Artigo 2 – O Contexto Linguístico e Semântico de Bene ha-Elohim em Gênesis 6:1-4

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Uma interpretação séria de Gênesis 6:1-4 começa necessariamente pela análise da expressão hebraica bene ha-Elohim, traduzida nas versões em português como “filhos de Deus”. Este é o ponto de partida para compreender se a narrativa descreve um evento simbólico, figurado ou literal envolvendo seres espirituais. O peso do testemunho linguístico, histórico e exegético aponta de forma consistente para uma interpretação literal — e este é um dos pilares da compreensão que defendemos.

1. A expressão no hebraico bíblico

No Antigo Testamento, a expressão bene ha-Elohim, especialmente com o artigo definido (ha), é usada de forma extremamente restrita. Em todos os casos, quando aparece, refere-se a seres espirituais pertencentes à corte celestial. Exemplos claros estão em Jó 1:6 e 2:1, onde os “filhos de Deus” se apresentam diante do Senhor, e em Jó 38:7, onde esses seres se regozijam na criação do mundo. Nenhum desses contextos permite entender que “filhos de Deus” seriam meros homens piedosos ou uma linhagem específica de humanos.

Essa consistência linguística é reforçada pela ausência de qualquer exemplo no Antigo Testamento em que bene ha-Elohim designe pessoas comuns, sacerdotes ou governantes humanos. Quando o texto quer falar de homens piedosos ou israelitas em geral, utiliza-se outras expressões, como benei Yisrael (“filhos de Israel”) ou tsaddiqim (“justos”).

2. A tradução da Septuaginta e o entendimento judaico antigo

A importância da Septuaginta (LXX) nesse debate não pode ser subestimada. Essa tradução do hebraico para o grego, realizada entre os séculos III e II a.C., foi feita por judeus que dominavam a língua original e viviam muito mais próximos culturalmente do contexto de Gênesis. Nela, bene ha-Elohim em Gênesis 6:2 é traduzido como angeloi tou Theou — “anjos de Deus”. Essa tradução direta indica que, para os judeus daquela época, não havia dúvida: o texto falava de anjos, não de homens.

Além da Septuaginta, encontramos o mesmo entendimento em escritos judaicos do período intertestamentário, como o Livro dos Jubileus e, de forma mais detalhada, no Livro de Enoque, que descreve a queda desses anjos e sua transgressão ao se unirem com mulheres humanas. Esses textos não são inspirados, mas mostram a tradição interpretativa do judaísmo antes e durante o tempo de Cristo.

3. Testemunho dos historiadores e filósofos judeus

Filon de Alexandria (c. 20 a.C. – 50 d.C.), um dos mais influentes filósofos judeus helenistas, no tratado De Gigantibus, afirma claramente que os “filhos de Deus” eram anjos que abandonaram sua natureza para se unirem a mulheres. Flávio Josefo (c. 37 – 100 d.C.), em Antiguidades Judaicas 1.3.1, repete essa mesma leitura, acrescentando que o resultado dessas uniões foi o surgimento de homens de grande estatura e força, os gigantes (nefilins).

Esses registros mostram que, mesmo fora do círculo estritamente religioso, a leitura literal de Gênesis 6 era dominante no pensamento judaico até pelo menos o século I.

4. O abandono da leitura literal

O afastamento dessa interpretação começou séculos mais tarde, em grande parte devido a uma reação teológica contra certas heresias gnósticas e interpretações que pareciam sexualizar de forma excessiva a narrativa bíblica. Alguns pais da igreja, como Agostinho, preferiram adotar a chamada visão setita, segundo a qual “filhos de Deus” seriam descendentes piedosos de Sete que teriam se casado com mulheres descendentes de Caim. Essa leitura, contudo, além de não ter base linguística, não explica satisfatoriamente a referência aos nefilins nem a gravidade única do pecado descrito no texto.

5. A conexão com o juízo do dilúvio

A narrativa de Gênesis 6 apresenta a união dos “filhos de Deus” com as “filhas dos homens” como um catalisador da corrupção moral e espiritual que culmina no dilúvio. A interpretação literal dá pleno sentido a essa relação: uma invasão de seres espirituais rebeldes na esfera humana, corrompendo não apenas a moralidade, mas também a ordem da criação. Reduzir o episódio a meros casamentos mistos entre piedosos e ímpios enfraquece o drama do texto e dilui a razão do juízo tão radical que se seguiu.

6. Conclusão

O peso das evidências linguísticas, históricas e contextuais confirma que bene ha-Elohim em Gênesis 6:1-4 se refere a seres espirituais, e que a passagem descreve um evento literal. Negar isso exige não apenas reinterpretar o hebraico, mas também ignorar o testemunho unânime do judaísmo antigo e da igreja primitiva. A interpretação literal preserva a coerência do texto e mantém viva a advertência contra a transgressão dos limites estabelecidos por Deus para as criaturas.

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Referências:

  • Jó 1:6; 2:1; 38:7

  • Septuaginta – Gênesis 6:2 (angeloi tou Theou)

  • Filon de Alexandria, De Gigantibus

  • Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 1.3.1

  • Vailatti, Carlos Augusto. Os Filhos de Deus e as Filhas dos Homens

  • Cabral, João Lucas Régis. Judas e a estranha carne dos anjos sodomitas

  • Guimarães, Filipe de Oliveira. Livro de Enoque: uma chave hermenêutica

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