Ruanda: ‘Fomos Tomados por Satã’, Diz um dos Assassinos

Em 1994, na aldeia de Nyarubuye, em Ruanda, a maioria hutu embarcou em uma matança frenética na igreja local, massacrando vizinhos e amigos.

Gitera Rwamuhuzi foi um dos participantes do genocídio no país. Leia abaixo o seu depoimento.

“Antes do genocídio, a vida era normal. Para nós, desde que houvesse colheita farta o suficiente para que não precisássemos comprar comida no mercado, nós nos dávamos por satisfeitos.

Eu tinha ouvido dizer que os tutsis eram vistos como superiores em relação aos hutus. Por exemplo, um hutu só podia mudar seu status social trabalhando na casa de um tutsi. Os restantes eram hutus de classe baixa.

Como a Frente Patriótica de Ruanda (RPF) foi responsabilizada pela morte do presidente Habyarimana, nós achamos que eles tinham começado com gente da cúpula e iriam acabar fazendo o mesmo com gente comum como nós.

Nós achamos que, se eles tinham conseguido matar o chefe de Estado, como é que as pessoas comuns poderiam sobreviver?

Na manhã de 15 de abril de 1994, cada um de nós acordou sabendo o que devia fazer e aonde ir porque nós tínhamos feito um plano na noite anterior. De manhã, nós acordamos e começamos a caminhar para a igreja.

Sem vida

Depois de escolher as pessoas que podiam usar armas e granadas, eles foram armados e nos disseram que deveríamos cercar a igreja.

Eles disseram que um grupo deveria ir em direção ao sul e o outro ao norte. Éramos tantas pessoas que estávamos tropeçando uns nos outros.

As pessoas que carregavam granadas lançaram-nas. Os tutsis começaram a gritar por ajuda. Enquanto elas gritavam, os que portavam armas abriram fogo.

Elas gritaram que estava morrendo, pediam ajuda, mas os soldados continuaram atirando. Eu entrei e, quando vi um homem, eu bati nele com uma marreta e ele morreu.

Pode-se perguntar porque não dois, três ou quatro? Mas eu não consegui matar dois ou três porque o número de pessoas entrando (na igreja) era maior do que o que já estava dentro.

Algumas pessoas nem acharam alguém para matar porque havia mais matadores do que vítimas.

Quando nós entramos, era como se estivéssemos competindo para matar. Nós entramos e cada um de nós começou a atacar suas próprias vítimas.

Cada pessoa que atacávamos parecia ter sido atingida pelas granadas. Eles pareciam traumatizados. Parecia que seus corações haviam sido arrancados.

Ninguém pedia perdão. Parecia que já tinham sido mortos.

Meus vizinhos

Aqueles que nós atacávamos não diziam nada. Eles estavam apavorados e ninguém disse nada. Eles devem ter se sentido traumatizados.

Além de respirar, podíamos ver que eles não tinham mais vida.

Eu vi gente com mãos amputadas, sem pernas, e outros sem cabeça. Eu vi de tudo.

Especialmente gente rolando no chão e gritando de dor, sem braços, sem pernas. Gente morrendo em condições muito ruins.

É como se nós tivéssemos sido possuídos por Satã. Nós fomos tomados por Satã. Quando Satã possui alguém, a pessoa perde a cabeça.

Nós não éramos nós mesmos. Começando por mim, eu acho que eu não estava no meu normal.

Não se está normal quando se começa a massacrar pessoas sem motivo. Nós fomos atacados pelo diabo.

Mesmo quando eu sonho, meu corpo muda de uma forma que não consigo explicar. Essas pessoas eram meus vizinhos.

A imagem da morte deles talvez jamais deixará a minha mente. Todo o resto eu posso tirar da cabeça, mas essa imagem nunca irá embora.”

Fonte: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2004/04/040402_ruandadepoimento.shtml

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