeera. Desta vez, Bin Laden pediu a outros muçulmanos para que "defendam sua religião e seus irmãos do Afeganistão".

No pronunciamento, Bin Laden disse que o que esta em curso no Afeganistão é "uma guerra de religiões" e que os muçulmanos que apoiarem o presidente americano George W. Bush renegaram a própria religião.

Bin Laden estava, provavelmente, se referindo a Turquia, primeiro país islâmico a anunciar o envio de tropas para lutar juntamente com a coalizão anti-terror liderada pelos EUA.

A Casa Branca considerou as declarações do Bin Laden à Al Jazzera como "um ato de desespero".

http://www.estadao.com.br/agestado/noticias/2001/nov/03/48.htm


Bin Laden critica a ONU em novo videoteipe

Cairo - Osama bin Laden advertiu líderes árabes, num videoteipe divulgado hoje, que usar as Nações Unidas para negociações de paz equivale a renunciar ao Islã. "Eles são infiéis" se voltarem-se ao organismo internacional, afirmou. A tevê Al-Jazira, baseada em Catar, disse que o vídeo foi entregue a seu escritório em Cabul, capital do Afeganistão. Não existe indicação de quando o vídeo foi feito, segundo Ali al-Kaabi, coordenador de coleta de notícias da Al-Jazira em Catar. Ele afirmou que o escritório em Cabul da tevê por satélite recebeu o vídeo recentemente, mas não precisou exatamente quando.

O comunicado de Bin Laden parece visar líderes árabes que pediram por esforços internacionais para se pôr um fim ao conflito israelense-palestino.

Bin Laden, o principal suspeito dos atentados terroristas de 11 de setembro nos Estados Unidos, fez apenas uma breve referência ao Afeganistão nos pequenos momentos do vídeo mostrados até agora pela Al-Jazira. A tevê anunciou que iria mostrar o vídeo na íntegra ainda hoje.

"Todo o Ocidente está apoiando essa campanha injusta, feroz" contra o Afeganistão, disse Bin Laden. "Nenhuma evidência prova que o que ocorreu na América está relacionado ao povo do Afeganistão, e o povo afegão não tem nada a ver com isso, mas a campanha continua, exterminando civis, crianças, mulheres e inocentes". Bin Laden usava um turbante branco e um cachecol com uma jaqueta de camuflagem preta e verde. Um fuzil automático estava a seu lado esquerdo e ele gesticulava com a mão direita tendo atrás um fundo todo marrom. Ele disse que os líderes árabes que negociam a paz através das Nações Unidas "renunciaram à mensagem do profeta Maomé, que a paz esteja com ele".

Numa referência à ONU, Bin Laden perguntou: "Quem foi responsável pela partição da Palestina em 1947?" Em 29 de novembro de 1947, a Assembléia Geral da ONU aprovou a partição da Palestina, o que permitiu a criação do Estado de Israel.

O vídeo de hoje é a quinta mensagem de Bin Laden e sua organização Al-Qaeda que a Al-Jazira recebeu desde 7 de outubro.

http://www.estadao.com.br/agestado/noticias/2001/nov/03/28.htm


Bin Laden chama Paquistão a lutar contra 'cruzados'

Carta do terrorista saudita, exibida em tevê do Catar, diz que paquistaneses devem lutar ao lado do Taliban contra 'infiéis' de Bush

Osama bin Laden voltou ontem a convocar os muçulmanos do Paquistão a defender o Islã contra o que classificou como uma "cruzada cristã" liderada pelos Estados Unidos. O chamado do terrorista foi feito por uma carta divulgada pela tevê Al Jazeera, do Catar. Nela, o principal suspeito pelos atentados de 11 de setembro contra Nova York e Wahington, também criticou o presidente paquistanês Pervez Musharraf por seu apoio aos americanos na guerra contra a milícia extremista do Taliban, que governa o Afeganistão.

No Paquistão, cujo apoio de Musharraf aos Estados Unidos aprofunda a cada dia a crise política, militares ligados ao serviço secreto (Isi) estão sendo acusados de fornecer clandestinamente armas ao Taliban.

A carta divulgada pela tevê Al Jazeera - convertida na principal porta-voz do líder terrorista -, foi enviada à emissora pelo escritório do grupo radical islâmico Ansar Al Yazira. Escrita em árabe e assinada pelo próprio Bin Laden, a mensagem teve apenas alguns de seus trechos lidos pela emissora do Catar.

Guerra aos "cruzados"

"Os muçulmanos no Afeganistão estão sendo submetidos a assassinatos. A guerra dos cruzados (Estados Unidos) contra o Islã está se intensificando. O mundo está dividido. Parte sob domínio dos infiéis, parte sob a bandeira do Islã. Permanecer firmes contra a injustiça nos fortalecerá", avaliou Bin Laden em sua conclamação.

Mais adiante, o líder da organização terrorista Al Qaida, tratou de atacar Musharraf, classificado como "traidor dos muçulmanos" e de se coloccar "de joelhos" "ante o estandarte cristão" do presidente americano George Bush.

Trata-se da segunda carta de Bin Laden recebida pela tevê do Catar.

Imediatamente após o início os bombardeios americanos contra o Afeganistão, em 7 de outubro, Al Jazeera exibiu declarações de Bin Laden. Nelas, ele negava qualquer ligação com os atentados, mas elogiava os terroristas que atacaram o World Trade Center e parte do Pentágono.

A mensagem de Bin Laden pode ajudar a agravar ainda mais o cenário político no Paquistão, país no qual muitos dos 140 milhões de habitantes são simpáticos a Bin Laden e ao Taliban, cujo governo foi por anos apoiado por Islamabad.

Secretamente, militares de alta patente ligados ao serviço secreto estariam abastecerem o Taliban com armas e mantimentos. Pelo menos é o que garantem o jornal americano Washington Times e o líder da Aliança do Norte (opositora ao Taliban), Abdula Abdula.

Tal ajuda estaria sendo prestada mediante caminhões que partiriam de Quetta, no Paquistão, até Kandahar, sede do Taliban, no Afeganistão.

As manifestações populares, cada dia mais abertas e freqüentes contra Musharraf, ontem ganharam Dalbadin, perto da fronteira com o Afeganistão.

Militantes do Jamiat Ulema-i-Islam, um ou vários partidos religiosos do país, ameaçaram incendiar uma base áerea usada por forças militares americanas e matar qualquer soldado americano encontrado no local.

Em Islamabad, Mukhdoom Javed Hashmi, presidente da Liga Muçulmana do Paquistão, tido como principal partido político do país, foi preso ontem. A prisão aconteceu logo após Hashmi anunciar sua adesão aos demais grupos opositores que convocaram uma greve geral para o dia 9. O governo, por seu lado, alegou que Hashmi foi detido por "envolvimento com corrupção."

http://www.jt.com.br/editorias/2001/11/02/int009.html


As fontes do fanatismo

O economista J. Bradford DeLong, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, afastou-se de sua especialidade para publicar um ensaio sobre o terrorismo muçulmano, a partir de um ângulo original: as guerras religiosas entre católicos e protestantes, que ensangüentaram a Europa por mais de 100 anos.

DeLong lembra, por exemplo, que o Vaticano exultou com a Noite de São Bartolomeu - o massacre de dezenas de milhares de huguenotes em Paris, a 24 de agosto de 1572 - tanto quanto Osama bin Laden e seus lugares-tenentes com os ataques às torres do World Trade Center e ao Pentágono, que mataram cerca de 5 mil pessoas.

Ele receia que estejamos fadados, ao menos durante uma geração, a viver os sofrimentos e as turbulências da era da Reforma Islâmica, como os europeus do século 16 viveram a era da Reforma e da Contra-Reforma.

Mas, obviamente, nem as matanças no mundo cristão, nem a atual jihad contra os "não crentes" - como Bin Laden chama os judeus, os "cruzados" e os muçulmanos que ele considera como traidores do Islã -, nem todas as outras guerras de extermínio que se encaixam nesse molde transcorreram ou transcorrem numa redoma de irreconciliáveis paixões religiosas, à margem do "século", para usar o jargão da Igreja Católica.

Velho como a fé e brutal como as expressões mais arcaicas da natureza humana, o fanatismo que mata e destrói em nome de uma divindade está fincado no espaço profano da geografia e da história, da política, da economia e das relações sociais.

As condições reais de existência não determinam mecanicamente crenças, valores, costumes e mentalidades, como imaginava o "marxismo vulgar". Mas estas, ainda que possam ter dinâmica própria, jamais se desgarram por completo da base material que as faz vicejar ou fenecer.

Na análise do fundamentalismo islâmico, portanto, é preciso tomar muito cuidado para não dar valor absoluto aos fatores religiosos e à cultura a eles associada - embora, significativamente, a proporção de muçulmanos praticantes seja muito maior do que entre os católicos, por exemplo.

Ao mesmo tempo seria um erro pôr em segundo plano esse aspecto, porque dele se valem os radicais para dar uma dimensão quase transcendental ao entranhado ressentimento do mundo muçulmano em relação ao Ocidente.

Só que a precaução de levar esse dado em conta não pode inibir desde logo iniciativas transformadoras na esfera secular dos países islâmicos, como se a força da fé, ali tão poderosa, representasse um obstáculo insuperável a qualquer projeto de mudança.

Se não se quiser cair em um cenário apocalíptico, melhor supor que é possível trabalhar sobre as causas materiais do ódio fundamentalista e que, graças a isso, mais adiante será também possível reduzir drasticamente as suas proporções e a sua influência na vasta região que vai do Norte da África ao Sul da Ásia.

É o que anima DeLong a prever que, "em última análise, as mesmas forças que puseram fim às atrocidades da era da Reforma na Europa também darão fim às atrocidades correntes".

As nações européias mais tolerantes funcionavam como ímãs, atraíndo artesãos e mercadores dos países onde a religião oficial era tirânica para todos e implacável com quem a ela não pertencesse, observa o professor.

Dizia-se então que o comércio "adocicava" as pessoas, isto é, que abria as suas mentes, fazendo-as perceber que a sua atividade, para ser lucrativa, exigia tratar o parceiro como gente e não como inimigo a ser eliminado numa guerra santa.

A dificuldade é que as diferenças de riqueza entre católicos e protestantes eram muito menores do que são hoje as disparidades entre as populações do Ocidente e as dos países árabes e muçulmanos.

As barreiras à sua superação, por outro lado, são muito maiores - a julgar pelo crescente abismo em matéria de riqueza e qualidade de vida que separa o mundo rico do mundo subdesenvolvido, onde milhões de pessoas padecem de miséria, atraso e doença.

Os Estados Unidos, nota um comentarista, gastam apenas 0,1% de seu PIB em ajuda externa, menos do que de outros países não tão prósperos. E boa parte dessa ajuda, como acontece com o Egito, é para fins militares.

Não há escapatória, escreve DeLong: "Quando os governos não conseguem prover o básico - lei e ordem, educação, saúde, combate à fome, promessas de emprego e de um padrão de vida melhor do que o da geração anterior -, os falsos profetas que anunciam o advento iminente do reino de Deus não têm nenhuma dificuldade para encontrar seguidores."

Luiz Weis é jornalista e comentarista político e-mail: luizweis@uol.com.br www.werbo.com.br

Luiz Weis

http://www.jt.com.br/editorias/2001/10/30/artigos002.html


"Bin Laden devolveu ao Ocidente seu senso de identidade comum"

Judaísmo, cristianismo e islamismo tiveram condutas diferentes em épocas diferentes. O cristianismo não era tolerante na época das Cruzadas. Já o islamismo era tolerante durante a existência da região de Al-Andalus. Mas no momento a civilização islâmica é a menos tolerante, diz Samuel Huntington, autor de 'O Choque de Civilizações'

NATHAN GARDELS
Global Viewpoint

Osama bin Laden declarou guerra à civilização ocidental e, com isso, restituiu ao Ocidente seu senso de identidade comum. É o que afirma nesta entrevista o escritor e professor de Harvard Samuel Huntington, assinalando que, se os muçulmanos se unissem em torno do terrorista saudita, haveria um choque de civilizações.

Global Viewpoint - Em que medida os acontecimentos a partir de 11 de setembro confirmam sua teoria sobre um "choque de civilizações"? Estamos em guerra com uma periferia terrorista isolada ou com um núcleo de simpatizantes que é grande, talvez vasto?

Samuel Huntington - Osama bin Laden declarou guerra à civilização ocidental e em especial aos Estados Unidos. Se a comunidade muçulmana à qual Bin Laden está apelando cerrar fileiras com ele, isto vai se tornar um choque de civilizações. Até agora parece que eles estão profundamente divididos.

Bin Laden é um proscrito expulso de seu próprio país, a Arábia Saudita, e depois, do Sudão. O Taleban que o apóia foi reconhecido só por 3 dos 53 países muçulmanos do mundo. Todos os governos muçulmanos, exceto o Iraque - mas incluindo o Sudão e o Irã - condenaram seus ataques terroristas. Em sua maioria, os governos muçulmanos pelo menos aceitam a estratégia americana de reagir militarmente no Afeganistão.

A Organização da Conferência Islâmica condenou o terrorismo de Bin Laden - mas não condenou a reação dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, a popularidade de Bin Laden parece estar crescendo "nas ruas", especialmente no mundo árabe, onde ele consegue explorar o ressentimento contra regimes governantes, Israel e a riqueza, o poderio e a cultura dos EUA. Os EUA imaginam corretamente que sua resposta não é uma guerra ao Islã, mas uma guerra entre uma vasta rede terrorista transnacional e o mundo civilizado.

Mas é inegável que os atos terroristas de Bin Laden revigoraram a identidade da civilização muçulmana. Da mesma forma como ele tenta arregimentar muçulmanos declarando guerra ao Ocidente, restitui ao Ocidente sua noção de identidade comum ao se defender.

Global Viewpoint - Seu livro, O Choque de Civilizações, não se referia a terrorismo, mas a visões de mundo conflitantes, fadadas a entrar em choque depois da guerra fria. A visão de mundo de Bin Laden é a de que este agora está dividido entre "fiéis e infiéis".

Muitos, como o escritor japonês Haruki Murukami, resolveram interpretar isso como uma divisão entre "a mente de circuito fechado" de qualquer tipo de fanático e a "mente de circuito aberto" cultivada por uma sociedade pluralista. Mas será que o conflito não é mais profundo - entre o pluralismo secularizado do Ocidente nominalmente judaico-cristão e o monoteísmo político que é exclusividade do Islã?

O poeta Octavio Paz, ganhador do Nobel, argumentou para mim: "O Islã hoje é a forma mais obstinada de monoteísmo do mundo, que de resto aceita verdades plurais. Devemos ao monoteísmo muitas coisas maravilhosas, de catedrais a mesquitas. Mas também lhe devemos ódio e opressão. Pode-se encontrar as origens dos piores pecados da civilização ocidental - as Cruzadas, o colonialismo, o totalitarismo - na mentalidade monoteísta. Para um pagão, era absurdo que um povo e um credo pudessem monopolizar a verdade. Fora do Islã, o mundo ainda parece dessa forma. O Islã se destaca sozinho. É a força mais reacionária do mundo atual."

Da mesma forma, o filósofo francês Jean Baudrillard disse-me certa vez: "O mundo inteiro está implicado na fragmentação e na falta de raízes do pluralismo pós-moderno, incluindo a China e a Rússia. Existe uma exceção: o Islã. Ele se destaca sozinho como o repto à indiferença (relativismo de valores) que varre o mundo."

Huntington - É verdade que o vigor da mentalidade intolerante que pode vir do monoteísmo diminuiu no Ocidente depois de ser esgotado em nossas guerras religiosas internas. O pluralismo assumiu primazia com a divisão entre religião e política, ainda ignorada no mundo islâmico. Esta fusão das vidas política e religiosa cria conflito em sociedades onde existe uma maioria muçulmana e uma minoria não-muçulmana ou uma minoria muçulmana em busca de reconhecimento num país como a Índia, onde a maioria da população é hindu.

Já que judaísmo, cristianismo e islamismo são religiões monoteístas, a questão prática é saber se são monoteístas e toleram as outras religiões, ou monoteístas e intolerantes. Todas essas três religiões tiveram condutas diferentes em épocas diferentes. Tolerância não foi propriamente uma característica do cristianismo durante as Cruzadas. Foi uma característica do islamismo durante a existência da região de Al-Andalus (na Espanha). No momento, restam poucas dúvidas de que a civilização islâmica é a menos tolerante nos países onde predominam religiões monoteístas.

Global Viewpoint - Você propôs a "regra da abstenção" - que o Ocidente devia deixar de intervir nos conflitos internos de outras civilizações - como meio de evitar um choque. Para Bin Laden, o maior problema é a presença de tropas americanas no sagrado solo muçulmano da Arábia Saudita para defender um país islâmico de outro. O Ocidente não devia estar lá?

Huntington - Fiz uma ressalva à minha regra sobre abstenção dizendo que ela podia ser violada se um vital interesse nacional estivesse em jogo. Na Guerra do Golfo, nosso vital interesse nacional estava em jogo porque não podíamos permitir que o Iraque assumisse o controle único do grosso das reservas petrolíferas mundiais. E nossos princípios também estavam em jogo.

Não podíamos deixar que um país invadisse e anexasse outro a seu bel-prazer, violando todas as leis internacionais. Portanto, foi uma ação legítima. A presença americana na Arábia Saudita agora é mínima, limitando-se a uma base aérea. E isto com a aprovação do governo saudita, extremamente religioso.

Global Viewpoint - Um dos muitos motivos de ressentimento contra os EUA entre os muçulmanos devotos é a torrente de cultura de massa, materialista e sensual que Hollywood despeja sobre eles. A MTV chegou aonde a Agência Central de Inteligência (CIA) nunca conseguiu penetrar. Madonna é a marca registrada da globalização. Não devia o Ocidente ser mais sensível à mensagem que sua cultura irradia?

Huntington - Eles não precisam ver se não quiserem. Muitos países fizeram sérios esforços para impedir a infiltração da cultura americana de massa, quer venha através da Internet ou da TV via satélite. Os pais podem desligar o aparelho. No Afeganistão, o Taleban proibiu televisores.

Global Viewpoint - A jornalista italiana Oriana Fallaci causou sensação com seu emocionado apelo ao Ocidente para que se defenda energicamente contra políticos integristas islâmicos, dizendo: "Ou nós ou eles." Além da campanha atual contra o terrorismo, o que a civilização ocidental devia fazer para se defender no sentido estratégico mais amplo?

Huntington - Expus várias dimensões de tal estratégia em O Choque de Civilizações, e elas continuam válidas hoje. As potências ocidentais, os EUA e a Europa, precisam alcançar mais integração política, econômica e militar e coordenar seus programas para que Estados de outras civilizações não consigam explorar nossas diferenças. Antes do 11 de setembro, a Europa e os EUA estavam se distanciando numa série de questões - de alimentos produzidos por engenharia genética a defesa antimísseis e Forças Armadas européias. Os acontecimentos do 11 de setembro alteraram isso totalmente. Depois dos ataques terroristas, a manchete do jornal Le Monde dizia: "Somos todos americanos." Repetindo John F. Kennedy, a manchete de um jornal alemão dizia: "Ich bin ein New Yorker." Como eu disse no começo, neste sentido, Bin Laden restituiu ao Ocidente sua identidade comum.

Além disso, precisamos incorporar à União Européia (UE) e à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) os países ocidentais da Europa Central, ou seja, os países do Visegard (balcânicos), as repúblicas bálticas, a Eslovênia e a Croácia. Os EUA precisam incentivar a "ocidentalização" da América Latina e impedir o lento distanciamento do Japão em relação ao Ocidente rumo a um meio-termo com a China.

Para evitar conflito, o Ocidente precisa aceitar a Rússia como Estado que é o núcleo da ortodoxia e grande potência regional com interesses legítimos pela segurança de suas fronteiras meridionais.

O Ocidente precisa manter sua superioridade tecnológica e militar sobre outras civilizações e conter o desenvolvimento do poder militar convencional e não convencional dos países islâmicos e da China. Acima de tudo, este Ocidente consolidado precisa reconhecer que intervenção nos assuntos de outras civilizações é isoladamente a causa mais perigosa de instabilidade e potencial conflito global num mundo de civilizações múltiplas.

Global Viewpoint - A ansiedade e o medo causados pelo terror vão acabar com a globalização ao romper o livre fluxo de idéias, pessoas e capital? Ou devemos assistir a uma globalização de "duas velocidades" ou "dois segmentos" à medida que os países-chave do Ocidente aceleram sua integração enquanto combatem o terrorismo, deixando o restante do mundo para trás?

Huntington - A globalização já avança em várias velocidades em diferentes partes do mundo. Com efeito, a globalização incentiva e permite a gente como Bin Laden tramar seus ataques no centro de Manhattan enquanto está numa gruta do Afeganistão pobre.

Acredito que, em futuro previsível, a Europa e os EUA vão estreitar laços mais rapidamente, impelidos pela redescoberta de seus interesses comuns como civilização de sociedades livres. Talvez a América Latina e o Japão venham a estreitar relações.

No conjunto e em prazo mais longo, as forças econômicas do mercado vão promover maior globalização. Isto, por sua vez, continuará provocando uma reação legítima por causa do desnível de renda que a globalização cria dentro das sociedades, mas também entre estas - até entre o segmento ocidental e o restante do mundo.

A Rússia, a China e a Índia, embora necessariamente fora desse núcleo integrador, vão por enquanto, por razões práticas, por causa de seus problemas com a agitação e o terror islâmicos, integrar a coalizão liderada pelo Ocidente.

http://www.estado.com.br/editorias/2001/10/28/int005.html


Ocidente terá de se preocupar mais com a miséria do mundo

Aliviar a dívida externa e ajudar a combater a aids seria um bom começo

ANTHONY LEWIS
The New York Times

BOSTON - Depois dos acontecimentos de 11 de setembro, muitos disseram que nosso mundo mudara irrevogavelmente. E isso é verdade, num sentido que ainda não compreendemos plenamente.

A vitória na luta militar contra Osama bin laden e seus protetores do Taleban - se e quando ocorrer - não será o fim da ameaça de terrorismo contra os Estados Unidos. Isso exigirá um esforço a longo prazo, algo mais difícil que a ação militar: um esforço profundo por parte dos Estados Unidos e do Ocidente para aliviar a pobreza e a miséria do mundo em desenvolvimento.

Bin Laden e seus colegas não são motivados pela pobreza. Eles têm uma visão apocalíptica. Mas ninguém pode duvidar que as condições desesperadoras da vida no Afeganistão forneceram terreno fértil para o terrorismo. O desespero é um fato da vida em muitos países pobres e superpovoados.

O presidente George Bush afirmou ter ficado espantado com o ódio expresso por muitas pessoas contra os Estados Unidos no exterior por causa da campanha americana no Afeganistão. Ele está certo ao dizer que nosso alvo é o terrorismo que prejudica tanto pobres quanto ricos. Mas não causa muita surpresa o fato de que os miseráveis da terra estejam ressentidos contra a nação mais rica e mais poderosa.

Atacar a indecência da vida em grande parte do Hemisfério Sul não é mais do que uma questão de graça, de caridade, de bondade paternalista. É uma questão de intenso interesse próprio. Para nosso próprio bem, precisamos reduzir esse poço de ressentimento.

"Se não agirmos agora em larga escala, estaremos acumulando ódio", disse na semana passada um estadista conservador britânico.

Que devemos fazer? Em primeiro lugar, enfrentar o imenso problema humanitário imediato no Afeganistão. Centenas de milhares de afegãos, dependentes de ajuda alimentar, depois de terem sofrido a seca e dezenas de anos de conflitos, correm agora o risco iminente de morrerem de fome porque os canais de ajuda foram cortados pela guerra.

Especialistas das Nações Unidas afirmam que a emergência nunca foi tão séria no mundo como atualmente. Um representante da Unicef estima que 100 mil crianças afegãs podem morrer neste próximo inverno por falta de comida e agasalho.

O lançamento de pacotes individuais de alimentos de aviões americanos, que começou com os bombardeios, atende apenas a uma pequena parte das necessidades. Precisamos de algo mais, algo parecido com a ponte aérea de socorro a Berlim.

Os Estados Unidos forneceram a maior parte da ajuda alimentar ao Afeganistão. Se tivéssemos de fazer agora esforços dramáticos para que a ajuda de emergência chegasse às pessoas por meio de pacotes lançados de avião, ou por meio de comboios terrestres, ou por qualquer outra forma, isso faria uma grande diferença para a sobrevivência delas e, incidentalmente, para a posição dos Estados Unidos.

Os refugiados que estão se amontoando nas fronteiras do Afeganistão com o Paquistão e o Irã constituem também um grande aspecto do problema imediato. Novos refugiados - a previsão é de mais de 1 milhão - deverão fugir através das fronteiras e não existe alimento nem abrigo para eles. Um esforço internacional em larga escala é necessário para sua sobrevivência.

Depois da crise de refugiados imediata, os países ocidentais deveriam agir com seriedade para atender às necessidades das nações mais desesperadas.

Compreendemos agora - ou deveríamos compreender - que os mais bem intencionados planejadores de programas de ajuda podem cometer erros terríveis em seus planos sofisticados. Mas, indubitavelmente, um passo viria a ajudar: aliviar a dívida exorbitante das nações mais pobres.

Outra maneira como o Ocidente certamente pode ser útil é na luta contra a aids. Esta praga aflige muitos países da África e está começando a se alastrar pela Ásia. A ação dos líderes locais é necessária, mas o Ocidente pode ajudar a reduzir o custo dos medicamentos e contribuir na organização de sistemas de saúde pública para a administração dos medicamentos.

Tudo isso vai exigir uma mudança fundamental de atitudes no braço legislativo do país mais rico, ou seja, no Congresso dos Estados Unidos. Durante anos, a ajuda externa tem sido alvo de menosprezo e cortes no Congresso. Os Estados Unidos gastam apenas um décimo de 1% de seu Produto Nacional Bruto em programas de ajuda, uma porcentagem menor do que a de outros países menos ricos.

O Congresso reduziu não apenas a ajuda externa, mas também a política externa. A idéia errada segundo a qual os diplomatas não são importantes e, portanto, não merecem apoio, afeta principalmente os membros conservadores do Congresso. Na realidade, os diplomatas americanos estão na linha de frente, e alguns foram mortos.

O Departamento de Estado precisa urgentemente de mais recursos para certas coisas, como pessoal, ensino de línguas e estruturação da segurança.

Esse é um mundo realmente diferente, um mundo no qual os Estados Unidos e o Ocidente precisam se preocupar com o que acontece em lugares tão distantes, como o Afeganistão, por exemplo. Populações desesperadas estão batendo a nossas portas e ameaçando nossa própria vida. Temos que nos preocupar.

http://www.estado.com.br/editorias/2001/10/25/int028.html


A fé absoluta, início de uma batalha épica

Vertente radical faz parte do Islã e simplesmente não se pode ignorá-la

ANDREW SULLIVAN
The New York Times Magazine

Talvez o aspecto mais admirável da reação ao conflito que começou em 11 de setembro tenha sido a relutância geral em chamá-lo de guerra religiosa. Autoridades e comentaristas destacam que esta não é uma batalha entre o mundo muçulmano e o Ocidente, que os assassinos não representam o Islã. O presidente George W. Bush foi ao Centro Islâmico em Washington para reforçar essa opinião. Em reuniões de preces nos Estados Unidos e ao redor do mundo, líderes muçulmanos foram incluídos lado a lado com cristãos, judeus e budistas.

O problema dessa iniciativa de resto louvável é que ela não resiste a um exame acurado. A dimensão religiosa deste conflito é fundamental para seu significado. As palavras de Osama bin Laden estão impregnadas de argumento religioso e linguagem teológica. Seja o que for o regime Taleban no Afeganistão, ele é antes de tudo fanaticamente religioso. Embora alguns líderes muçulmanos critiquem os terroristas e até governantes da Arábia Saudita se tenham distanciado dos militantes, outros muçulmanos no Oriente Médio e noutras áreas não condenaram esses atos. Mantêm um silêncio notável ou até os festejaram. A vertente islâmica dos terroristas não é comum à maioria dos muçulmanos nem representa o passado do Islã, glorioso, civilizado e pacífico. Mas decididamente representa uma parte do Islã – a radical, fundamentalista – que simplesmente não se pode ignorar ou negar.

Nesse sentido, esta é mesmo uma guerra religiosa – mas não do Islã contra o cristianismo ou o judaísmo. É antes uma guerra do fundamentalismo contra credos de todo tipo que estão em paz com a liberdade e a modernidade. Esta guerra até tem ressonâncias muito mais brandas nos próprios conflitos religiosos nos Estados Unidos – entre vertentes mais novas e virulentas de fundamentalismo cristão e o protestantismo e catolicismo oficiais. Estes conflitos têm raízes antigas, mas parecem estar ganhando força nova à medida que a modernidade se propaga e se aprofunda. Eles são nossas novas guerras religiosas – e suas vítimas vão com toda certeza aumentar a cada ano que passa.

O próprio Osama bin Laden não podia ter sido mais claro a respeito do fundamento religioso de sua campanha de terror. Em 1998 ele disse a seus seguidores: “O apelo para travar guerra contra a América (EUA) foi feito porque a América encabeça a cruzada contra a nação islâmica, enviando milhares de seus soldados para a terra das duas mesquitas sagradas, acima de tudo imiscuindo-se em seus assuntos e sua política e dando apoio ao regime opressivo, corrupto e tirânico que é senhor da situação.” Note-se o emprego da palavra “cruzada”, um termo explicitamente religioso, e que simplesmente ignora o fato de as últimas grandes intervenções americanas no exterior – no Kuwait, na Somália e nos Bálcãs – terem sido feitas em defesa de muçulmanos.

Note-se também que, conforme Bin Laden a entende, a “cruzada” que os EUA estão supostamente liderando não é contra árabes, mas contra a nação islâmica, que abrange muitas etnias. Esta nação não conhece nações-Estados conforme elas realmente existem na região – motivo pelo qual esta forma de fundamentalismo islâmico é tão preocupante para os governantes de muitos Estados do Oriente Médio. Note-se também que a revolta de Bin Laden é contra tropas americanas que conspurcam a terra da Arábia Saudita – “a terra das duas mesquitas sagradas”, em Meca e Medina. Em 1998, ele também declarou a seguidores que seu terrorismo era “do tipo louvável, pois se voltava contra os tiranos e os agressores e os inimigos de Alá”. Ele também tem uma série de queixas contra Israel, mas suas preocupações não são essencialmente territoriais ou processuais. “Nossa religião está sob ataque”, disse ele sem rodeios. Os atacantes são cristãos e judeus. Quando solicitado a resumir sua mensagem ao povo do Ocidente, Bin Laden não podia ter sido mais claro: “Nosso apelo é o apelo do Islã que foi revelado a Maomé. É um apelo a toda a humanidade. Recebemos com razão a incumbência de seguir nas pegadas do mensageiro e transmitir sua mensagem a todas as nações.”

Esta é uma guerra religiosa contra a “descrença e os infiéis”, segundo as palavras de Bin Laden. Tais palavras cínicas destinam-se apenas a usar o Islã com fins execráveis. Não podemos conhecer os motivos exatos de Bin Laden, mas podemos saber que ele não empregaria essas palavras se não pensasse que elas têm importância para as pessoas que ele quer motivar e provocar. Esta forma de Islã não se restringe a Bin Laden.

Suas raízes estão numa vertente extremada e violenta do Islã, que surgiu no século 18 em oposição ao que alguns muçulmanos consideravam decadência otomana, mas ganhou grande força no século 20. Nas duas últimas décadas, esta forma de fundamentalismo islâmico aflige o Oriente Médio. Ela toma como alvo quase todos os regimes na região e, como não conseguiu fazer avanços, voltou sua hostilidade contra o Ocidente. Do assassinato de Anuar Sadat à fatwa (decreto religioso) contra Salman Rushdie, à campanha iniciada há uma década por Bin Laden para a destruição de antigas estátuas budistas, à odiosa perseguição de mulheres e homossexuais pelo Taleban e ao massacre no World Trade Center, só existe uma linha de conduta. Esta linha é a fundamentalista, religiosa. E é islâmica.

Em sua maioria, os intérpretes do Alcorão não encontram nele argumentos para o assassinato de inocentes. Mas seria ingenuidade ignorar no Islã um profundo traço de intolerância para com infiéis, principalmente quando se acredita que estes são uma ameaça ao mundo islâmico. 

Existem no Alcorão muitas passagens que pedem misericórdia para outras pessoas, tolerância e respeito à vida, e assim por diante. Mas também existem passagens como a seguinte: “E, quando os meses sagrados passarem, mate os que juntam outros deuses a Deus sempre que puder encontrá-los; e pegue-os, e cerque-os, e fique à espera deles com todo tipo de emboscada.” E este: “Fiéis! Movam guerra a infiéis do tipo de seus vizinhos e façam com que eles notem que vocês são rigorosos.” 

Bernard Lewis, o grande estudioso do Islã, escreve sobre a discrepância que há no âmago do Islã: “Existe na cultura religiosa do Islã qualquer coisa que inspirou, até no mais humilde camponês ou mascate, uma dignidade e uma cortesia para com outros, nunca superada, e raramente igualada em outras civilizações. No entanto, em momentos de agitação e tumulto, quando as emoções mais profundas são atiçadas, esta dignidade e cortesia para com outros pode ceder lugar a uma mistura explosiva de raiva e ódio que impele até o governo de um país antigo e civilizado – até o porta-voz de uma grande religião espiritual e ética – a pregar sequestro e assassinato, e tentar encontrar, na vida de seu profeta, aprovação e até precedente para tais atos.” Já que Maomé foi, ao contrário de muitos outros líderes religiosos, não simplesmente um sábio ou um profeta, mas um governante por direito próprio, esta exploração de sua política não é um exagero tão grande como alguns argumentam.

Este uso da religião para repressão extrema, e até terror, não se restringe ao Islã, claro. Durante a maior parte de sua história, o cristianismo teve antecedentes piores. Das Cruzadas à Inquisição, às sangrentas guerras religiosas dos séculos 16 e 17, a Europa viu mais sangue derramado em nome da religião do que o mundo muçulmano. E, dados os ensinamentos expressamente não violentos dos Evangelhos, a deturpação do cristianismo neste aspecto foi sem dúvida maior do que o uso seletivo que Bin Laden faz do Islã. Não obstante, a deturpação aí está. Quase parece existir algo inerente ao monoteísmo religioso que se presta a esse tipo de tentação terrorista. E nossas frouxas tentativas de ignorá-lo – de falar dessa violência como se ela não tivesse raízes religiosas – é uma espécie de desmentido. Não queremos denegrir a religião como tal, e portanto negamos que a religião esteja no âmago da violência. Mas entenderíamos melhor este conflito, talvez, se primeiro admitíssemos que a religião é responsável de alguma forma e, a seguir, imaginar como e por quê.

O primeiro erro é seguramente condescender com o fundamentalismo. Podemos discordar dele, mas o fundamentalismo atrai milhões de adeptos há séculos, e por um bom motivo. Ele eleva e conforta. Proporciona uma sensação de significado e orientação às pessoas perdidas num mundo que desorienta. O cego recurso a textos adotados como verdade literal, a obrigação de seguir os mandamentos de Deus antes de qualquer outra coisa, a submissão do raciocínio e do julgamento e até da consciência aos ditames do dogma: isto pode ser inebriante e transformador. Leva seres humanos a praticar atos extraordinários de bondade e maldade. E tem uma lógica interna. Se você acredita que existe uma vida eterna após a morte e que a infindável tortura indescritível aguarda os que desobedecem à lei de Deus, então não é preciso forçar muito a imaginação para conseguir que você não só concorde com cada diktat, mas também incentive e, se necessário, force outras pessoas a fazer o mesmo.

A lógica por trás disto é infalível. Pecado gera pecado. O pecado dos outros também pode corromper você. A única solução é construir um mundo em que tal pecado seja proscrito e punido e constantemente purgado – pela força se necessário. Não é loucura agir desta forma se você acredita firmemente em tais coisas. Sob certos aspectos, é loucura maior acreditar em tais coisas e não agir de acordo com elas.

Num mundo de verdade absoluta, em assuntos mais graves do que a vida e a morte, não há espaço para divergência e nenhum espaço para a dúvida teológica. Daí a confiança na interpretação literal de textos, porque outras formas de interpretação podem levar ao erro, e o erro pode levar à danação. Daí também a antiga insistência católica na autoridade absoluta da Igreja.

Sem infalibilidade não pode haver garantia de verdade. Sem tal garantia, a confusão pode levar ao inferno.

O Grande Inquisidor de Dostoievski ilustra muito bem este argumento. Na história contada por Ivã Karamazov em Os Irmãos Karamazov, Jesus volta à Terra durante a Inquisição espanhola. Num dia em que centenas de pessoas foram queimadas na estaca por heresia, Jesus faz milagres. Alarmado, o Inquisidor detém Jesus e o aprisiona com a intenção de queimar também a ele na estaca. O que se segue é uma conversa entre o Inquisidor e Jesus. Não se trata bem de uma conversa, pois Jesus nada diz.

É um diálogo entre duas formas de religião, uma exploração da tensão entre as extraordinárias afirmações transcendentais da religião e a incapacidade dos seres humanos de ficar à altura delas ou nem sequer acreditar plenamente nelas.

Segundo o Inquisidor, o crime de Jesus foi revelar que a salvação é possível, mas ainda assim dar às pessoas liberdade para recusá-la. E isto, para o Inquisidor, era uma forma de crueldade. Quando a verdade envolve as coisas imagináveis mais importantes – o significado da vida, o destino da alma eterna, a diferença entre o bem e o mal –, não basta deixar que ela dependa da capacidade humana de escolher. Este é um fardo grande em demasia. A escolha leva à descrença ou ao desvio, ou à negligência ou ao desespero. Os seres humanos precisam mesmo é da certeza da verdade, e precisam vê-la refletida em tudo ao seu redor – nas culturas em que eles vivem, envolvendo-os num tecido inconsútil de fé que os ajuda a resistir ao terror da escolha e ao abismo da descrença. É a esta necessidade que o Inquisidor chama de “segredo fundamental da natureza humana”. Ele explica: “Estas criaturas deploráveis estão preocupadas não só em encontrar o que um ou outro pode cultuar, mas também em encontrar algo em que todos acreditem e que cultuem; o essencial é que todos possam estar reunidos nele. Este anseio pela comunhão do culto é o principal infortúnio de cada homem individualmente e de toda a humanidade desde o início dos tempos.”

Esta é a voz do fundamentalismo. A fé não pode existir sozinha numa só pessoa. Na verdade, a fé precisa de outras pessoas para sobreviver – e, quanto mais completa for a cultura da fé, mais ampla ela será e, quanto mais completa for a infiltração do mundo por ela, tanto melhor.

Hoje é difícil para nós embrulhar nossas mentes com isso, mas está bem claro, a julgar pelos relatos sobre a Inquisição e, com efeito, sobre as guerras religiosas que continuaram assolando a Europa durante quase três séculos, que muitos fanáticos que queimavam seres humanos na estaca agiam em nome do que pensavam sinceramente ser os melhores interesses das vítimas.

Com o poder do Estado, eles empregavam o fogo, e não a execução simples, pois se acreditava que era espiritualmente purificador. Poucos minutos de pavorosa tortura na terra eram considerados um pequeno preço a pagar para ajudar tais almas a evitar a tortura eterna no além-túmulo.

Além do mais, o exemplo de tais execuções patrocinadas pelo governo ajudava a criar uma cultura na qual certas verdades eram fortalecidas e na qual era mais fácil para pessoas mais fracas encontrarem a fé. O fardo deste dever de sustentar a fé repousava nos homens que precisavam torturar, perseguir e matar o infiel.

E muitos deles acreditavam, conforme sem dúvida alguns fundamentalistas islâmicos acreditam, que agiam por piedade e religiosidade.

Esta é a voz autêntica do Taleban. Ela também tem sua réplica sob a forma secularizada. O que foram, afinal de contas, as sociedades totalitárias da Alemanha nazista e da Rússia soviética, se não uma cópia exata desta fusão de política com um significado supremo? Sob os regimes de Lenin e Stalin, a iminência da salvação por meio da consciência revolucionária corria o constante perigo de ser solapada pelos que eram fracos demais para ter fé – a burguesia ou os kulaks (proprietários rurais) ou os intelectuais. Portanto estes precisavam ser liquidados ou expurgados.

Da mesma forma, é fácil para nós considerar os nazistas um mal, conforme de fato eram. Mais difícil para nós é entender que, de um modo distorcido, eles acreditavam sinceramente que estavam criando uma nova alvorada para a humanidade, um lugar em que todas as dúvidas que a liberdade traz seriam desfeitas numa exaltação de pureza racial e fatalismo. Daí a destruição de todos os dissidentes e dos judeus – executada a fogo, conforme os inquisidores haviam feito, num ato de purificação que se diferenciava só na dimensão, eficiência e impiedade.

Talvez o mais importante para nós hoje seja constatar que a derrota de cada um desses fundamentalismos exigiu um esforço árduo e prolongado. É provável que o conflito com o fundamentalismo islâmico também venha a ter a mesma duração. Pois, ao contrário das guerras religiosas da Europa, que ensinaram aos cristãos a inutilidade de lutar até a morte por algo que estava acima da compreensão humana e era tão impenetrável a qualquer solução definitiva, não há no mundo muçulmano tal conflito educativo. Só o Irã e o Afeganistão experimentaram o horror total do fundamentalismo revolucionário, e só o Irã até agora vê motivo para se moderar em certa medida. A julgar por tudo o que vemos, as lições que a Europa aprendeu em sua história sangrenta ainda não foram assimiladas pelo mundo muçulmano. Aí, como na Europa do século 16, a promessa da pureza e salvação parece mais tentadora do que a atração banal da simples paz. Quer dizer que não estamos no fim deste conflito, mas em suas fases bem iniciais.

Os EUA não são novatos nesta luta. Já viram várias ondas de fervor religioso desde sua fundação. Mas a religião evangélica sempre manteve distância do poder governamental. A separação cristã entre o que é de Deus e o que é de César - extraída dos Evangelhos - ajudou a coibir a tentação fundamentalista. Mas as últimas décadas foram uma exceção. À medida que a modernidade avançou e as certezas da fé fundamentalista pareceram ser escarnecidas por uma sociedade cada vez mais liberal, evangélicos mobilizaram-se e ingressaram na política. Sua fé aguçou-se, seu fervor intensificou-se, a tentação de fundir a autoridade política com a religiosa acenou com maior insistência.

Felizmente a violência não tem sido um aspecto importante desta tendência - mas não está ausente dela. O assassinato de pessoas que proporcionam aborto mostra até onde tal zelo pode conduzir. Com efeito, se pessoas acreditam seriamente que aborto equivale a homicídio em massa, então se pode perceber a lógica horrível do terrorismo a que ela deu origem. Esta é a mesma lógica de Bin Laden. Se a fé for suficientemente forte e se ela mandar fazer escolha entre a ação e a danação eterna, então se pode justificar facilmente a violência. Em retrospecto, devíamos surpreender-nos, não por ter ocorrido violência - mas por não ter ocorrido com maior freqüência.

O vínculo crítico entre os fundamentalismos do Ocidente e do Oriente Médio é seguramente o ritmo da mudança social. Se você pegar suas crenças em livros escritos há mais de mil anos e se você acreditar literalmente nesses textos, então a aparência do mundo moderno aterroriza de fato. Se você acreditar que as mulheres deviam ser destinadas à servidão polígama e oculta, então Manhattan vai mesmo parecer Gomorra. Se você acreditar que o homossexualismo é crime punível com a morte, conforme determinam o fundamentalismo islâmico e a Bíblia, então um mundo com casamentos de pessoas do mesmo sexo é seguramente Sodoma. Não é um grande passo argumentar que tais centros do mal devem ser destruídos ou solapados, conforme Bin Laden faz, ou acreditar que a destruição deles é de certa forma uma consequência de seu pecado, conforme Jerry Falwell argumentou. 

Examine-se de novo as agora abjetas palavras de Falwell depois do 11 de setembro: "Creio verdadeiramente que os pagãos, e os partidários do aborto, e as feministas, e os gays e lésbicas que tentam ativamente fazer disso um estilo de vida alternativo, e a ACLU (União Americana de Liberdades Civis), Pessoas pelo Modo Americano - todos os que tentam secularizar os EUA - aponto o dedo no rosto deles e digo: 'Vocês ajudaram isto a acontecer.'" E por que não iria ele acreditar nisso? Falwell depois se desculpou pela insensibilidade do seu comentário, mas não por sua base teológica. Ele não consegue repudiar a teologia - pois ela é a essência daquilo em que ele crê e precisa acreditar para que sua fé continue viva.

O outro aspecto crítico deste tipo de fé é a insegurança. Fundamentalistas americanos sabem que estão perdendo a guerra da cultura. Eles estão aterrorizados com o fracasso e com o mundo sem Deus que, na sua opinião, está na iminência de tragá-los e os esmagar. Eles falam e pensam defensivamente. Falam de renovação, mas em seu discurso íntimo esperam danação para os Estados Unidos que perderam de vista a noção fundamentalista de Deus.

Da mesma forma, muçulmanos sabem que a era do triunfo imperial do Islã passou há muito tempo. Durante muitos séculos, a civilização do Islã foi o centro do mundo. Ela ofuscou a Europa na Idade Média, fomentou o saber e se expandiu territorialmente para a Europa e Ásia. Mas a partir daí começou a pura decadência. Desde o colapso do Império Otomano, a civilização islamita está do lado perdedor. A resposta a isto tem sido o flerte intermitente com a ocidentalização, mas é de longe a reafirmação mais enfática das formas mais arcaicas e extremadas da cultura sob ameaça. Daí o estranho fenômeno do extremismo islâmico que começou com todo o ímpeto só nos últimos 200 anos.

No caso do Islã, isto tem implicações piores do que em outras culturas que passam por altos e baixos. Pois a tolerância religiosa do Islã sempre se baseou em seu poder. Ele foi tolerante quando controlava o território e dava as cartas. Quando perdia território e se via ofuscado pelo Ocidente em poder e civilização, a tolerância desaparecia. Citando Lewis novamente sobre o Islã: "O que é verdadeiramente mau e inaceitável é a dominação dos verdadeiros crentes pelos infiéis. Crentes verdadeiros governarem infiéis é correto e natural, pois isto proporciona a manutenção da lei sagrada e dá aos descrentes a chance e o incentivo para adotar a fé autêntica. Mas descrentes governarem os fiéis verdadeiros é uma profanação e algo antinatural, pois leva à conspurcação da religião e da moralidade na sociedade e à zombaria e até à abolição da lei de Deus."

Daí o horror causado pela criação do Estado de Israel, país infiel em terras muçulmanas, amargo lembrete do eclipse do Islã no mundo moderno. Daí também a reação contra as bases americanas na Arábia Saudita. Se o colonialismo em graus diferentes significa só opressão para certas culturas, para o Islã é muito pior. É uma profanação que precisa ser vingada e enfrentada.

Não consigo deixar de pensar nessa conduta defensiva quando leio informações sobre os homens-bomba sentados à beira da piscina na Flórida ou fazendo uma despesa de US$ 48 com vodca num restaurante americano. Costumamos pensar que esta integração ao Ocidente poderia converter fundamentalistas islâmicos, abrandar seu fervor. Mas acontece o contrário. A tentação da cultura americana e ocidental - na verdade, a própria atração dessa cultura - pode muito bem exigir uma repressão até mais brutal, caso se queira dominá-la. A transmissão da cultura americana para o âmago do que Bin Laden chama de nação islâmica exige só duas respostas - capitulação à descrença ou um combate radical a ela. A psique fundamentalista tem pouco espaço para uma conciliação. A própria dinâmica psicológica que leva homossexuais reprimidos a ser terrivelmente homófobos ou a que motiva pregadores sexualmente tentados a investir contra a imoralidade é a mesma dinâmica que leva fundamentalistas consumidores de vodca a desviar aviões e lançá-los contra edifícios. Ela não se destina a alcançar algo, construir algo, afirmar algo.

É uma atuação violenta resultante de conflito interno. E os EUA são o palco perfeito para essa atuação. Pois a questão do fundamentalismo religioso não era apenas familiar aos patriarcas da nacionalidade americana.

Sob muitos aspectos, foi a questão central que levou à existência dos EUA.

Os primeiros imigrantes chegados à América eram, afinal de contas, refugiados das guerras religiosas que tragaram a Inglaterra e se intensificaram sob o governo do Taleban inglês, Oliver Cromwell. Uma influência central para o pensamento político dos patriarcas foi John Locke, o liberal inglês que escreveu a hoje famosa "Carta sobre a Tolerância".

Nela, Locke argumentou que a salvação autêntica não podia resultar da coerção, que era preciso escolher livremente a fé para esta ser genuína e que qualquer outra interpretação contrariava os Evangelhos. Seguindo Locke, os patriarcas estabeleceram como fator central da nova ordem americana a nítida separação entre Igreja e Estado, assegurando-se de que nenhuma religião isolada podia empregar meios políticos para pôr em prática sua ortodoxia.

Mencionamos isto hoje como se fosse uma trivialidade, sem assimilar ou sequer constatar sua natureza radical na história humana - e o profundo dilema que essa separação estava fadada a resolver. Foi uma tentativa de responder à eterna pergunta humana - como buscar a meta da salvação religiosa para nós e outros e ainda assim preservar a paz civil. O que os patriarcas e Locke diziam é que simplesmente não se podia permitir que as supremas pretensões da religião interferissem nas liberdades política e religiosa. Fizeram-no para preservar a paz acima de tudo - mas também para preservar a própria religião autêntica.

A garantia contra um Taleban americano é portanto relativamente simples: sua Constituição. E a consequência surpreendente desta separação é que ela não levou à ruína religiosa nos EUA - quando seres humanos fracos se vissem incapazes de crer sem terem um reforço social e político -, mas sim a uma das sociedades civis mais religiosas da Terra. Nenhum outro país alcançou isto. E é esta proeza que o Taleban e Bin Laden decidiram agora desafiar.

Ela é a refutação viva e palpável de tudo em que eles acreditam.

Eis por que este próximo conflito é tão importante e sério quanto os maiores conflitos passados, contra o nazismo e o comunismo, e eis por que não é exagero encará-lo nestes termos épicos. O que está em jogo é outra batalha contra uma religião que sucumbe à tentação que Jesus rejeitou no deserto - governar pela força. A diferença é que este conflito é contra um inimigo mais formidável do que o nazismo ou o comunismo. Os totalitarismos secularizados do século 20 foram, segundo palavras memoráveis do presidente Bush, "mentiras descartadas". Eram fundamentalismos construídos sobre as frágeis presunções intelectuais a respeito de uma raça superior ou de uma revolução comunista.

Mas o fundamentalismo islâmico baseia-se numa civilização gloriosa e numa grande fé. Pode dominar, cooptar e corromper crentes bons e autênticos se tiver um ambiente propício e adequadamente inebriante. Tem uma lógica mais vigorosa do que a ideologia atéia de Stalin ou Hitler, e pode servir de ponto focal para todas as outras sociedades do mundo, cujo ressentimento com o êxito e a civilização ocidentais é mais fácil do que a adaptação árdua à modernidade. Precisamos vencer isto de alguma forma sem derrotar ou mesmo nos opor a uma grande religião que não obstante é muito inexperiente na tolerância de outros credos, preponderantes e mais influentes. É difícil menosprezar a extrema delicadeza e dificuldade desta tarefa.

Neste sentido, o símbolo deste conflito não deve ser a bandeira dos EUA, por mais emocionante que ela seja. O que está em jogo aqui é o princípio simples mas imensamente difícil da separação entre política e religião. Estamos lutando, não por nosso país como tal ou por nossa bandeira. Estamos lutando pelos princípios universais de nossa Constituição - e pela possibilidade da fé religiosa livre que ela garante. Estamos lutando pela religião contra um dos mais profundos traços que a religião tem. E não só nossas vidas, mas também nossas almas, estão em jogo.

http://www.estado.com.br/editorias/2001/10/21/int020.html


Perigo: renunciar aos valores democráticos

Estamos realmente constrangidos a renunciar à universalidade dos direitos humanos em nome da luta contra o terrorismo muçulmano? Se a resposta for afirmativa, nosso combate antiterrorista perde muito de sua legitimidade. E novos ódios estão sendo fomentadosGuerra contra o terror contém uma armadilha para a qual não se dá muita atenção

GUY SORMAN

O atentado de 11 de setembro exigia uma reação proporcional ao ataque sem cair, todavia, nas duas armadilhas preparadas para os ocidentais.

A primeira talvez tenha sido identificada de imediato: não entrar na espiral da violência. A segunda continua despercebida: a tentação de renunciar a valores democráticos em nome da eficácia a curto prazo.

A primeira armadilha foi realmente evitada? Neste estágio do conflito, não sabemos se a estratégia americana desmantela efetivamente os terroristas, mas ela está suficientemente circunscrita para não provocar levantamentos de massa. Deixemos, porém, de lado as ilusões: os muçulmanos do mundo inteiro se resignam mais do que simpatizam com nossa ação. Provavelmente novos ódios estão sendo fomentados: como enfrentá-los após a guerra?

Os ocidentais poderão escolher entre uma paz armada e uma revisão completa das relações com os países muçulmanos. Esse novo impasse, comparável por sua magnitude ao fim da guerra fria ou à edificação da Europa unida, exigirá o repúdio aos governos imorais e ineficazes e a implementação de uma política conjunta de co-desenvolvimento econômico com novos regimes mais legítimos.

Combatemos no Afeganistão para garantir nossa segurança, mas também para universalizar esses princípios de democracia e de progresso; pelo menos, é o que se espera. Se essa não for nossa finalidade precípua, nossa ofensiva atual visaria exclusivamente à segurança; estaríamos condenados a viver no medo da próxima agressão. Seria, portanto, desejável que os "objetivos de guerra" incluíssem claramente um novo modo de relacionamento com as nações muçulmanas. Essa proclamação daria a alguns regimes que são atualmente aliados circunstanciais o tempo de refletir sobre sua evolução necessária no pós-guerra.

Essa universalização de nossos valores pressupõe que nós próprios não os percamos durante este conflito. Ora, alguns sinais são preocupantes. As respostas às perguntas: quem combatemos, quando e por quê não são todas coerentes com os princípios da democracia liberal.

Perseguimos os terroristas? Muito bem. Mas quem é terrorista, quem não é? No caso de Bin Laden, é simples, até demais. Apresentam-nos um demônio isolado que nos desafia a partir de um território que não é o dele; esse terrorista perfeito não se interroga muito sobre as cumplicidades de regimes instalados e de redes de financiamento que transitariam por capitais respeitáveis. Além de Bin Laden, sobre o qual não nos dizem toda a verdade, a posição ocidental é ainda mais nebulosa. Por exemplo, o que aconteceu com Abu Nidal, o terrorista mais cruel dos anos 70? Ele vive tranqüilamente no Egito. Por que não está preso? É possível, então, ser um terrorista aposentado? Na Chechênia, na Caxemira, na Córsega, na Palestina, na Irlanda, na Geórgia, no Sinkiang, no Sri Lanka, na Colômbia, em Chiapas, quem é terrorista e quem não é? Em todos esses lugares, o terrorismo é um método; ele é legítimo?

Quem o declara como tal? Os governos instalados, a mídia, a ONU?

Qual é o critério que deveríamos, portanto, adotar para distinguir a resistência legítima do terrorismo? O oportunismo ou os direitos humanos? Se os ocidentais forem coerentes consigo mesmos, a não violência, os direitos humanos e a democracia deveriam ser admitidos como regra universal. Mas na guerra atual estamos longe disso: predomina a realpolitik cuja manifestação mais evidente é a aliança com Putin. Estamos realmente constrangidos a renunciar à universalidade dos direitos humanos em nome da luta contra o terrorismo muçulmano?

Se a resposta for afirmativa, nosso combate antiterrorista perde muito de sua legitimidade. Esse abandono da causa dos direitos humanos negaria retrospectivamente as intervenções na Bósnia e no Kosovo; no futuro, ele pressuporia como fato consumado que qualquer governo instalado é por definição mais legítimo que os movimentos que o combatem. Adeus aos tibetanos! Tal retorno ao cinismo político seria um erro político e uma renegação: não podemos estar ao mesmo tempo do lado das mulheres afegãs quando elas são martirizadas e não do lado das mulheres chechenas, argelinas ou tibetanas quando são exterminadas. Existe uma exigência de coerência moral que, no meu entender, deve ser lembrada, mesmo em tempo de guerra.

Outro erro, em nome da eficácia, seria limitar nossas liberdades políticas.

Já constatamos que a informação é censurada, que ela não é acessível a nossos parlamentos nem a nossas mídias, como se não fossem dignos de confiança. Para o futuro, prometem-nos o pior: a Internet sob a vigilância constante do big brother, os telefones sob escuta, nossas contas bancárias abertas a todas as devassas, controles de identidade e revistas contínuas.

Em nome de uma luta permanente contra o terrorismo? Ou em nome de um desejo de poder delirante de nossas polícias. Dizem-nos que o combate será longo.

Estranho álibi que os governantes repetem e que não se fundamenta em nenhuma informação verificável. Já não somos suficientemente vigiados, a tal ponto que, em poucos dias, a polícia pôde reconstituir todos os atos e gestos dos terroristas? A luta contra o terrorismo tornar-se-á um pretexto sinistro para reforçar essa ordem policial? Se a conseqüência do atentado tiver que ser essa, por que combatemos? Para que o mundo seja governado pela tríade Bush, Putin, Musharraf? Juntamente com a CIA e os colaboradores nacionais?

Essas preocupações são provavelmente prematuras no estágio atual do conflito; mas as derivas autoritárias aparecem em filigrana. Aceitá-las agora é correr o risco de acordar após a guerra em uma sociedade diferente daquela pela qual combatemos. Isso faz lembrar um precedente célebre, o do economista Friedrich von Hayek, em 1944. A guerra era mais dramática que a do Afeganistão; apesar do desfecho incerto, Hayek publicou em Londres um panfleto intitulado O Caminho da Servidão, no qual ele denunciou o poder excessivo dos Estados aliados sobre a sociedade civil sob o manto da eficácia militar. Do que adiantaria, perguntava Hayek, combater as ditaduras se nesse combate o Ocidente renunciasse a sua própria liberdade? Guardadas as devidas proporções, sua interpelação naquela época vale para os governos atuais. Vencer a guerra às custas de nossos imperativos de liberdade cívica, de desenvolvimento econômico, de primazia dos direitos humanos, de universalidade da democracia, equivaleria a perdê-la.

Guy Sorman é escritor e professor do Instituto de Ciências Políticas de Paris

http://www.estado.com.br/editorias/2001/10/21/int013.html


Terror desperta pensamentos sobre fim do mundo

Volta a pergunta 'por que estou na Terra?', embora se preferisse empurrá-la para o fundo das mentes

PAUL JOHNSON
The Spectator

Os acontecimentos do mês passado e principalmente os sustos com guerra biológica fizeram muita gente pensar no possível fim do mundo. Tais especulações se limitam geralmente aos muito velhos. Winston Churchill, em seu último discurso à Câmara dos Comuns, sugeriu que Deus estava se cansando de sua criação. O papa atual, idoso em anos e sabedoria, indagou por quanto mais tempo Deus vai tolerar a maldade de suas criaturas. Astrofísicos concordam que o mundo acabará um dia, por causas naturais, mas não conseguem chegar a um acordo quanto à época, exceto que será daqui a incontáveis bilhões de anos. Isto tem pouco interesse para nós. A idéia de o mundo gradualmente esgotar-se em data imprevisível no futuro inimaginável que não implica ameaça idêntica à decisão tomada por um ente supremo disposto a acabar com a humanidade de um golpe - quer empregando fanáticos muçulmanos enlouquecidos ou outro meio - faz a maioria das pessoas tremer e pensar em coisas que prefeririam empurrar para o fundo de suas mentes.

Coisas como: por que estou aqui na Terra? Existe um propósito para minha existência? O que devo fazer com minha vida? Onde vou em busca de orientação? Existe um Deus afinal de contas? Apesar de sua fraqueza, hipocrisia e divisões, as igrejas falam-me algo que eu devia ouvir? Se eu for logo levado a julgamento, passarei no teste? E, se não, o que posso fazer no curto tempo restante para melhorar minhas chances?

A última pergunta é a mais pertinente. Lembro-me de que meu avô dizia que um homem que sentisse seu fim aproximar-se devia cuidar para que todas as suas dívidas fossem pagas, pois testamenteiros são com freqüência indesculpavelmente vagarosos na hora de fazer justiça a credores. Mas este conselho tem pouca importância se todos estamos fadados ao cutelo. O dr. Johnson, conforme suas orações publicadas mostram, preparava-se para a morte cada dia de sua vida, e suas últimas semanas intensificaram suas invocações temerosas. Também Jane Austen sabia que estava morrendo, embora estivesse só no início de seus 40 anos, e passou a ir à igreja com maior freqüência.

Um caso interessante foi o de Andrew Carnegie, que chegou da Escócia e acumulou a maior fortuna em dinheiro então conhecida nos EUA, nada menos que meio bilhão de dólares em valores de 1900. Descrente a vida inteira, ele tinha idéias exatas sobre conduta moral. Argumentava que era aceitável para um homem acumular fortuna imensa por meios legais, mas "quem morre rico morre em desgraça". Portanto ele passou os últimos anos desfazendo-se dela numa série de boas causas, incluindo o fornecimento de quase 5 mil órgãos a igrejas - estranha obra beneficente partida de um agnóstico.

Acontece que a 1.ª Guerra Mundial, que fez tanta gente se voltar contra o cristianismo, teve o efeito oposto em Carnegie, abalando sua crença no irresistível avanço humano sem a ajuda de uma divindade. A 2.ª Guerra Mundial teve o mesmo efeito em H. G. Wells. O título de seu último livro, Mind and the End of its Tether (A Mente e o Fim de Seu Âmbito), refletiu sua angústia. Um de seus últimos atos foi rabiscar na lateral de sua casa: "Tempo de Partir." Mas para onde? Onde quer que fosse, Wells parecia ter pressa. No serviço secular antes de sua cremação, enquanto as pessoas se agrupavam, alguém inadvertidamente tocou o botão e o caixão lentamente desapareceu da vista humana antes que se pudesse pronunciar os elogios - o que muitos dos humanistas presentes consideraram um prodígio. Mas que tipo de prodígio?

Os cristãos primitivos estavam bem certos de que o fim do mundo e o "Segundo Advento" eram iminentes, e se preparavam adequadamente para o evento. Na Idade Média, fiéis ainda supunham que a seqüência dos últimos acontecimentos - morte, julgamento, céu e inferno - era um futuro real que eles tinham de enfrentar e disso eram lembrados pelos murais nas igrejas que freqüentavam.

Eles viam a futuridade em detalhes emocionantes e coloridos, e a perspectiva dava sentido à sua vida, ainda que inspirasse medo. Mas o receio era abrandado pelo ensinamento de que Cristo era infinitamente misericordioso e sua Paixão e Morte eram os meios pelos quais a graça redentora ficava à disposição da humanidade. Eis por que a crucificação e os acontecimentos anteriores e posteriores a ela formaram o tema central da arte européia até o fim do século 17.

Na vida de um pintor maior como Bernini, nas obras que ele criava com as mãos, o cérebro e a fé que ardia em seu peito eram inseparáveis. Ele ia à missa toda manhã; e à noitinha, quando estava escuro para trabalhar, caminhava até a igreja para rezar. Seu livro principal de devoção - penso que sabia sua maior parte de cor - era A Imitação de Cristo, de Thomas Kempis. Quando Bernini soube que estava morrendo, colocou ao pé do leito uma composição do Cristo crucificado pairando sobre um mar de sangue - sua profissão de fé pessoal de que o mundo fora limpo do mal pelo sangue de Cristo. A última obra de Bernini foi um suave e pequeno desenho de Cristo como Salvator Mundi.

Agora não podemos esperar essa bona mors. As certezas que envolviam Bernini foram solapadas. Os que como nós ainda acreditam em Deus e numa vida futura fazem-no com muitas perguntas sem resposta nas mentes. Fomos criados numa sociedade totalmente secularizada e materialista, onde os valores do mundo formam os horizontes do pensamento, e é difícil escapar da prisão que eles constituem e penetrar no universo mais amplo de infinidade e eternidade.

Gosto de passar do movimento de uma rua para a calma de uma igreja pois aí encontro preocupações e prioridades totalmente diferentes, e pessoas que compartilham meus pensamentos e agem como lenitivo com sua simples presença, da mesma forma como eu as alivio por estar ali. Contemplo à minha volta as estátuas e imagens nos vitrais, e também elas às vezes parecem-me pessoas reais, consoladoras, proporcionando alívio e tranqüilidade do outro mundo, que já habitam e onde já estão providenciando uma acolhida.

Esta é a fé que cultivo: uma fé pacífica e equânime que não ameaça ninguém e ama todos, conservada firmemente só por uma minoria talvez, mas incluindo toda a humanidade em suas promessas e olhando para um futuro em que toda a criação estará unida na glória de Deus - um instante de felicidade total que, como o tempo parou e o espaço se contraiu transformando-se em nada, torna-se uma eternidade incorpórea.

Mas sou brutalmente lembrado de que os acontecimentos que motivaram esta linha de raciocínio foram obra de homens cuja fé é até mais ardorosa, por mais desorientada que possa ser. A fé religiosa é criativa e destrutiva - o sangue redentor de Cristo faz parte de um enorme fenômeno de formas sacras, que inclui Moloch e o Jagrená, anjos tombados e forças satânicas, zigurates e altares astecas manchados pelo sangue de incontáveis vítimas. Como exatamente o sacrifício de Cristo difere do deles? Não posso ter a pretensão de responder a tais perguntas, exceto com mais uma expressão de fé. Tampouco posso explicar, exceto pela esmagadora convicção e intuição, por que minha fé é saudável ao passo que o fanatismo que impele pessoas a tramar genocídio contra Israel, e agora contra os EUA e a Grã-Bretanha - todos os que são "ocidentais" ou "brancos" - é demoníaco. Estes são mistérios que só Deus pode resolver. Mas podemos rezar pedindo iluminação, justiça e paz. E é isto o que faço, e muitos estão fazendo nesta época conturbada.

http://www.estado.com.br/editorias/2001/10/21/int015.html

Andrew Sullivan é articulista colaborador de The New York Times Magazine

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