Série: Descobrindo as Riquezas da Teologia da Criação no Gênesis
4. O Ser do Homem — Conceitos Antropológicos Fundamentais

Por Edegard Silva Pereira

A teologia da criação não esqueceu sua vocação humana. Não deixa, como é a tendência de certas teologias restritas, o homem abandonado a si mesmo. Em tais teologias, a antropologia encontra-se perdida, porque se situam num lugar onde o homem não se encontra. De que serve uma teologia que não explica o que vem a ser o homem, cuja essência acabou por resultar-lhe a coisa mais estranha?

Já no Gênesis constatamos que Deus demonstra sua divindade exatamente no fato de que ele está ligado ao ser humano em palavras e ações. Ali já se percebe que Deus penetra na história humana e pergunta sempre de novo a cada geração: “Homem, quem és tu”. E é sobretudo na sua conversação com Deus que o ser humano se encontra questionado, perscrutado e, por isso mesmo, menos constatado do que chamado para algo novo.

No espaço reduzido deste artigo vou abordar uma pequeníssima fração dos conhecimentos que a teologia da criação nos dá sobre o ser humano. Uma outra parte desses conhecimentos aparece em outros artigos desta série, em conceitos como imagem de Deus, homem e mulher, trabalho e descanso. O que faço agora é selecionar alguns dos conceitos antropológicos fundamentais, com os quais o Gênesis esclarece outros aspectos e outros traços dominantes do ser humano, e, logo, apresento um resumo do significado de cada um.  

 

Considerações prévias

O Gênesis resume tudo o que o Antigo Testamento diz sobre o ser do homem. Para tal, usa substantivos hebraicos comuns nas Escrituras, geralmente traduzidos como coração, alma, carne, espírito, boca, mão e braço, com os quais oferece uma visão de diversos aspectos do ser humano. É importante ter em conta que nas Escrituras o homem é um sujeito único, um conjunto de capacidades características, propriedades e aspectos típicos inseparáveis. Daí que seja freqüente encontrar trechos nos quais uma dessas palavras toma o lugar do homem todo. E isto é, por vezes, imperceptível para o leitor menos preparado, o que pode leva-lo a deturpar a afirmação verdadeira sobre o ser do homem.

Também existe o perigo de produzir equívocos de graves conseqüências quando interpretamos as concepções antropológicas das Escrituras segundo uma filosofia helênica, devido à tradução estereotípica dos termos hebraicos pela mesma palavra. Por exemplo, ao serem traduzidos os substantivos hebraicos mais comuns pelas palavras “carne”, “alma” e “espírito”, conduzem a uma antropologia dicotômica (corpo e alma ou corpo e espírito) ou tricotômica (corpo, alma e espírito) estranha às Escrituras. Por isso, é importante esclarecer como as Escrituras usam as palavras que têm sentido antropológico.

Para entender que aspecto humano a teologia da criação está visualizando com o uso dessas palavras, teríamos que percorrer toda a amplidão do espaço do ser humano que elas delineiam nas Escrituras. O que, obviamente, os limites deste artigo não nos permitem fazer.

 

Nêfesh — o homem necessitado

Nêfesh aparece 755 vezes no Antigo Testamento. As nossas Bíblias tradicionais a traduzem, regularmente, por “alma”. Estudos recentes concluíram que essa tradução não corresponde, salvo raras exceções,  ao significado de nêfesh.

Como a teologia da criação usa essa palavra hebraica para a compreensão do ser humano? Gn 2:7 diz:

Então, formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de  vida, e o homem passou a ser nêfesh vivente.   

Aí, certamente, nêfesh não significa “alma”. Ela define o ser humano como um todo. O texto afirma que homem não tem nêfesh, mas é nêfesh, vive como nêfesh.  Em geral,

a palavra designa o homem necessitado, a vida necessitada, porque aquilo que sustenta o ser do homem não vem dele mesmo. Nesse sentido, em algumas passagens designa a garganta (e em sua extensão exterior, o pescoço), que para o semita era a sede das necessidades da vida, como comer, beber e respirar, e também outras necessidades da vida mesma, como os anelos da alma, sem cuja satisfação o homem não pode continuar a viver. Em outras passagens designa a pessoa individual, o indivíduo em oposição ao conjunto do povo. E em ainda outras, significa a vida simplesmente, tanto a animal como a humana. Como simplesmente vida, a nêfesh é mortal. Isto está claro em Lv 24:17, 18.

Se um homem mata alguma nêfesh humana, deve ser castigado com a morte. Quem mata a nêfesh de animais, deve restituir nêfesh por nêfesh.

Nêfesh aparece em outras passagens do Gênesis com diversos significados: como entes vivos (1:20, 21, 24, 30; 2:19; 9:10,12,15, 16), como vida ligada ao sangue (9:4, 5), como simples uso pronominal (27:4, 19, 25, 31), no sentido de desejo livre (23:8), como desejo ardente (34:2,  3), como respiração (35:18), como vida  (37:21), como fonte do amor paterno (44:30), como indivíduos ou pessoas (46: 15, 18, 22, 25-27). 

 

Basar o homem efêmero

No Antigo Testamento, a palavra hebraica basar ocorre ao todo 273 vezes, das quais 104 vezes se refere aos animais. Quando se refere ao ser humano, designa carne, corpo, parentesco e fraqueza.

Na criação da mulher a partir de uma das costelas do homem, Gn 2:21 diz: “e fechou o lugar com basar (carne)”. Em Gn 2:24, de modo semelhante a nêfesh, basar indica o ser humano como tal, agora no aspecto corporal. Por isso,  pode dizer do homem que ele “se une à sua mulher, tornando-se os dois um só basar”, isto é, um corpo comum, uma “comunidade de vida”.  Basar como “carne” aparece em Gn 2:23 e 29:14 nas fórmulas de parentesco, isto é, no sentido daquilo que une os seres humanos entre si: respectivamente “ossos de meus ossos e carne de minha carne” e “és meu osso e minha carne”. Ou como afirma Judá perante seus irmãos quanto a José: “ele é nosso irmão, nosso basar” (Gn 37:27). Em Gn 6:5,12,16,17, a palavra também sugere que não se pense só em parentes no sentido jurídico, mas nos outros homens em geral, como parentes no gênero humano, e acentua o parentesco genérico de tudo que é vivo, pois o mundo não foi criado só para o homem. Em Gn 6:12, assim como em outros lugares do Antigo Testamento, basar  caracteriza a vida humana, em geral, como “fraca” e “caduca” em si mesma, já que é mortal. 

 

Ruach — o homem autorizado

Em 113 casos de uma ocorrência total de 389 vezes no Antigo Testamento, a palavra hebraica ruach designa uma força da natureza: o vento, o ar em movimento, como um fenômeno poderoso, que está no poder e à disposição de Deus. Logo, em segundo lugar, se refere a Deus (136 vezes). Menos vezes caracterizam o homem. Quando se refere a Deus e ao homem, ruach  pode ser considerada uma noção teo-antropológica. Como tal, designa Espírito, respiração, força vital, afeto e força de vontade.

No relato da criação, Gn 1:2 diz que “o ruach de Deus sopra as águas”. Referindo-se à criação, a passagem de Sl 33:6 usa ruach como sinônimo de “palavra”, pois ambas coisas saem da boca de Deus. Mas ruach, como o hálito de Deus, é força vital criadora, a qual dá a vida ao ser humano (Gn 2:7) e também determina a sua duração (Gn 6:3). Em Gn 8:1 Deus faz soprar a ruach sobre a terra a fim de diminuir as águas do dilúvio. Gn 6:3 mostra uma característica de ruach: sendo o divinamente poderoso, está em contraste com basar como o humanamente impotente.

A ruach do homem é, antes de tudo, a sua respiração. Como força vital do homem, é Deus que a dá. Com a ruach de Deus o homem também recebe uma capacidade extraordinária, que o autoriza a assumir o encargo de realizar a obra de Deus. A existência do homem assim autorizado já se insinua em Gn 41:38 — o faraó procura “um homem no qual está a ruach de Deus”.  

Na maioria das vezes, ruach significa o sopro forte do vento e a atividade vivificante e autorizadora de Deus. Por isso, é usada também não só para exprimir disposições do coração, mas ainda mais para ser a portadora de ações enérgicas da vontade.

 

Leb e lebab — o ser humano racional 

Leb e sua variante lebab ocorrem 858 vezes no Antigo Testamento, das quais 814 se referem ao “coração” humano. Elas expressam a noção antropológica mais freqüente e mais importante. Sua tradução comum é “coração”, que desencaminha a compreensão atual. Quando não se referem ao órgão, elas significam sentimento, desejo, razão, decisão de vontade.

Ou seja, elas têm em vista muito mais do que a realidade anatômica e as funções fisiológicas do coração. Expressam atividades essências do ser humano de natureza espiritual e psíquica, por exemplo, as camadas irracionais do homem, determinadas disposições de ânimo como alegria e aflição, coragem e temor, desejo e aspiração, e também funções intelectuais, racionais, como inteligência, sabedoria e decisão de vontade, as quais nós atribuímos à mente, ao cérebro. Nesse contexto encontramos várias passagens no Gênesis (6:5, 6; 8:21; 17:17; 19:25; 24:25; 27:41; 34:3; 50:21).

Nessas passagens, constatamos que a teologia da criação, ao contrário das teologias que esqueceram o homem, é uma teologia com psicologia. A teologia sem psicologia é pouco amiga do homem. Pois não o compreende nem o ajuda a reconhecer-se como ser humano, mas meramente como católico, batista, presbiteriano, adventista...

Nas passagens sobre o “coração” de Deus, leb se refere à relação para com o homem. O “coração” de Deus é mencionado como o órgão da clara vontade de Deus, pela qual o homem.é medido.

Do mesmo modo que todas as palavras mencionadas, devem ser compreendidas as palavras hebraicas que foram traduzidas como boca, ouvido, entranhas, rins, mão, braço e sangue. Na maioria das vezes, elas têm um significado antropológico, isto é, esclarecem diversos aspectos e os traços dominantes do ser humano. Geralmente elas tomam o lugar do homem todo, quase como se fossem pronomes.

É importante notar o seguinte sobre os substantivos hebraicos nêfesh, basrar, ruach e leb: mesmo traduzidos para o grego no Novo Testamento, eles geralmente mantêm ali seu significado hebraico.

A partir do Gênesis, a Bíblia é o lugar em que o homem pode sentir-se verdadeiramente compreendido e reconhecer a sua autêntica humanidade. Mas é no encontro do homem com Deus em Jesus Cristo que o ser humano foi plenamente definido. Em sua atividade terrena, Jesus revelou uma nova maneira de ser homem.

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