Introdução: O Eco da Igreja Antiga
Sabe, meu filho, tem horas em que a memória vem sem pedir licença. Vem como o vento que entra pela janela, fria, inesperada, mexendo com tudo o que estava quieto. Às vezes fico aqui sentado na varanda e parece que escuto outra vez o som dos hinos eando na pequena igreja onde comecei. Chão de madeira, o cheiro de verniz misturado com perfume das irmãs, que vinham cedo para arrumar os bancos, e aquele velho piano desafinado, sempre um pouco atrasado com a melodia. Era simples, mas era sagrado. Era a casa de Deus. E eu acreditava nisso com todo coração.
Eu era só um rapaz quando senti o chamado. Tinha 19 anos e achava que o mundo inteiro podia ser salvo se eu falasse com firmeza e mostrasse o amor de Cristo. Naquele tempo, a fé era como o ar. Eu respirava sem perceber. Eu cresci dentro da igreja adventista. Meu pai já era diácono. Minha mãe vivia envolvida com o ministério feminino. E os sábados eram centro da nossa vida. A gente se preparava para eles como quem se prepara para o próprio céu. Roupas limpas, coração limpo, mesa posta na cesta ao pôr do sol. E quando o sábado chegava, o mundo parecia mais leve.
Lembro do primeiro sermão que preguei. As mãos tremiam e a voz saiu mais fina do que eu queria. Mas eu falei sobre fé, sobre obediência, sobre como Deus não abandona os seus. E quando terminei, uma senhora idosa veio até mim, pegou minha mão e disse: Deus falou por você hoje. Aquilo me atravessou. Eu saí dali acreditando que tinha encontrado o propósito da minha vida.
A Rotina Sagrada e o Início da Inquietação
Os anos passaram e a vocação virou rotina. Acordar cedo, estudar a lição da escola sabatina, visitar famílias, consolar enfermos, preparar sermões. A vida pastoral é feita de silêncio e esperança. Silêncio porque a gente carrega os segredos de muitos: confissões, lágrimas, pecados escondidos. Esperança, porque a gente acredita que uma alma salva já vale o sacrifício. E eu me doei inteiro, casei com a Lúcia, uma mulher de fé firme, coração dócil, e juntos criamos nossos três filhos no temor de Deus. Tudo que eu queria era ser um bom pastor e um bom pai.
Havia algo de bonito na simplicidade daquela vida. As manhãs no campo, as visitas a fiéis humildes, o café quente servido em xícaras de esmalte. Eu gostava de ouvir as histórias deles, gente que mesmo sem nada tinha certeza de que o céu os esperava. E cada vez que pregava, eu me sentia parte de algo maior. Não era vaidade, era um sentimento de propósito, como se através de mim Deus falasse com o mundo.
⚠️ O Tempo da Mudança e as Rachaduras no Templo
Mas o tempo, ah, o tempo tem o dom de nos mostrar o que não queremos ver. A igreja que eu tanto amava começou a mudar. Não sei dizer se foi a igreja ou se fui eu. Talvez as duas coisas. Os cultos ficaram mais rígidos, as reuniões mais políticas. Eu via irmãos brigando por cargos, disputando liderança como se estivessem num partido, não comunidade de fé. O que antes era comunhão começou a parecer estrutura. O que antes era oração começou a soar como discurso.
Eu tentava não ver. Dizia para mim mesmo que o ser humano é falho, mas Deus não. Só que havia algo diferente. As decisões vinham de cima e não se podia questionar. Pastores mais antigos eram afastados, outros promovidos sem explicação. Documentos internos circulavam entre os líderes, mas não chegavam até nós, os pastores de campo. Quando eu perguntava, diziam apenas: “Confie, irmão, a direção sabe o que faz.” E eu confiava. Era o que sempre me ensinaram a fazer.
Ainda assim, havia noites em que eu ficava acordado, olhando o teto, tentando entender porque minha alma andava inquieta. Lúcia dizia que era cansaço, que eu precisava descansar mais, mas não era o corpo, era outra coisa, um peso dentro do peito, como se eu tivesse esquecido alguma verdade importante. E quanto mais eu tentava calar, mais o silêncio doía.
Foi também nessa época que comecei a notar uma distância entre o que eu pregava e o que eu ouvia. Eu falava de amor, mas ouvi histórias de irmãos sendo excluídos por pequenas divergências doutrinárias. Falava de humildade, mas via líderes exibindo seus cargos como medalhas. Falava de esperança, mas por dentro me sentia cada vez mais vazio. O altar que antes me parecia um lugar de luz começou a parecer uma trincheira e eu não sabia mais de que lado eu estava.
Mas mesmo assim eu continuei. Eu acreditava que a fé se mede pela resistência, não pela dúvida. “O justo viverá pela fé”, dizia Paulo. E eu repetia para mim mesmo, só que quanto mais eu repetia, mais fraco o versículo soava. Era como se as palavras tivessem perdido a voz.
Lembro de um sábado específico. A igreja estava cheia, o coral afinado, o sol entrando pelas janelas. Era um dia bonito. E no meio do sermão, enquanto eu falava sobre a volta de Cristo, uma moça na primeira fileira começou a chorar. Não era choro de emoção, era desespero. Eu interrompi a mensagem, desci do púlpito e fui até ela. “Filha, o que aconteceu?”, perguntei. Ela respondeu entre soluços: “Pastor, eu não consigo mais acreditar em nada.” Aquelas palavras me cortaram. Ela estava dizendo o que eu mesmo sentia, mas não tinha coragem de confessar. Aquela moça foi embora naquele dia e eu nunca mais a vi, mas o eco da voz dela nunca mais saiu de mim.
A Busca Pela Pureza Perdida e o Preço do Silêncio
Depois disso, comecei a me questionar de verdade. Passei a reler os textos, estudar as origens das doutrinas, revisitar as histórias da formação da igreja. Às vezes ficava horas na sala pastoral, lendo até tarde, tentando encontrar onde a pureza se perdeu. E quanto mais eu lia, mais percebia que nem tudo era como nos contaram, que a fé institucionalizada tem suas sombras, que a verdade quando vira sistema, costuma machucar quem mais a ama.
Ninguém me preparou para isso. No seminário, nos ensinaram a defender a doutrina, não a duvidar dela, mas duvidar, meu filho, às vezes é o início da fé verdadeira. Só que eu ainda não sabia disso. Eu só sentia medo. Medo de estar traindo a Deus. Medo de perder tudo o que construí. Medo de ser o herege que preguei contra tantos anos.
E por medo eu calei. Mas o silêncio tem um preço. Quando você cala o que sabe, começa a mentir para si mesmo. E mentir para si mesmo é o primeiro passo para perder o chão. Eu continuava pregando, continuava visitando, continuava sorrindo. Mas dentro de mim havia um deserto. E no meio desse deserto, algo começou a se mover. Uma inquietação antiga, uma pergunta sem resposta. Por que alguns mandam calar quando o que está em jogo é a verdade?
Hoje, olhando para trás, eu percebo que aquele foi o início do fim, o ponto exato em que minha fé deixou de ser abrigo e começou a ser prisão. Mas eu ainda não sabia disso. Ainda achava que bastava orar mais, jejuar mais, servir mais. Eu me agarrei à rotina como quem segurava um galho no meio do rio. Só que o rio é forte, meu filho, e cedo ou tarde ele leva a gente para onde quer. Naquele tempo, a fé era tudo que eu tinha e talvez por isso eu não percebi o quanto ela já estava me faltando.
Elias: O Mensageiro da Inquietação
Foi num sábado de Março que ele apareceu. Lembro bem porque o calor estava insuportável e até os ventiladores do templo pareciam cansados. Eu tinha acabado de começar o sermão quando vi um homem parado perto da porta de pé, observando tudo em silêncio. Era alto, magro, vestia um terno simples, mas muito limpo. Tinha olhar atento, desses que parecem atravessar a gente. Quando o vi, senti um leve incômodo, sem saber porquê. Pensei que fosse apenas cansaço. Continuei pregando.
Depois do culto, ele se aproximou. Disse que se chamava Elias, que era visitante vindo de outra cidade, falava com calma, como quem mede cada palavra. Disse que viajava por várias congregações, estudando a história da Igreja Adventista e as profecias. Parecia saber mais do que a maioria dos membros. Me pediu para conversar um dia se eu tivesse tempo. Claro, respondi, as portas do gabinete pastoral estão sempre abertas. Ele sorriu de um jeito estranho, como se já soubesse que eu aceitaria.
Na terça-feira seguinte, ele apareceu. Eu estava preparando o sermão sobre fé e obediência quando bateram a porta. Era ele segurando uma Bíblia gasta e uma pasta de couro. Sentou-se com um cuidado quase ritual, colocou a pasta sobre a mesa e começou a falar. Não pediu permissão, não esperou pergunta, simplesmente começou.
Falou da origem da igreja, das primeiras pregações dos pioneiros. Nada que eu já não tivesse estudado até certo ponto. Só que ele foi além. Contou histórias que não estavam nos manuais, citou cartas antigas, episódios omitidos das biografias oficiais. Dizia que a instituição crescera sob disputas internas, que certas doutrinas haviam sido moldadas para proteger interesses, não apenas a fé. Eu quis interromper, mas ele falava com tanta convicção que não consegui. Havia algo nos olhos dele. Não era arrogância, era dor, como se carregasse o peso daquilo há muito tempo.
Quando finalmente parou, ficou me olhando em silêncio. Eu não sabia o que dizer. Disse apenas isso: “São acusações graves. Onde o senhor ouviu tudo isso?” Ele abriu a pasta, tirou algumas cópias amareladas e empurrou para mim. “Eram trechos de cartas, atas de reuniões, anotações de conferências antigas, tudo documentado”, respondeu. “A verdade nunca fica escondida para sempre.” Olhei aquelas páginas, mas o conteúdo era confuso, fragmentado. Mesmo assim, algo ali me perturbou. Eram nomes conhecidos, líderes respeitados, descritos em situações que contradiziam tudo que eu sempre pregara.
A conversa durou quase 2 horas. Quando ele foi embora, fiquei sentado olhando para a mesa. As folhas continuavam lá, espalhadas como feridas abertas. Eu queria rasgá-las, jogar fora, fingir que nada daquilo existia, mas não consegui. Peguei as cópias, dobrei e guardei na gaveta.
Nos dias seguintes, tentei seguir a rotina, cultos, visitas, reuniões, mas a presença daquele homem me perseguia. Parecia que eu o via em todo lugar, sentado no fundo do templo, caminhando na calçada, parado perto do portão. Não era que ele realmente estivesse lá. Talvez fosse apenas a lembrança dele. Só sei que ele não saía da minha cabeça. E pior, as palavras dele começaram a se misturar com as minhas. Quando subia ao púlpito, sentia medo de falar algo que já não acreditava totalmente. A voz dele ecoava dentro de mim: “Nem toda a fé nasce da verdade.”
O Conselhado Silêncio e a Lealdade Questionada
Numa noite, decidi reler as cópias. Havia citações sobre reformulações doutrinárias feitas por conveniência política, histórias de pastores afastados por discordar da liderança, manipulação de registros históricos. Eu não queria acreditar. Era como descobrir rachaduras na fundação da casa onde você viveu a vida inteira. Mas algo dentro de mim dizia que se aquilo fosse verdade, eu tinha o dever de saber mais.
Procurei um colega, o pastor Renato, que trabalhava na região vizinha. Era um homem prudente, estudioso, alguém em quem eu confiava. Levei as cópias e perguntei o que achava. Ele olhou com expressão grave e, antes mesmo de terminar a leitura, me disse baixinho: “Onde você conseguiu isso?” “Um visitante chamado Elias. Disse que são documentos antigos.” Renato respirou fundo e devolveu as folhas. “Queima isso, irmão, por sua paz.” “Por quê?” “Porque algumas perguntas não têm resposta e quem insiste nelas costuma perder tudo.”
Voltei para casa com o coração pesado. Aquele conselho, em vez de me acalmar, só me inquietou mais. Por que se não havia nada de errado, tanto medo? Porque o silêncio parecia a regra? A partir daí, comecei a reparar nas entrelinhas das conversas dentro da liderança. Notava quando alguém mudava de assunto, quando um olhar se desviava. Uma vez, durante uma reunião administrativa, um dos dirigentes mencionou assuntos antigos que não devem ser reabertos. Disse isso de forma casual, mas o tom foi firme e ninguém questionou. Ninguém jamais questionava.
Numa quarta-feira à noite, o homem voltou. Eu não esperava. Apareceu no portão da casa pastoral com o mesmo terno, a mesma calma. “Posso entrar?”, perguntou. Assenti. Dessa vez ele não trouxe documentos. Falou de outra coisa, do custo da verdade. Disse que já tinha sido pastor também, mas que foi afastado depois de fazer perguntas demais. “Eles não suportam quem procura”, disse. “Querem quem repete.” Eu fiquei em silêncio. Eu não sabia se eu devia acreditar nele. Talvez fosse apenas um homem amargurado, alguém que se perdeu no caminho, mas havia algo sincero na voz dele. Uma tristeza profunda, quase resignada. Antes de sair, ele me olhou e disse: “A fé que teme perguntas não é fé, é medo”. Depois virou as costas e foi embora. E mais uma vez desapareceu da minha vida, pelo menos por um tempo.
Os dias seguintes foram de confusão. Tentei orar, pedir discernimento, buscar respostas nas escrituras, mas a sensação de desconforto não passava. Eu li as palavras de Jesus sobre a verdade libertar e pensava: “E se a verdade não libertar e sim destruir o que resta de nós?” Havia uma frase que eu repetia nos sermões: “A fé é certeza do que não se vê”. Mas naquele momento a fé parecia a certeza do que eu não devia ver.
Numa tarde fui até a sede da associação em busca de algum registro que confirmasse ou desmentisse o que Elias dissera. Pedi para consultar arquivos antigos, atas, cartas. O secretário sorriu com gentileza e disse que não era possível, que apenas líderes autorizados podiam acessar aquele material. Perguntei o motivo e ele respondeu num tom leve demais para ser inocente: “Porque nem tudo precisa ser revisitado, pastor.” Saí de lá com a sensação de que alguma porta tinha se fechado para sempre.
A partir daquele dia, comecei a perceber mudanças sutis. Fui excluído de algumas reuniões de liderança, convites foram cancelados. Colegas passaram a me cumprimentar com certa distância. Nada explícito, mas perceptível. Era como se algo tivesse mudado na forma como me viam. E eu não sabia se era impressão ou se já haviam me marcado como alguém inquieto.
Voltei a encontrar Elias uma última vez. Semanas depois. Ele estava sentado num banco da praça lendo. Parecia tranquilo, quase em paz. Me sentei ao lado dele e perguntei o que esperava conseguir com tudo aquilo. “Nada. Só não quero morrer mentindo.” “E o que eu devo fazer com o que sei?”, perguntei. Ele sorriu, olhou para o horizonte e disse: “Descubra até onde sua fé aguenta a verdade.” Essa foi a última vez que o vi. Poucos dias depois me disseram que ele tinha ido embora. Ninguém sabia para onde.
O Despertar da Consciência
Durante muito tempo, eu tentei esquecer aquele homem, mas é impossível apagar o que desperta a consciência. A fé quando começa a rachar não faz barulho. Ela só muda de forma lentamente. Às vezes você ainda canta os mesmos hinos, repete as mesmas orações, mas não sente mais o mesmo. E sem perceber, passa a viver entre dois mundos, o que você acredita e o que você teme descobrir.
Foi assim que tudo começou, com um estranho parado à porta da minha igreja num sábado de calor. Durante muito tempo, tentei me convencer de que o que Elias dissera não passava de exagero, que ele devia ter se perdido na amargura, como tantos que se afastam da igreja e acabam enxergando conspiração onde há apenas falha humana. Mas o problema é que depois que uma semente de dúvida se planta, ela começa a crescer mesmo quando a gente tenta ignorar.
O primeiro sinal não foi grandioso, foi uma reunião dessas rotineiras administrativas, onde se fala de finanças, eventos e relatórios. O presidente da associação estava presente, um homem respeitado, eloquente, conhecido por seu zelo. Durante a discussão, um dos pastores mencionou a necessidade de maior transparência nos relatórios de dízimos. O presidente interrompeu, sorriu e disse apenas: “Há assuntos que só interessam a quem tem o dever de saber”. A sala ficou em silêncio. Ninguém ousou continuar o tema. Parecia uma frase comum, mas ela ficou martelando em mim: assuntos que só interessam a quem tem o dever de saber. Por que esconder o que deveria ser exemplo?
Depois disso, comecei a notar pequenas coisas, cartas que chegavam à igreja com o selo da associação e que, ao serem abertas, contiam apenas instruções curtas, sem explicação. Evitar comentar certas doutrinas em público, limitar acesso aos materiais de formação antiga, reforçar o compromisso com a liderança central. Eram ordens, não orientações. Eu lia, arquivava e obedecia, ao menos por fora, mas por dentro algo começava a se desgastar.
Uma tarde fui visitar um irmão idoso, o senhor Ernesto. Era um dos membros mais antigos da congregação. Vivia só numa casinha simples. Quando entrei, ele me mostrou um baú cheio de livros antigos da igreja, volumes de estudo, publicações do século passado. “Esses aqui não se encontram mais”, disse com orgulho. Peguei um ao acaso, o papel já amarelado, a capa quase se desfazendo. O título falava sobre a pureza doutrinária da igreja primitiva. Comecei a ler e percebi que algumas ideias ali eram bem diferentes das que ensinávamos atualmente. Certas interpretações haviam sido suavizadas, outras completamente alteradas. Perguntei a Ernesto se ele sabia disso. Ele sorriu e disse: “Sei, pastor, por isso guardo esses livros. A verdade muda de roupa, mas continua sendo a mesma”. Fiquei em silêncio.
Quando voltei para casa, levei aquele livro comigo com a promessa de devolvê-lo depois. Li durante a madrugada e pela primeira vez senti algo parecido com vergonha. Eu me perguntava em que momento as palavras de fé se transformaram em regulamento. E o pior, percebi que eu mesmo ajudava a manter esse sistema, repetindo frases prontas, defendendo ideias que já não compreendia por completo.
A mudança começou a se refletir também na forma como me olhavam. Alguns irmãos mais próximos começaram a me evitar. Outros pareciam atentos demais ao que eu dizia nos sermões, como se buscassem algum deslize. Um dia, uma irmã veio me alertar em voz baixa após o culto. “Pastor, o senhor devia tomar cuidado com o que fala.” “Por quê?”, perguntei. Ela olhou ao redor, nervosa, “porque tem gente anotando tudo.” Não acreditei de imediato, mas depois notei que, de fato, havia um homem novo frequentando os cultos. Sentava sempre no fundo com o caderno no colo. Nunca se apresentava, nunca participava. Um dia, ao final da reunião, fui cumprimentá-lo. Ele apenas sorriu, apertou minha mão e disse: “Estou só de passagem.” Nunca mais o vi.
Essas pequenas coisas somadas foram minando a paz que me restava. Eu ainda pregava, ainda visitava, mas já não sentia aquele fervor. Minha esposa começou a notar. “Você anda distante”, disse ela uma noite enquanto jantávamos. “Só cansado”, respondi. Mas era mais que cansaço. Era como se eu estivesse vivendo duas vidas, a do pastor obediente e a do homem que começava a enxergar rachaduras naquilo em que acreditava.
Um episódio me marcou de forma especial. Foi numa assembleia regional. O tema era renovação e unidade. Parecia algo positivo até que o discurso começou. O orador principal falava sobre a necessidade de eliminar vozes dissonantes, de preservar a pureza do corpo e impedir que ideias estranhas contaminem o rebanho. O auditório aplaudiu de pé. Eu fiquei sentado com as mãos sobre o colo. Aquilo me pareceu errado. Quando foi que a fé virou um exército?
Mais tarde, um colega se aproximou e sussurrou: “Não gostei do seu silêncio. Eu estava ouvindo, você deveria ter aplaudido. É bom mostrar lealdade.” Essa palavra lealdade começou a me perseguir. Falar em lealdade a Deus, tudo bem, mas lealdade a homens, a instituições, a comandos humanos. A fronteira entre fé e obediência cega estava ficando perigosa.
Em meio a isso, minhas pregações começaram a mudar, não por rebeldia, mas por necessidade. Comecei a falar mais sobre consciência, sobre misericórdia, sobre o valor da dúvida. Citava trechos de Jó, de Eclesiastes, de Paulo. Dizia que a fé verdadeira não teme o questionamento, porque a verdade não se abala com perguntas. Alguns se emocionavam, outros não gostaram. Recebi recados discretos: “A liderança está observando. Alguns acham que o Senhor está se desviando.”
Um sábado, ao final do culto, o presidente local pediu para falar comigo. Nos sentamos na sala pastoral. Ele começou com um sorriso educado, mas os olhos eram duros. “Pastor, recebemos alguns comentários sobre suas últimas mensagens.” “Comentários?” “Sim. Há quem diga que o Senhor anda promovendo ideias perigosas, questionando a autoridade da igreja.” “Eu só tenho falado sobre a importância da consciência individual. E isso é perigoso. Por quê?” “Porque a fé precisa de unidade, não de opiniões pessoais.” Eu respirei fundo, “Mas Cristo também questionou os líderes do templo quando percebeu que o espírito da lei estava sendo trocado pela letra.” Ele me olhou longamente, depois disse: “Tenha cuidado, irmão. O zelo excessivo pode se parecer com rebeldia.” Foi a primeira vez que percebi que não estávamos mais do mesmo lado.
Nos dias que se seguiram, comecei a ser chamado para menos atividades. Fui substituído em reuniões. Meus sermões passaram a ser revisados antes dos cultos. Lúcia notou e perguntou o que estava acontecendo. Eu disse que eram apenas ajustes, mas dentro de mim sabia. Havia começado um afastamento sutil, um isolamento silencioso. Mas mesmo assim, uma parte de mim ainda queria acreditar, queria pensar que tudo aquilo era apenas uma fase, que o sistema se corrigiria, que a verdade venceria, mas no fundo eu já não conseguia tapar o sol com as mãos. As palavras de Elias, as atitudes dos líderes, os olhares dos colegas, tudo apontava para algo que eu não queria admitir. Havia um jogo acontecendo e a fé era a moeda.
Numa noite, sentei sozinho no templo vazio, as luzes apagadas, só o som distante do vento. Abri a Bíblia ao acaso, caiu em Jeremias: “Os pastores se tornaram insensatos e não buscaram o Senhor, por isso não prosperaram.” Li e fechei o livro vagarosamente. Pela primeira vez senti medo não do inferno, nem da perdição, mas do que acontece quando a fé vira instrumento de poder. A partir daquele dia, algo dentro de mim quebrou de modo quase imperceptível, como um vidro trincando. Eu ainda era o pastor da igreja, mas já não sabia de que igreja falava. E foi assim que os primeiros sinais surgiram, pequenos, disfarçados, cotidianos. Ninguém percebeu, talvez nem eu de todo. Mas ali, entre relatórios, reuniões e sermões revisados, o que não devia existir começou a tomar forma.
O Luto da Fé Institucional
A verdade quando começa a se revelar, raramente chega de uma vez. Ela vem em pedaços, como folhas arrancadas de um diário antigo, nunca na ordem certa, nunca de forma limpa. O que me aconteceu depois foi exatamente isso, uma soma de fragmentos, de acasos, de curiosidades que eu deveria ter ignorado, mas não consegui.
Tudo começou quando o Senhor Ernesto morreu. A notícia me pegou de surpresa. Ele já era idoso, vivia só e o corpo foi encontrado por um vizinho. Fui chamado para conduzir o culto fúnebre. A casa cheirava mofo e a lembrança. Aquele mesmo baú que eu vira meses antes estava no canto fechado. A filha dele, que morava em outra cidade, me disse que eu podia pegar o que achasse útil antes que tudo fosse levado. Eu hesitei, mas acabei abrindo o baú.
Lá dentro estavam os livros antigos, os mesmos que ele me mostrara, mas havia algo novo, um envelope grosso, amarelado, amarrado com barbante. Não tinha nome nem data, só uma palavra escrita à mão: arquivos. Não sei explicar por que levei aquele envelope comigo. Talvez por respeito, talvez por curiosidade, talvez porque lá no fundo eu já soubesse o que ia encontrar.
Abri só no dia seguinte, no gabinete pastoral, depois que todos foram embora. Dentro havia cópias de cartas, atas de reuniões de décadas atrás e entre elas uma pasta com o selo da associação. O papel estava velho, mas a tinta ainda legível. O título dizia: Doutrina Comitê Interno. Comecei a ler e o mundo ao meu redor pareceu diminuir.
As páginas relatavam discussões internas sobre mudanças em textos oficiais, reinterpretações de profecias e decisões de suprimir certas passagens que poderiam gerar confusão teológica entre os fiéis. Não era nada diretamente escandaloso. Não havia ali crimes ou escândalos explícitos, mas havia manipulação, cálculo, controle da narrativa. Documentos que mostravam como a liderança decidira conscientemente o que seria revelação e o que seria esquecido.
O mais perturbador era o tom das anotações. Não havia maldade aberta, apenas frieza, como se estivessem tratando de números, não de fé. Expressões como ajustar a retórica, proteger a imagem institucional, uniformizar a mensagem, apareciam repetidas vezes. Era ali diante de mim o registro de algo que eu sempre suspeitara, mas nunca quis admitir. A verdade teológica também pode ser editada.
Fiquei olhando para aquelas folhas por horas. Um misto de raiva e tristeza me invadiu. Eu lembrava dos anos em que defendi cada vírgula dos textos oficiais, das vezes em que repreendi jovens que ousaram fazer perguntas, das noites em que chorei por achar que minhas dúvidas eram pecado. E agora percebia que em algum nível tudo aquilo fora administrado, moldado para caber num formato, numa versão conveniente da fé.
Lembro de ter fechado as janelas e trancado a porta. Senti medo. Medo de que alguém soubesse que eu estava lendo aquilo. Medo de mim mesmo, do que faria com aquilo. Peguei o envelope e escondi em casa entre livros antigos na estante do escritório. Disse para a Lúcia que eram anotações de sermões. Ela acreditou, talvez porque já não queria mais perguntas.
Nos dias seguintes, eu quase não dormi. Lia e relia aquelas páginas, tentando encontrar um sentido mais nobre, algo que justificasse. Dizia a mim mesmo que talvez fosse apenas uma tentativa de unificar o ensino, de evitar divisões, mas as palavras não mentiam. As decisões haviam sido friamente calculadas e o mais terrível era perceber como tudo se encaixava: os silêncios, as reações, as proibições de leitura, tudo fazia sentido. Agora, não era coincidência, era estrutura.
Uma manhã fui até a sede da associação com uma desculpa qualquer. Pedi para consultar arquivos históricos, disfarçando curiosidade inocente. O funcionário me conduziu até uma sala de armazenamento. Prateleiras altas, cheiro de papel antigo. Havia caixas identificadas por ano e assunto. Enquanto ele se afastava para buscar uma chave, eu abri uma das caixas. Dentro mais documentos, relatórios, correspondências, atas, alguns com um carimbo de uso restrito. Um deles me chamou a atenção, uma carta de 1974, assinada por um presidente da época, dirigida a todos os pastores distritais. A carta falava sobre crises internas de confiança e instruía os líderes a reforçar a narrativa da pureza doutrinária. Reforçar a narrativa. Aquela expressão me gelou. Era como se a fé tivesse se tornado um roteiro.
Quando o funcionário voltou, fechei a caixa de pressa, agradeci, fingi que não encontrara nada e saí. Mas naquele momento soube que não havia mais volta. A partir dali, eu carregava algo que não poderia ser esquecido nem confessado.
Naquela noite, sentei com a Bíblia aberta diante de mim. Fiquei olhando para as páginas, mas as palavras pareciam mortas. Senti um nó na garganta. Como continuar pregando sobre verdade se eu já sabia que parte dela havia sido fabricada? Lembrei do rosto dos meus fiéis, gente simples, que confiava em mim, que acreditava que a igreja era reflexo puro do divino. Lembrei das orações, dos hinos, das lágrimas. Eles não mereciam saber. Mas e se eu contasse? O que aconteceria? Eu não sabia se revelar aquilo seria libertar ou destruir.
No domingo, chamei o pastor Renato. Precisava dividir o peso com alguém. Contei com cuidado o que tinha encontrado. Ele ouviu em silêncio, sem me interromper. Quando terminei, só disse: “Você devia ter parado quando te avisei.” “Eu precisava saber.” “E agora que sabe o que vai fazer?” Fiquei sem resposta. Ele se levantou, caminhou para a janela e falou baixo: “A verdade é perigosa, irmão. Não porque seja mentira, mas porque ninguém quer lidar com ela. A instituição não é Deus, mas muitos confundem as duas coisas.” Olhou para mim e completou: “Cuidado, eles não gostam de quem mexe nas gavetas.”
Aquela conversa me acompanhou por semanas. Fiquei dividido entre o dever de proteger a igreja e o dever de ser honesto, mas aos poucos percebi que o que eu chamava de proteção, na verdade era cumplicidade. E essa percepção me corroeu.
As coisas começaram a se mover ao meu redor de maneira sutil, mas clara. Telefonemas interrompidos, reuniões das quais deixei de ser convidado, olhares frios de colegas. Um dia encontrei uma carta anônima deixada sob a porta do templo. Tinha apenas uma frase: “Quem procura demais acaba encontrando o que deveria deixar quieto.” Aquilo me assustou. Mostrei para a Lúcia, mas não contei o motivo. Disse que era trote, coisa sem importância. Ela insistiu para que eu deixasse tudo para lá, que pensasse em nós, nos filhos, na casa. Eu tentei, mas como esquecer o que já se sabe?
Certo fim de tarde, voltei ao templo vazio. Fiquei andando entre os bancos, tocando a madeira gasta, lembrando dos rostos que já se ajoelharam ali. Aquele lugar que sempre fora sagrado, agora me parecia cheio de ecos. Era o mesmo espaço, mas eu já não era o mesmo homem. Sentei no púlpito e chorei, não por raiva, nem por desespero, mas por luto. Luto de quem perde algo que acreditava ser eterno. Eu tinha descoberto o segredo e ele não era um crime, nem um milagre. Era mais simples e mais terrível. A fé, quando institucionalizada, pode se tornar uma ferramenta. Eu, por anos, fui parte dessa engrenagem.
Naquela noite escrevi no meu diário: “A verdade não me libertou. Ela apenas me deixou sem chão.”
O Desvanecer do Pastor
Depois que descobri aqueles documentos, tudo mudou, mas por fora nada parecia diferente. Continuava subindo ao púlpito, abrindo a Bíblia, cumprimentando os irmãos com o mesmo sorriso ensaiado. Só eu sabia que aquele homem de terno e gravata era uma sombra do pastor que um dia fui.
No começo, achei que conseguiria suportar em silêncio. Disse a mim mesmo que a verdade não precisava ser dita para todos, que talvez Deus tivesse me mostrado aquilo apenas para aprovar minha fé. Mas o silêncio é traiçoeiro. Quanto mais você tenta calá-lo, mais ele fala. Não eram vozes, exatamente, eram pensamentos insistentes, repetitivos, quase sussurros na mente. Eu acordava de madrugada e ouvia a minha consciência me perguntando: “E agora? O que vai fazer com o que sabe?” Era uma pergunta simples, mas impossível de responder.
As semanas viraram meses. Cada culto se tornava mais difícil. Eu lia as passagens, mas as palavras pareciam vazias, como se tivessem perdido o brilho. Antes, quando falava de fé, sentia algo vivo dentro de mim. Agora só sentia eco. Os fiéis ainda vinham pedir oração, conselho, bênção, e eu os atendia, mas por dentro me perguntava se eu não estava mentindo a todos eles.
Comecei a perceber que quanto mais eu tentava esconder minha dúvida, mais ela se espalhava pelo meu corpo como febre. Lúcia notou primeiro. Dizia que eu estava distante, que falava pouco, que comia sem gosto. Às vezes me via sentado por horas, olhando nada. Eu dizia que era cansaço, que eram os anos pesando, mas a verdade é que eu já não sabia quem era. Fui pastor durante tanto tempo que quando a fé começou a se desfazer, senti como se minha identidade também se desmanchasse junto. Quem eu era senão o pastor? Senão o homem que acreditava de todo coração.
Uma tarde, precisei fazer o culto fúnebre de uma mulher da comunidade. Era uma senhora simples, Dona Lourdes, que nunca faltava aos sábados. Quando cheguei à casa, vi o neto dela chorando ao lado do caixão e, por um instante, senti inveja da pureza daquele choro. Ele chorava porque amava, porque perdia alguém. Eu não. Eu chorava por dentro por ter perdido a mim mesmo.
Durante a pregação, minha voz tremia. Falei sobre a esperança da ressurreição, mas minhas palavras me pareciam falsas. Quando terminei, alguns irmãos me abraçaram e disseram que sentiam a unção de Deus na minha voz. Aquilo me destruiu, porque se até minha dor soava espiritual, então nada mais era confiável.
Comecei a evitar o espelho. Tinha medo do olhar que me devolvia. À noite demorava a dormir. Sonhava com páginas rasgadas, com vozes repetindo trechos dos documentos que eu lera. Às vezes acordava suando, sentindo como se tivesse pregado um sermão inteiro, sem lembrar uma só palavra. Eu não estava ficando louco, mas estava ficando vazio.
Foi nessa época que decidi procurar Renato outra vez. Fui à casa dele numa tarde chuvosa. Ele me recebeu com aquele mesmo olhar cauteloso. “Eu te disse para esquecer”, falou antes mesmo que eu explicasse. “Eu tentei.” Ele suspirou, serviu o café e me olhou firme. “Então você está descobrindo o que significa carregar a verdade.” “Mas que tipo de verdade é essa, Renato? Uma que destrói o que a gente é?” “Talvez toda a verdade faça isso. Talvez a fé só exista porque a gente escolhe não olhar para certas coisas.” “Isso é covardia.” “É sobrevivência.” Saí de lá pior do que cheguei. Não por culpa dele, mas porque percebi que não havia saída limpa. A verdade não tinha cura. Era como uma ferida que se coberta infeccionava e se exposta sangrava demais.
Comecei a notar olhares estranhos entre os membros da igreja. Não sei se era paranoia ou se realmente falavam de mim. Um irmão comentou que eu parecia cansado demais. Outro perguntou se eu estava enfrentando provações espirituais. Em parte eles tinham razão. Eu estava em provação, não do diabo, mas da consciência. Num sábado, terminei o culto e fiquei sozinho no templo. O sol atravessava os vitrais, colorindo o chão com manchas de luz. Olhei para aquele espaço e percebi algo cruel. Às vezes, até eu mesmo gostava de ser enganado por minha fé.
Na semana seguinte, recebi uma carta da associação, um comunicado seco, dizendo que eu seria temporariamente afastado de funções administrativas para repouso e renovação espiritual. Não era punição formal, mas o recado era claro. Estavam me tirando de circulação. Renato me ligou e disse apenas: “Eles sabem que você sabe.” Fiquei em silêncio. Ele completou: “Cuide alma antes que eles cuidem dela por você”.
A partir dali, tudo foi ficando mais lento. Passei a maior parte dos dias em casa, lendo os mesmos textos, tentando rezar, tentando reencontrar Deus no meio dos destroços. Mas o Deus que eu conhecia parecia distante, ou talvez fosse eu que tivesse me afastado demais, não por revolta, mas por cansaço. Algumas noites me sentava na varanda sozinho, ouvindo o vento nas árvores. Pensava no passado, nos batismos, nos cânticos, nos rostos confiantes das pessoas. Tudo isso ainda era bonito para mim, mas agora tinha um gosto amargo. Eu amava a fé, mas já não acreditava na forma como ela era servida. Foi nesse ponto que percebi uma coisa dolorosa. Às vezes a verdade não liberta, ela isola. E o isolamento é uma forma lenta de morte, porque a mente quando não tem mais onde repousar começa a falar sozinha.
Quando me afastaram oficialmente, não houve escândalo nem expulsão, apenas silêncio. E de todos os castigos possíveis, esse foi o mais cruel. O silêncio da comunidade, dos colegas, até de Deus. Mas passado o primeiro choque, percebi que talvez aquilo fosse uma bênção disfarçada. Pela primeira vez em 40 anos, eu não tinha um sermão para preparar, nem um culto para dirigir. Só o tempo. E o tempo, quando a gente finalmente o escuta, é um professor paciente.
A Redescoberta da Fé Simples (O Rio e a Pipa)
Nos primeiros dias, senti um vazio enorme. Acordava no horário de sempre, vestia a roupa de costume e só então lembrava que não tinha para onde ir. O corpo ainda era o mesmo, mas o propósito não. Lúcia tentava preencher meus dias, dizia para eu descansar, para cuidar do jardim, para escrever minhas lembranças. Eu sorria, mas dentro de mim havia um ruído, aquele medo de não servir mais para nada, porque no fundo ser pastor sempre me deu um lugar no mundo. Sem isso, eu era só um velho com memórias demais.
Aos poucos comecei a sair de casa nas manhãs de domingo, andando sem destino. Andava pelas ruas do bairro, pelas praças, pelos caminhos de terra que levavam à beira do rio. E foi ali, na beira daquele rio, que algo começou a mudar. O som da água, o vento batendo nas árvores, o cheiro da terra molhada, tudo parecia falar uma língua que eu tinha esquecido, uma língua mais antiga que os livros, mais sincera que os sermões. Sentei num banco de madeira e fiquei olhando o movimento das folhas. Pela primeira vez em meses senti um tipo de paz que não vinha de palavras.
Comecei a voltar ali com frequência. Levava um caderno, às vezes a Bíblia, às vezes nada, só ficava. Um dia, um menino passou correndo com uma pipa na mão e gritou pro amigo: “Olha, ela tá subindo”. E eu fiquei observando aquela pipa colorida, dançando no céu, sustentada por um fio quase invisível. Foi aí que percebi, talvez a fé fosse isso, algo leve que só existe enquanto a gente segura com cuidado. Se puxa demais, rasga. Se solta completamente, cai.
Passei a escrever pensamentos soltos nesse caderno. Não eram sermões nem orações, apenas reflexões. Coisas como: “Talvez Deus esteja mais no gesto do que no dogma”. Talvez a verdade não precise ser dita em voz alta para existir. Talvez a fé seja só o continuar, mesmo sem entender. No começo escrevia com raiva, depois com ternura e, por fim, com gratidão.
Certo dia, encontrei o irmão João, um antigo membro da igreja. Ele se aproximou devagar, meio sem saber se podia me cumprimentar. Conversamos sobre o tempo ou sobre a saúde, até que ele disse: “Sinto falta dos seus sermões.” Eu sorri: “E eu sinto falta de acreditar em todos eles.” Ele ficou sem graça, mas não se afastou. “O senhor ainda tem fé?”, perguntou. Pensei um pouco antes de responder: “Tenho, mas ela mudou de endereço.”
Aquela frase me acompanhou depois. Minha fé tinha mudado de endereço. Antes morava no altar, nas liturgias, nos textos decorados. Agora morava nas pequenas coisas, no cheiro do café, no barulho da chuva, nas histórias que eu contava pros meus netos antes de dormir. Talvez sempre tenha sido ali o verdadeiro templo e eu é que não via. Passei a cuidar do jardim com mais carinho. Plantava e podava, como quem reza. Cada muda nova era uma lembrança que eu queria manter viva.
Lúcia dizia que eu estava diferente, mas sereno. Eu não sabia explicar, mas sentia que algo dentro de mim estava se reconstruindo, não igual, não melhor, mas apenas mais simples. Comecei também a visitar pessoas doentes da comunidade, mas sem levar a Bíblia. Ia só para ouvir, para estar presente e descobri que às vezes estar é o maior gesto de fé que existe.
Uma dessas visitas me marcou profundamente. Uma senhora viúva, quase cega, que vivia sozinha. Quando me despedi, ela segurou minha mão e disse: “O Senhor ainda tem o brilho de quem acredita. Mesmo sem igreja, o senhor ainda é pastor.” Fiquei sem resposta. Voltei para casa chorando. Talvez fosse isso que eu precisava ouvir, que a fé não é função, é presença.
Nas noites mais calmas, eu e Lúcia sentávamos na varanda e olhávamos o céu. Ela me perguntava se eu sentia falta dos cultos e eu dizia que sim, mas de outro jeito. Sentia a falta do canto das pessoas, da comunhão, do sentido de pertencer, mas não sentia a falta da estrutura. Aprendi que é possível amar a fé sem precisar amar a instituição e que é possível falar com Deus sem precisar de um microfone.
Um dia meu neto mais novo me perguntou: “Vovô, o senhor ainda acredita em Deus?” Olhei para ele e pensei em tudo. Nas noites de dúvida, nos documentos, nas lágrimas, nas caminhadas à beira do rio. “Acredito”, respondi, “só não do mesmo jeito de antes.” “E Deus mudou?” Ele insistiu. “Não, meu filho. Eu é que precisei mudar para continuar acreditando.” Aquela conversa ficou gravada em mim. Percebi que a fé quando envelhece não desaparece, amadurece, fica menos barulhenta, mais humilde. Antes eu queria provar Deus, agora só quero senti-lo. E talvez essa seja a diferença entre pregar e viver.
Renato ainda me visitava às vezes. Continuava pastor, mas com um olhar mais cansado. Um dia, ao ver meu caderno de anotações, disse: “Você ainda está pregando? Só que para si mesmo?” “Talvez seja o único público que ainda acredita em mim”, respondi rindo. Ele sorriu e, pela primeira vez em muito tempo, o riso não foi pesado.
Com o passar dos meses, percebi que o medo havia diminuído. O segredo que tanto me atormentava, agora parecia distante, quase irrelevante, não porque tivesse perdido importância, mas porque eu aprendi a conviver com ele. A verdade, afinal, não precisa destruir. Às vezes só quer ser aceita. E foi assim que descobri uma nova forma de fé. Não aquela que se grita, mas a que se sussurra. A fé que resta quando a outra acaba. A fé que nasce das ruínas, mas floresce mesmo assim.
O Reencontro com o Passado e o Perdão
Hoje, quando caminho à beira do rio, sinto que Deus ainda está ali, não como uma voz, nem como um mandamento, mas como presença, uma presença silenciosa, constante, quase invisível, como o vento que move as folhas, como o fio que segura a pipa no alto. E se me perguntarem o que restou de tudo, direi que restou amor. E isso para mim é o bastante.
Com o tempo, aprendi que a vida não nos dá respostas, ela nos dá voltas. E foi numa dessas voltas que comecei a reencontrar os rostos que o tempo havia deixado para trás. Não foi planejado, aconteceu aos poucos, como quem esbarra no próprio passado e decide, enfim, não desviar os olhos.
Certo dia, encontrei o irmão Paulo no mercado. Ele havia sido um dos mais críticos quando fui afastado. Lembro que na época mal me cumprimentava, mas ali entre prateleiras de arroz e feijão, ele veio até mim com um sorriso tímido. “Pastor”, disse e hesitou antes de continuar, “ou melhor, irmão, eu devia ter te procurado antes. Não soube o que responder. Ele baixou o olhar, respirou fundo. “A gente acreditou em muita coisa. Hoje não sei mais o que é certo.” Coloquei a mão no ombro dele e disse: “O certo muda, Paulo, mas a bondade nunca muda.” Ele assentiu emocionado. E naquele instante percebi que o perdão às vezes não precisa ser dito, basta estar disposto a ouvir.
Depois desse encontro, comecei a sair mais, não para pregar, mas para visitar. Visitei amigos antigos, irmãos que há anos não via. Alguns estavam doentes, outros haviam deixado a igreja, outros continuavam firmes. Em cada conversa percebia o mesmo. Todos carregavam suas dúvidas, mas fingiam não tê-las. E eu, que passei a vida tentando ser exemplo, finalmente me permiti ser humano. Ouvi histórias, confissões, arrependimentos e em cada uma delas via um pedaço de mim.
Renato foi um dos últimos que visitei. Ele já estava aposentado, morando num sítio simples, cercado de árvores e silêncio. Sentamos à varanda como tantas vezes no passado. “Lembra quando eu disse que a verdade era perigosa?”, perguntou. “Lembro.” “Eu estava errado.” Olhei para ele surpreso. “A verdade só é perigosa quando a gente tenta controlá-la. Quando a deixamos viver, ela só muda de forma.” Sorri. “Então você também mudou?” “Todos mudamos”, respondeu. “A diferença é que alguns têm coragem de admitir.” Ficamos em silêncio depois disso, observando o entardecer. O céu alaranjado refletia nas folhas e, por um momento, senti que a vida inteira havia sido uma longa tentativa de entender o que talvez nunca fosse para ser entendido. E tudo bem.
️ O Culto de Despedida e a Nova Crença
Alguns meses depois, recebi um convite inesperado. Pediam que eu voltasse à igreja, não como pastor, mas como convidado para um culto especial de agradecimento pelos anos de serviço. Lúcia me encorajou a aceitar. “Vai fazer bem para você”, disse ela. “Não para eles, para você.” Pensei muito antes de responder. Parte de mim queria recusar, não por orgulho, mas por medo de reabrir feridas. Mas outra parte, a mais cansada e sábia, sabia que só há cura quando a gente volta ao lugar onde se feriu.
No dia marcado, vesti o mesmo terno antigo. As costuras já estavam gastas, mas o tecido ainda guardava o cheiro dos velhos cultos. Quando entrei no templo, senti um nó na garganta. Tudo parecia igual, os bancos de madeira, o púlpito, o piano no canto, mas as pessoas estavam diferentes. Ou talvez fosse eu quem estivesse. Muitos vieram me abraçar, alguns choraram, outros apenas sorriram.
No meio da cerimônia, um novo pastor me chamou ao púlpito. Disse palavras gentis, cheias de respeito, e então me pediu para falar algumas frases. Por um instante, pensei em recusar, mas quando olhei ao redor, vi rostos conhecidos e entendi que não se tratava mais de doutrina, mas de amor. Peguei o microfone e disse com a voz trêmula: “Passei muito tempo achando que fé era nunca duvidar. Hoje sei que fé é continuar, mesmo que tudo pareça duvidoso.” O murmúrio percorreu o salão. Eu continuei. “Não há igreja perfeita, nem pastor perfeito, mas há corações sinceros e é isso que mantém o mundo de pé.” Depois disso, devolvi o microfone e voltei pro meu lugar. Senti paz. Uma paz simples, sem espetáculo.
Quando o culto terminou, uma moça jovem se aproximou. Devia ter uns 20 e poucos anos. Olhos atentos. “Pastor”, disse ela, “eu comecei a estudar teologia por causa dos seus sermões antigos. É mesmo? Sim. Mas às vezes me pego duvidando de tudo.” Sorri. “Então você está no caminho certo.” Ela franziu a testa. “A dúvida é o começo da fé”, expliquei. “É nela que a gente aprende a confiar sem precisar entender tudo.” Ela assentiu emocionada e naquele instante vi em seus olhos o reflexo do jovem que eu fui, cheio de esperança e de perguntas.
Na saída, o sol já se punha. Lúcia me esperava no portão com o mesmo sorriso de sempre. “Conseguiu o que precisava?”, perguntou. “Acho que sim. Eu precisava voltar para descobrir que já não precisava mais ficar.” Ela riu e seguimos de mãos dadas até o carro.
Naquela noite, sentei para escrever no caderno. As palavras saíam leves, quase como um suspiro. Perdoar não é esquecer o que fizeram com a gente, é aceitar o que a vida fez de nós. E foi assim que entendi que o perdão não era um gesto único, mas um caminho. Um caminho que se percorre um pouco por dia, sem pressa, até que o coração se acostuma novamente a bater sem peso.
A Última Reflexão: A Fé Que Resta
Hoje, quando penso naqueles anos, não sinto mais raiva nem culpa. Sinto gratidão, porque foi a queda que me ensinou a olhar para cima e foi a solidão que me fez entender que Deus nunca esteve preso a lugar nenhum. Estava só esperando que eu o encontrasse dentro de mim.
Escrevo estas linhas com as mãos trêmulas, sentado na mesma varanda onde tantas vezes orei, chorei e sonhei. O vento sopra leve entre as árvores e o som das folhas me lembra o murmúrio de um coro distante. Há dias em que o corpo dói, mas o coração, o coração aprendeu a descansar.
Sinto que este é o último trecho da minha história, não por pressentimento sombrio, mas porque finalmente tudo faz sentido. Passei muitos anos tentando entender o porquê das coisas. Hoje percebo que algumas perguntas não foram feitas para serem respondidas, mas para nos ensinar a continuar perguntando. A fé que me restou é simples. Acordar, agradecer, amar e tentar não ferir ninguém no caminho.
Às vezes me pego relendo as anotações antigas, sermões, citações, reflexões. Nelas encontro o homem que fui, o pastor cheio de certezas. O crente que acreditava poder salvar o mundo com palavras. Olho para ele com carinho, não com vergonha. Ele fez o melhor que sabia. Mas o tempo, o tempo tem um jeito bonito de nos ensinar que há sabedoria também na desistência, na coragem de deixar que a vida seja o que é e não o que a gente gostaria que fosse.
Outro dia, um dos meus netos me perguntou: “Vovô, o senhor ainda acredita em Deus?” Pensei por um momento antes de responder: “Acredito sim, mas não do mesmo jeito que antes.” “Como assim?” “Antes eu falava com Deus como quem fala com um chefe, esperando ordens. Agora falo como quem conversa com um amigo, sem precisar de respostas.” Ele sorriu satisfeito e foi brincar. Fiquei olhando para ele e percebi que a vida segue independente das nossas certezas.
Aprendi que a fé não acaba quando a gente duvida, ela amadurece. E o medo que eu sentia, aquele medo de errar diante de Deus, se transformou em reverência. Hoje vejo Deus nas pequenas coisas, no cheiro do café pela manhã, no riso de Lúcia na cozinha, na brisa que passa e me toca o rosto como um carinho antigo. Descobri que ele nunca esteve preso a um templo, nem escondido em escrituras. Ele sempre esteve aqui no simples ato de existir.
Às vezes lembro da instituição que me formou e também me feriu. Não guardo ódio. Eles fizeram o que sabiam, como eu fiz. Todos nós tentamos encontrar sentido dentro das nossas limitações. E se hoje eu pudesse falar com aquele jovem pastor que um dia fui, diria apenas: “Não tenha medo de ver o que está por trás da cortina”. O susto passa, mas a verdade liberta.
Há quem diga que envelhecer é perder. Perder força, visão, memória. Eu discordo. Envelhecer é decantar. O que era excesso se assenta. O que era essencial permanece. E o que sobra, por mais simples que pareça, é o que de fato sustenta a alma.
De vez em quando os antigos membros ainda me escrevem cartas. Alguns pedem conselhos, outros apenas agradecem. Há também quem peça perdão. Respondo a todos com a mesma frase: “Que sua fé seja leve, porque fé pesada é fardo e Deus não nos pediu para carregar dor, apenas amor.”
Hoje, quando o sol se põe e as sombras começam a se alongar no quintal, fecho os olhos e escuto o som distante do passado. Não com tristeza. Mas com gratidão. Cada erro, cada queda, cada revelação me trouxe até aqui. E se houvesse uma forma de recomeçar, talvez a fizesse tudo igual, porque só assim eu teria aprendido o valor do silêncio, do perdão e da humanidade que existe em cada dúvida.
O segredo que descobri anos atrás, aquele que me tirou o sono e a fé, já não me assombra mais, porque agora sei que o mais assustador nunca foi o que estava escondido nos livros ou nas salas escuras, era o que eu ainda não entendia dentro de mim. E entender isso me libertou.
Lúcia sempre diz que meu olhar mudou, que antes eu olhava o mundo como quem buscava o que faltava e agora olho como quem agradece o que ficou. Talvez ela tenha razão. Talvez envelhecer seja isso. Aprender a dizer obrigado até pelas dores.
Enquanto escrevo estas últimas palavras, o céu começa a escurecer. Ouço um canto de um pássaro solitário no alto do muro. Ele canta como quem se despede do dia, mas sem tristeza, apenas com a certeza de que o amanhã virá. E é assim que eu quero ir também, em paz, sem pressa, sabendo que cumpri o que me cabia.
Se alguém ler este caderno um dia, espero que entenda, não é um relato sobre perda de fé, mas sim sobre reencontro. Porque a verdade que mais me assustou no fim foi também a que mais me libertou. Deus nunca esteve longe.
