
Matthew Korpman, La Sierra University
Academia Letters, 2022
1. Introdução
O tema da relação entre Ellen White, o adventismo do sétimo dia e o Apócrifo (conjunto de livros bíblicos tidos como apócrifos, deuterocanônicos, pseudoepígrafos, etc) tem crescido constantemente desde 1987, quando o primeiro estudo sobre o assunto apareceu (Graybill 1987). Desde então, os últimos anos viram uma explosão de pesquisas focadas em explorar esse patrimônio adventista esquecido (Fortin 2002; Casebolt 2018; Korpman 2018, 2019, 2021).
Isso ocorreu, em parte, devido ao lançamento em 2014 de uma visão inédita de Ellen White, na qual ela afirmou que o Apócrifo era a “Palavra de Deus” (White 1849, “Remarks in Vision”). As pesquisas mais recentes demonstraram que White não apenas citou passagens do Apócrifo ao escrever suas primeiras visões — fato já reconhecido por estudos anteriores (Graybill 1987, 1994) — mas também ao longo de toda a sua vida (Korpman 2020).
A questão sobre o que essas alusões e citações contínuas significam para reconstruir suas crenças posteriores a respeito do Apócrifo permanece em debate.
O contexto histórico do uso do Apócrifo por White — explorando a recepção positiva que essas obras deuterocanônicas receberam de protestantes — já foi abordado em profundidade em outros estudos (Korpman 2021). Entretanto, um comentário breve de Graybill em seu primeiro estudo ajuda a contextualizar a jovem Ellen White:
“Nos anos 1830 e 1840, muitas Bíblias contendo o Apócrifo ainda circulavam. Até 1827, as Bíblias distribuídas pela Sociedade Bíblica Americana geralmente continham o Apócrifo. De fato, a enorme Bíblia na casa da família Harmon, que a jovem Ellen ergueu em visão, continha o Apócrifo impresso em letras menores entre os Testamentos.” (Graybill 1987:26)
Estudos anteriores observam com cautela que os endossos explícitos de Ellen White ao Apócrifo trazem clareza apenas em relação à sua juventude (Graybill 1994:11; Korpman 2020:143). Suas discussões sobre o Apócrifo se concentram em duas visões de 1849 e 1850 (um período inferior a um ano).
Trechos das visões:
1849:
“(Segurando a grande Bíblia que continha o apócrifo:) Puro e incontaminado… A Palavra de Deus, tomai-a… ata-a ao coração por muito tempo, pura e sem adulteração… Tua palavra, tua palavra… uma parte dela está queimada sem adulteração, uma parte do livro oculto, uma parte está queimada (o apócrifo). Aqueles que desprezarem esse remanescente pensarão que estão fazendo um serviço a Deus. Por quê? Porque são levados cativos por Satanás à sua vontade. Livro oculto, ele é rejeitado. Ata-o ao coração… ata-o, ata-o, ata-o… não deixes suas páginas fecharem; lê-o cuidadosamente.”
1850:
“Vi que o Apócrifo era o livro oculto, e que os sábios dos últimos dias deveriam compreendê-lo.”
Apesar de seu silêncio posterior, o uso contínuo do Apócrifo por White, documentado em estudos recentes, indica que ela não rejeitou essas obras em sua vida adulta (Korpman 2020:143).
Por exemplo, suas referências contínuas a Esdras como profeta (1862:37; 1899:273) — algo somente apoiado pelo livro apócrifo de 2 Esdras — indicam que sua visão sobre a inspiração dessas obras não mudou com o tempo.
Mesmo assim, há um episódio de seu ministério posterior que fornece mais clareza, mostrando que suas revelações juvenis permaneceram consistentes até pelo menos 1897.
Este estudo breve argumenta que a posição teológica de Ellen White em 1849 parece ter se estendido até 1897 — sugerindo que sua visão sobre o Apócrifo se baseava em uma crença constante acerca da transmissão e inspiração bíblica.
2. Impossível julgar a inspiração
Um dos pontos teológicos defendidos por White em sua maturidade é que ninguém pode decidir o que é inspirado ou o que não pertence à Bíblia.
Ela escreveu:
“Eu permitiria que ambos os meus braços fossem arrancados antes de fazer a declaração ou colocar meu julgamento sobre a Palavra de Deus quanto ao que é inspirado e ao que não é.”
Ela reforçou:
“Aceito a Bíblia tal como é, como a Palavra Inspirada. Creio em suas declarações em uma Bíblia inteira.” (White 1888a)
Essa Bíblia, na época, incluía o Apócrifo.
Ela também escreveu:
“Nenhuma parte da Bíblia morreu de velhice. Toda a história passada do povo de Deus deve ser estudada por nós hoje, para que possamos nos beneficiar das experiências registradas.” (White 1897)
Outras declarações são igualmente esclarecedoras:
“[Deus] não qualificou nenhum homem finito… nem inspirou nenhum homem ou classe de homens a julgar o que é inspirado ou não.” (White 1888a)
“Se Satanás puder fazer você acreditar que há coisas na Palavra de Deus que não são inspiradas, ele estará pronto para enlaçar sua alma.” (White 1888b)
“Não coloquem a mão sobre a arca. Não digam ‘isso não é inspirado’ simplesmente porque alguém disse.” (White 1888c)
Essas palavras ecoam sua visão de 1849, quando advertiu que remover qualquer parte da Bíblia — como o Apócrifo — abriria caminho para remover outras partes.
Para White, o cânon era o que estava na Bíblia preservada por Deus até aquele momento.
Ela declarou:
“O Senhor preservou este Livro Sagrado… em sua forma atual.” (White 1888a)
Mas em 1888 havia mais de uma forma — algumas Bíblias tinham o Apócrifo, outras não.
O mais provável é que ela se referia à Bíblia que retinha o Apócrifo.
Assim, se livros como Tobias haviam sido preservados por séculos dentro da Bíblia, White cria que ninguém tinha o direito de removê-los, pois Deus havia permitido sua inclusão e preservação.
3. Endossando a Septuaginta
Um segundo ponto ocorre quando White comenta sobre o período intertestamentário. Em O Desejado de Todas as Nações ela escreve:
“Por centenas de anos, as Escrituras haviam sido traduzidas para o grego, então amplamente falado no Império Romano.” (White 1898)
Ela se refere claramente à Septuaginta (LXX).
Isso é significativo por dois motivos:
1. Muitos protestantes rejeitavam a Septuaginta na época, justamente por conter o Apócrifo.
2. White a menciona de forma positiva — e apenas uma vez em sua obra — e o faz sem distinções entre os livros.
Escritores de sua época frequentemente atacavam a LXX por unir o Apócrifo à Bíblia:
“É à Septuaginta que devemos o Apócrifo… Por isso afirmei que ela não é a Palavra de Deus.” (Thelwall 1839)
Para White, entretanto, o termo “Escrituras” aplicava-se ao conjunto inteiro — como era comum crer na época, dado que não existe nenhuma cópia antiga da Septuaginta sem livros apócrifos.
Assim, ao elogiar a Septuaginta como Escrituras, ela parece endossar tacitamente o mesmo conjunto de livros.
Como outro autor pró-LXX afirmou:
“A versão grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, pode ser chamada de ‘o Cânon do Apócrifo’ ou ‘sabedoria oculta’.” (von Bunsen 1867)
4. Conclusão
Quase toda discussão sobre a Septuaginta no século XIX envolvia o Apócrifo. Assim, é improvável que White não soubesse das objeções teológicas associadas a elogiar a LXX.
Quando combinamos:
-
suas advertências contra remover livros da Bíblia,
-
seus elogios à LXX,
-
seu uso contínuo do Apócrifo,
-
suas declarações contra julgar a inspiração de partes da Bíblia,
então o quadro resultante é claro:
Ellen White manteve uma visão consistente de 1849 até pelo menos 1899:
ela considerava os livros apócrifos como inspirados ou como parte legítima da Bíblia.
Isso mostra que o Apócrifo desempenhou um papel teológico importante em todo o seu ministério.
Fonte e Referências:
https://www.adventistas.com/wp-content/uploads/2025/11/Endorsing_the_Septuagint_Ellen_White_and.pdf