A Influência dos Apócrifos nos Ensinos de Jesus
(Configure seu player do YouTube para exibir legendas automatica mente traduzidas para o português do Brasil.)
Como o Nazareno leu, valorizou e transformou um livro que muitos cristãos rejeitam
O Cenário do Sermão e a Plateia Dividida
De pé num terreno plano, o novo e enigmático pregador da Galileia fitou uma de suas maiores multidões. Ainda assim, doze homens — escolhidos como seus discípulos apenas algumas horas antes — estavam atrás dele. À frente deles havia uma grande multidão de pessoas não apenas da Judeia e da capital, Jerusalém, mas também das regiões gentias de Tiro e Sidom.
Era um momento decisivo. Todos sabiam disso. Aquilo era uma apresentação, para alguns, não apenas de Jesus — que já havia conquistado certa reputação na região —, mas do movimento e daqueles que o representavam. A multidão havia vindo em busca de milagres; estavam prestes a receber um sermão, o primeiro, inaugurando o movimento que ele havia iniciado.
“Bem-aventurados vocês, os pobres”, anunciou com voz firme, “pois de vocês é o Reino de Deus.”
“Bem-aventurados vocês que agora choram”, ele declarou, “pois vocês hão de rir.”
Outra vez proclamou: “Bem-aventurados vocês quando as pessoas os odiarem, quando os excluírem, insultarem e difamarem.” Abaixando a cabeça e depois levantando-a com um sorriso, completou: “Alegrem-se naquele dia e saltem — saltem de alegria! Pois grande é a sua recompensa nos céus.”
A multidão se calou. Não era apenas a voz, mas a mensagem.
“Amem os seus inimigos”, pregou. “Abençoem os que os amaldiçoam.”
A multidão admirava o pregador enquanto ele continuava: “Deem a todo aquele que lhes pedir”, suplicou. “Não retenham nem mesmo a sua túnica.”
A multidão começou a se agitar. E então o galileu pronunciou aquelas onze palavras que se tornariam quase tão imortais quanto o seu próprio nome: “Façam aos outros o que vocês gostariam que fizessem a vocês.”
Quer a multidão tenha percebido plenamente ou não, com essa declaração Jesus fez mais do que citar um ensinamento popular. Ele definiu toda a sua missão e, com ela, o futuro das igrejas.
Jesus Não Criou a Regra de Ouro — Ele a Citou de um Livro Considerado Apócrifo
Embora muitas pessoas conheçam a Regra de Ouro por causa dessa declaração famosa de Jesus — e muitas presumam naturalmente que se trata de um ensinamento original dele — suspeito que a maioria ficaria surpresa ao descobrir que o carpinteiro nazareno estava essencialmente repetindo as palavras de outro.
De fato, ele estava citando um livro encontrado em muitas edições do Antigo Testamento que, embora familiar para a maioria dos cristãos no mundo hoje — e recitado em incontáveis casamentos — é amplamente desconhecido por muitos de nós na fé protestante.
Essa obra antiga, da qual Jesus estava citando, escrita mais de 200 anos antes de seu nascimento, era o livro de Tobias (Tobit). Atualmente incluído no cânon maior das Bíblias Católica e Ortodoxa, situado entre os livros de Ester e Jó, ele também constava, até cerca de cem anos atrás, na maioria das Bíblias protestantes — inclusive as usadas por adventistas.
Se isso surpreende você — o fato de Jesus estar citando uma obra que é Escritura para alguns cristãos, mas não para você — não se sinta desorientado. Em resumo, é preciso estar ciente, neste sermão, de algo que tão poucos protestantes às vezes estão: a maioria dos cristãos do mundo não possui a mesma Bíblia que nós.
Mas, como se não bastasse o choque de descobrir isso, também constatamos em nossa passagem do evangelho nesta manhã que nossas Bíblias ainda fazem referência a histórias que nós retiramos.
E assim, não sem certa alegria, encontro nesta ocasião — como em meu sermão anterior — a rara oportunidade de saltar para fora do meu texto habitual e adentrar outro que não apenas está fora das leituras designadas para o sábado, mas também fora de qualquer Bíblia presente nos bancos da igreja.
Por Que Jesus Gostava Tanto de Tobias?
Deixando de lado questões sobre o cânon do livro — normalmente a armadilha de qualquer discussão protestante sobre uma obra como esta — a pergunta mais importante para este sermão é: por que Jesus se interessou pelo livro? E, ainda mais importante, como compreendê-lo pode nos ajudar a entender melhor a mensagem de Cristo, não apenas em seu sermão naquele lugar plano, mas ao longo de todo o seu ministério?
Para explorar isso, precisamos perceber que a influência de Tobias no sermão de Jesus foi mais do que uma simples citação. Grande parte do que Jesus disse naquele sermão ecoou todo o capítulo 4 de Tobias, mostrando que Cristo estava propositalmente e habilmente entrelaçando seu sermão com aquela outra obra.
Embora essa fosse a primeira vez que Jesus citava o livro de Tobias, não seria a última. Ele continuaria a retornar não apenas ao livro, mas especificamente a esse capítulo repetidas vezes.
Lembram-se da instrução para dar roupa aos nus e alimento aos famintos? Mesmo capítulo de Tobias.
Acumular tesouros no céu? Tobias.
Não pensar duas vezes antes de dar? Tobias.
Dar esmolas e ser purificado no interior? Tobias.
Todos esses são exemplos do quanto Jesus, vez após vez, retorna ao mesmo capítulo.
O Livro de Tobias — Inteiro e Sem Cortes
O livro de Tobias essencialmente narra três histórias entrelaçadas: a de um pai, a de um filho e a de uma jovem. Ele se passa após a destruição assíria do Reino do Norte de Israel e acompanha o relato de um israelita cativo em Nínive, chamado Tobit.
Tobit é descrito como um dos israelitas mais justos que já viveram em sua época, quase mantendo sozinho a fidelidade a Yahweh entre todos os cativos — e devemos acrescentar que ele era bastante humilde, tendo escrito essa descrição sobre si mesmo.
Segundo o livro, ele é descendente direto dos profetas e um exemplo perfeito de piedade. Em todos os aspectos, Tobit é elogiado tanto no livro quanto na tradição por sua dedicação incansável em ajudar seus compatriotas israelitas.
Quando ele e sua família celebravam uma festa, sua mente estava nos pobres e famintos, e ele ordenou a seu filho que encontrasse um deles e o trouxesse à mesa. Por causa de seu comportamento justo, ele — como José antes dele e Daniel depois — ascendeu temporariamente à proeminência na corte real.
No exercício de sua influência e de suas palavras, praticou “muitos atos de caridade para com meus parentes”. No entanto, seu ato mais famoso de piedade era sepultar seus compatriotas mortos sempre que eram assassinados e deixados nas ruas de Nínive.
Ironia do destino: foram esses atos piedosos que lhe trouxeram novos problemas, e ele acabou ficando cego.
Esse é o pano de fundo da história que culmina nas instruções que Tobit dá ao filho Tobias no capítulo 4 e na missão que lhe confia: recuperar um investimento em outra terra — algo que o próprio Tobit já não podia fazer por causa de sua cegueira.
O que se segue é uma aventura fantástica envolvendo o filho e um anjo disfarçado enviado por Deus para reparar injustiças do passado, incluindo a libertação de uma jovem que estava em cativeiro do diabo e prometida como esposa ao rapaz.
Por Que os Primeiros Cristãos Amavam o Livro de Tobias
Para os primeiros cristãos dos primeiros séculos, Tobias se tornou um dos livros mais populares do Antigo Testamento.
Por quê?
Resumidamente, o livro conta a história de:
-
um pai que envia seu único filho ao mundo para recuperar sua herança,
-
que salva sua noiva predestinada do cativeiro do diabo por meio do poder do sangue e do símbolo de um peixe,
-
e que, ao retornar ao pai com a esposa, testemunha o cego recuperar a visão e os anjos revelarem sua glória.
É difícil ver como tal história não pareceria apropriada a uma comunidade cujo símbolo secreto era um peixe — acróstico do nome do Salvador — que viera resgatar sua noiva, a Igreja?
Quando lemos a história de Tobias à luz do evangelho que Jesus pregava, e que seria consolidado em sua morte e ressurreição, compreendemos melhor por que Jesus se identificava tanto com o livro.
Em certo sentido, ele antecipava toda a história da redenção, chegando ao ponto de mostrar que a salvação, na hora final, só poderia ser alcançada pelo poder do sangue sacrificial.
A história de Tobias era a história dele.
A história de Tobias era, em parte, a história da cruz.
Que outro livro do Antigo Testamento — em qualquer edição — oferece de forma alegórica ou prefigurada todo o enredo da redenção antes mesmo que os primeiros cristãos começassem a discuti-lo?
Mas Jesus Vai Além: Ele Corrige Tobias
E, no entanto, por mais que a história de Tobias tenha em comum com o evangelho, a chave para compreender por que Jesus usou esse livro em seu sermão inaugural pode estar justamente onde Tobias fica aquém da visão de Jesus sobre o Reino de Deus.
Porque, embora Jesus cite o livro, ele não o faz literalmente.
Tobias pode ter sido sua história em certo sentido, mas, para Jesus, sua própria história precisava ir muito além da de Tobias.
Embora Tobit seja um modelo de virtude — arriscando sua vida, segurança e família para ajudar os necessitados — e apesar de ensinar ao filho a vestir os nus, alimentar os pobres e dar sem hesitar, todas essas instruções se dirigem apenas aos israelitas.
Ou seja: Tobit alimentava apenas os israelitas famintos, vestia apenas os nus que eram seus irmãos, ajudava os necessitados desde que tivessem a mesma linhagem de Abraão.
Certamente havia muitos pobres na capital assíria, Nínive — mais do que apenas israelitas. Mas Tobit só instruía o filho a ser generoso com os descendentes de Abraão.
É um detalhe pequeno, que muitos leitores ignoram.
Mas Jesus não ignorou — e, falando a uma multidão de judeus e gentios, não podia ignorar.
Como se estivesse corrigindo o livro, Jesus acrescenta ao sermão ensinamentos que Tobias jamais imaginou ensinar:
-
“Amem os seus inimigos”, proclamou o rabi galileu — possivelmente a primeira figura religiosa na história a ensinar isso de forma tão direta.
-
“Façam o bem aos que os odeiam.”
-
“Deem a quem lhes pedir.”
Jesus rompe com a limitação étnica e expande o amor ao próximo para todas as pessoas, inclusive opressores.
“Se vocês amarem aqueles que os amam, que mérito há nisso? Até os pecadores amam quem os ama.”
Ele não atingia apenas o ponto fraco de Tobias — mas o de todos nós.
Todos temos potencial para a hipocrisia.
Jesus Transforma o Que Lê — Inclusive um “Apócrifo”
Jesus recorreu ao livro de Tobias por muitos motivos, especialmente porque a história, em certo sentido, parecia profetizar sua missão redentora. Jesus claramente amava essa história, caso contrário não a teria usado tanto ao longo de seu ministério.
Contudo, como fazia com todas as histórias sagradas de Israel, ele não se contentava em repeti-las.
Ele desejava aprofundá-las, expandir seu alcance e, finalmente, transformá-las na boa-nova que conhecemos.
Compreender isso — especialmente nós, protestantes, que muitas vezes desconhecemos esse livro — ajuda-nos a apreciar melhor o que Jesus estava fazendo naquele sermão.
Assim como em seu primeiro sermão baseado em Isaías, no início do Evangelho de Lucas, Jesus chamou o povo de sua época a olhar além de si mesmos e enxergar a chegada do Reino de Deus.
A visão de Jesus era radical — e ainda é. Seu sermão na planície ressoa agora nas “planícies” de nossas próprias almas. Ele ainda convida você e eu a participarmos desse sonho transformador.
Na verdade, não é apenas um convite — é nossa comissão.
É nosso chamado sagrado, como corpo de Cristo, noiva destinada do Salvador, não apenas sonhar o sonho de Cristo, mas vivê-lo em missão.
E a única pergunta que permanece é:
Vamos?