LIVRO DE JASHER: De onde Ellen G. White tirou a idéia do “pecado da amálgama”?

Pesquisas recentes revelam aquilo que a história adventista tentou esconder por mais de um século: Ellen White não dependia apenas da Bíblia, mas utilizou — consciente e seletivamente — livros apócrifos e pseudepígrafos, especialmente o Livro de Jasher.

O estudo de Matthew J. Korpman demonstra que White extraiu detalhes históricos, reutilizou narrativas e até explicou sua polêmica ideia da “amálgama” a partir desse livro extra-bíblico. Ele também mostra que Ellen White acreditava na possibilidade de outros escritos proféticos antigos reaparecerem, como um possível “Livro de Enoque” ainda desconhecido.

A conclusão é inevitável e explosiva: a biblioteca teológica dos pioneiros era muito maior do que a admitida pela IASD moderna — e restaurá-la é essencial para recuperar a profundidade profética do movimento.

Faça o download da tradução do artigo: 

Ellen White e os Pseudepígrafos — Jasher, Enoque e a Amálgama do Homem e Besta (Matthew J. Korpman). Publicado em Spes Christiana 33.2, 2022, 107‒130

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Embora o tema da relação de Ellen White com os apócrifos tenha recentemente começado a receber mais atenção nos estudos, o tema da sua interacção e utilização da literatura não-canônica mais ampla, fora da sua Bíblia de família, não recebeu praticamente nenhuma investigação académica.

Como tal, este artigo procura corrigir este silêncio, realizando uma revisão cuidadosa de todas as declarações atualmente conhecidas de White que fazem referência, aludem ou citam informalmente obras apócrifas e pseudoepígrafas do Antigo Testamento fora da sua Bíblia do século XIX. A conclusão desta pesquisa argumenta que ela de fato utilizou tais obras em seus escritos (livros como Jasher), mas também que ela permaneceu aberta à possibilidade de descobrir ainda mais obras parabíblicas (livros potencialmente como 1 Enoch).

Além disso, reconhecer a sua dívida para com Jasher demonstra o valor de tal investigação ao revelar que os seus primeiros comentários sobre a “amálgama” do homem e da besta foram baseados numa passagem deste trabalho pseudepigráfico, apontando para uma nova compreensão das suas intenções quando ela invocou a declaração controversa.

Novas evidências acadêmicas revelam que Ellen White usou literatura extra-bíblica — inclusive o Livro de Jasher — para descrever Enoque, o Pré-Dilúvio e a “amálgama” entre homem e animal. E isso muda tudo.


Por mais de um século, a história oficial do adventismo repetiu a mesma ideia: Ellen White teria construído seus escritos apenas sobre a Bíblia, sem recorrer a fontes “suspeitas” como apócrifos ou pseudepígrafos. Essa narrativa serviu para blindar sua autoridade, proteger a imagem institucional e afastar qualquer suspeita de “dependência literária”.

Mas essa versão colapsa diante das novas pesquisas acadêmicas — especialmente o estudo devastador de Matthew J. Korpman, publicado em 2022, que realiza a primeira análise sistemática das referências de Ellen White a livros fora de sua Bíblia de família.

O artigo mostra, com precisão cirúrgica, que Ellen White:

• leu e utilizou o Livro de Jasher,
• conhecia 1 Enoque e aceitava a possibilidade de novos livros de Enoque serem descobertos,
• absorveu tradições judaicas não-canônicas,
• e construiu parte de suas descrições teológicas a partir de fontes parabíblicas.

Tudo isso está documentado em detalhes na pesquisa original. Este é o tipo de assunto que deveria incendiar conferências teológicas — mas que geralmente é silenciado.


  1. ELLEN WHITE NÃO LIA APENAS A BÍBLIA
    O estudo de Korpman demonstra que Ellen White tinha à sua disposição, além de sua Bíblia King James com os Apócrifos encadernados, outros livros extracanônicos que ela consultava e citava informalmente. Ela mesma admitiu, em uma ocasião, ter lido obras apócrifas adicionais.

Isso derruba o mito moderno de que ela se limitava ao cânon protestante.
Ela jamais viveu nesse mundo “puro” que alguns defendem.

Ao contrário:
Ela era curiosa.
Lia amplamente.
Absorvia tradições judaicas antigas.
E fazia teologia com elas.


  1. O LIVRO DE JASHER: A FONTE ESCONDIDA DE ELLEN WHITE
    O estudo dedica sua maior parte ao Livro de Jasher, um texto medieval que circulava entre judeus e tornou-se popular entre mórmons e protestantes do século XIX.

O choque?
Ellen White usou esse livro — intensamente.

A análise das comparações entre Jasher e Spiritual Gifts (1864) e Patriarchs and Prophets (1890) mostra paralelos diretos:

• descrições de Enoque,
• práticas dos pré-diluvianos,
• aspectos da pregação de Noé,
• detalhes da vida antes do dilúvio,
• até elementos do episódio da Torre de Babel.

Esses paralelos não são coincidência — são literários.
Korpman demonstra que há citações informais, alusões conscientes e ecos textuais claros.

Isso significa:

Ellen White não apenas leu Jasher — ela reutilizou Jasher.

Mas não como Escritura:
Ela selecionava, reescrevia, corrigia e adaptava.
Usava quando lhe servia.
Ignorava quando discordava.

Esse padrão aproxima Ellen White do fenômeno de “Escritura Reescrita”, comum no Judaísmo do Segundo Templo.
Ela fazia com Jasher o que Jubileus faz com Gênesis: adaptava.


  1. O ESCÂNDALO DA “AMÁLGAMA” — RECONSTRUÍDO
    Poucos temas causaram tanto desconforto institucional quanto a famosa frase:

“o pecado vil da amálgama do homem e dos animais”. (Spiritual Gifts 3:64)

Críticos a acusaram de ensinar híbridos homem-animal.
Defensores tentaram reinterpretar como metáforas morais.
Alguns usaram as frases para justificar racismo.
E a liderança permaneceu em silêncio durante décadas.

Mas a pesquisa de Korpman finalmente revela de onde surgiu essa frase:
do Livro de Jasher 4:18, que fala de homens ensinando a mistura de animais de uma espécie com outra.

Ou seja:

• White tirou o conceito diretamente de Jasher,
• e falava de cruzamento entre animais e entre linhagens humanas,
• não de bestialidade literal.

Isso desfaz mal-entendidos grotescos que duraram mais de 150 anos.

Mais ainda:
Isso coloca o comentário dela dentro da interpretação agostiniana de Gênesis 6, sobre a mistura entre setitas e cainitas — algo que ela própria reafirma poucas páginas antes.

Em outras palavras:
O “pecado da amálgama” era, para ela, o colapso da ordem criada — violência, mistura forçada, corrupção moral e genética dentro da própria humanidade.

A fonte pseudepigráfica muda completamente a interpretação.


  1. E ELLEN WHITE E 1 ENOCH?
    A pesquisa deixa claro que Ellen White:

• conhecia a existência do Livro de Enoque,
• sabia que Judas 14 o citava,
• lamentava que o texto não estivesse disponível,
• e acreditava que livros perdidos de Enoque talvez fossem encontrados no futuro.

A ironia:
O livro já existia em inglês desde 1848 — mas ela provavelmente não teve acesso direto.

Mesmo assim, Ellen White deixava em aberto que obras proféticas antigas poderiam emergir.
Ela não era fundamentalista.
Era aberta.
Era histórica.
E muito mais judaica em sua forma de pensar do que admitimos.


  1. O IMPACTO TEOLÓGICO: O ADVENTISMO PRECISA REVISAR SUA HERMENÊUTICA
    A pesquisa de Korpman encerra com um ponto desconfortável:

Ellen White fazia o que qualquer estudioso moderno faz —
mas sem os complexos que a igreja desenvolveu depois.

Ela:

• lia fontes externas,
• extraía o que considerava útil,
• rejeitava o que julgava incorreto,
• integrava tradições judaicas antigas em seu pensamento,
• e, acima de tudo, não confundia inspiração com infalibilidade.

Essa abordagem é profundamente adventista, profundamente bíblica — e profundamente diferente da rigidez moderna.

Korpman argumenta que o adventismo deve recuperar essa liberdade:
ler amplamente,
estudar fontes não-canônicas,
entender o mundo do Segundo Templo,
e abandonar o medo de livros.

Se Ellen White pôde usar Jasher,
por que teólogos adventistas modernos temem até mencionar 1 Enoque?


  1. CONCLUSÃO: O QUE A IGREJA ESCONDEU VOLTA À TONA
    O estudo de Korpman abre uma porta que não pode mais ser fechada.

Ele demonstra que:

• Ellen White usou pseudepígrafos.
• Jasher influenciou parte de suas narrativas.
• Sua frase mais controversa (“amálgama”) se explica por essa fonte.
• Ela considerava possível recuperar livros proféticos perdidos.
• A biblioteca adventista original era maior do que a atual.
• E a liderança moderna reduziu essa biblioteca por medo, não por teologia.

Isso exige uma revisão honesta da história adventista —
e uma reconciliação entre o adventismo acadêmico e o adventismo institucional.

Mas acima de tudo, exige coragem:
a coragem que Ellen White teve,
e que muitos de seus seguidores perderam.

Enquanto a igreja teme livros,
a profecia permanece acorrentada.

Hora de libertá-la.

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