A Princesa e os Generais — Hitler, Pinochet… Mourão, etc

A liderança adventista bajulou regimes militares de direita para conquistar vantagens, como na Alemanha nazista, no Chile de Pinochet, e no Brasil de Hamilton Mourão

Fonte: https://revistazelota.com/a-princesa-e-os-generais/

“O cristão se regozija no fato de que seu país está nas mãos de um homem que recebeu seu ofício das mãos de Deus, e que sabe ter responsabilidade diante dEle”, dizia uma declaração oficial da Igreja Adventista. “Sendo anti-alcoolismo, não fumante [e] vegetariano, ele está mais próximo de nossa própria visão de reforma da saúde que qualquer outra pessoa.” Este texto, que circulou pela Alemanha em agosto de 1933, referia-se a um homem que todos conhecemos de uma forma ou de outra: Adolf Hitler. O líder da Alemanha nazista, que seria diretamente responsável pela morte de seis milhões de judeus e de 5,7 milhões de soviéticos, era visto com simpatia e admiração por várias das lideranças adventistas alemãs, que chegaram a incorporar o discurso nazista de higiene racial às suas práticas de saúde e caridade: o casamento entre um judeu e um ariano era uma “violação” da “lei genética de Deus”, assim como da “doutrina do sangue puro”, segundo uma revista adventista da época.1

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Quase cinquenta anos depois, no dia 20 de agosto de 1981, outro comandante militar receberia a bênção da Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD). A fim de comemorar o aniversário de 75 anos do Colegio Adventista de Chile (CACH, hoje UNACH), os pastores Werner Mayr Braüer e Sergio Olivares Peña receberam o General Augusto Pinochet no campus para prestigiar a cerimônia e conhecer o espaço administrado pela igreja. “Rogamos ao Todo-Poderoso que te ilumine em sua missão delicada de dirigir os destinos de nossa pátria em um momento tão significativo da história do mundo”, proclamou o Pr. Olivares. Pouco importava que a ‘missão delicada’ de Pinochet lhe tivesse sido autoimposta após seu golpe militar contra Salvador Allende, então presidente democraticamente eleito, oito anos antes. Também não pareceu importar que, para ‘dirigir os destinos de sua pátria’, Pinochet comandasse uma ditadura que fez mais de 40 mil vítimas com suas torturas, execuções e desaparecimentos.

Pinochet não seria o último general a ocupar espaços de honra na Igreja Adventista. No dia 21 de agosto de 2019, o General Hamilton Mourão, atual vice-presidente brasileiro, foi convidado a apresentar a Aula Magna do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP), após a qual participou da inauguração do novo Núcleo de Saúde do campus. Mourão, saudoso de seus heróis de outros tempos, já chamou atenção antes de ser eleito por suas alusões à possibilidade de um novo golpe militar, e chegou a chamar Brilhante Ustra, coronel e notório torturador da ditadura militar brasileira, de um ‘homem de honra’. Suas práticas de tortura, que incluíam até mesmo a inserção de ratos vivos na vagina de mulheres, são irrelevantes — “heróis matam”, afinal.

A boa vontade de nossas lideranças eclesiásticas para com autoridades tão moralmente distantes do que aprendemos em nossas igrejas pode parecer chocante, e tais casos constituem — muitos dirão — lamentáveis exceções. Mas nosso servilismo aos poderes estabelecidos tem sido, em muitos casos, a regra de um sistema embriagado com o poder e adoecido pela má política. Não sabendo viver enquanto seres políticos, achamos que, para um adventista, fazer política é avançar os interesses de nossa instituição — postura bem exemplificada, como veremos, pelos três casos citados acima.

O Ministério da Saúde advento-nazista

Para quem cresceu no pós-Segunda Guerra Mundial, o nazismo é a própria encarnação do mal cósmico. Como não entendemos seu lugar na História do século 20, olhamos com assombro para Hitler: como é possível que alguém seja maligno em níveis tão transcendentais? Quando saímos do campo existencial e vamos para a história e a política, no entanto, fica muito mais fácil compreender o nazismo: numa época em que impérios no Norte competiam para ver quem tinha mais terras e escravos, o Terceiro Reich visava garantir por meio da força um lugar ao sol para a Alemanha, que estava arruinada e endividada após sua derrota na Primeira Guerra Mundial. 

O nazismo surge como uma nova promessa de grandeza: enquanto as outras potências mundiais tinham suas colônias na Ásia, na África e na América Latina, a Alemanha faria uma guerra de conquista para tornar o leste europeu sua própria colônia particular. Hitler já estabelece em seu livro Mein Kampf as etapas do processo — era preciso seguir o exemplo dos Estados Unidos, que “germanizaram” o solo americano sem perder no processo sua pureza racial, e purificar o solo oriental das raças eslavas inferiores. Judeus, soviéticos, comunistas, negros e ciganos estavam todos na lista da morte, da mesma forma que estiveram os indígenas na lista americana.

Essa tese nazista de pureza racial, que visava legitimar a exploração e o extermínio de seus povos vizinhos, não poderia estar mais distante do pensamento cristão, para o qual toda a humanidade foi feita à imagem e semelhança de Deus. Mas essa tese foi, curiosamente, um dos principais pontos de contato entre a Igreja Adventista alemã e o Terceiro Reich. Além do fluxo constante de publicações que apoiavam a ideia de higiene racial nos periódicos adventistas da época, o próprio serviço de assistência social adventista eventualmente se filiou ao serviço de assistência social do Partido Nazista, submetendo-se diretamente à autoridade do Führer. Isso levou a IASD a posicionamentos curiosos, como o de que a caridade poderia ser negada a “elementos antissociais indignos” — o objeto do cuidado adventista não era mais o indivíduo, e sim a raça germânica em sua totalidade. Negar assistência social a determinados tipos de pessoas seria, portanto, fazer o bem a toda a comunidade, pois tais genes defeituosos não seriam passados adiante.

O apoio da IASD às teses de superioridade racial do nazismo alemão se estendeu também às suas práticas eugenistas. Eventualmente o Partido Nazista empreendeu, através de “tribunais de saúde hereditária”, a esterilização forçada de indivíduos que tinham esquizofrenia, epilepsia ou deficiências mentais, assim como de quem fosse considerado um “desviado” do ponto de vista social, político ou sexual. Muitos cristãos se levantaram para denunciar o crime dessas práticas — entre eles católicos e luteranos — mas não os adventistas. Pelo contrário, para nossos líderes, “algo que é uma necessidade política para o Estado se mostra humanitário, e uma bênção, em cada caso individual”. Eles declararam em publicações que “prevenir um mal é melhor que erradicar um já existente”, e que “nesse caso a ética estatal e a ética cristã são completamente sinônimas”, já que os recursos economizados poderiam ser investidos nos elementos “saudáveis e produtivos” do povo alemão.

Tamanha lealdade obviamente não poderia se limitar à área da saúde.2 Presidentes e diretores de associações e uniões alemãs exortavam regularmente seus pastores a apoiarem o regime em seus sermões aos sábados, e o próprio Adolf Minck, que presidia sobre toda a IASD alemã, publicou cartas encorajando os adventistas a votarem a favor dos plebiscitos do Partido Nazista. Líderes esquerdistas (os “fanáticos incorrigíveis”) ou judeus passaram a ser perseguidos e foram eventualmente expulsos de seus cargos, e muitos obreiros, tais como professores e editores, tinham que se filiar a organizações nazistas relacionadas a suas profissões. 

O próprio serviço de colportagem foi cooptado pelo nazismo: a partir de 1933, as editoras adventistas alemãs assinaram um contrato que as obrigava a distribuir mensalmente dez mil cópias do periódico Neues Volk — publicado pelo Gabinete de Política Racial do Partido Nazista — através de sua rede de colportores. Tal periódico, que anunciava “o dia de julgamento de Judá” e denunciava qualquer compaixão pelos judeus como “um desperdício de energia espiritual”, não pareceu problemático aos olhos de nossas lideranças, que estavam muito preocupadas em distanciar-se ao máximo dos judeus; o sábado passou a ser chamado de dia de descanso, e a escola sabatina passou a ser conhecida como escola bíblica.

A IASD, como seria de se esperar, foi bastante recompensada por sua lealdade a Hitler.3 As instituições adventistas alemãs, de hospitais a casas publicadoras, permaneceram relativamente intactas, e foram capazes de se recuperar rapidamente após o fim da Segunda Guerra. A própria denominação só foi posta na ilegalidade uma vez em 1933, por um breve período de seis semanas, enquanto outras tinham suas igrejas fechadas e seus ministros perseguidos, e teve a guarda do sábado garantida a seus membros nos anos do regime nazista… Até que estourou a guerra, e o privilégio da guarda do sábado foi negado aos adventistas. 

Adolf Minck, por exemplo, foi convocado à Gestapo, e, após ser pressionado pelas autoridades nazistas, publicou novas cartas aos membros da igreja: não havia problema em servir no campo de batalha ou trabalhar aos sábados (mesmo na indústria bélica), pois era preciso “se adaptar aos tempos” e “obedecer às autoridades, conforme ordenado na Palavra de Deus (Rm 13:1-5)”. A instituição foi preservada, mas ao custo de seus princípios — desde o respeito aos direitos humanos até o tão alardeado direito de guarda do sábado.

Nadando nas veias abertas: a IASD no Chile de Pinochet

Quando Salvador Allende venceu as eleições chilenas em 1970, o país era mais um quintal do império norte-americano. Metade dos investimentos do país pertencia a capitalistas estrangeiros, as minas de cobre praticamente pertenciam aos Estados Unidos, e quase todas as terras cultiváveis pertenciam a latifundiários. O resultado? Miséria generalizada para quem não pertencia às minorias privilegiadas da sociedade. 

Allende, sendo o primeiro presidente socialista latino-americano a chegar ao poder por vias eleitorais, buscou sanar esses problemas: nacionalizou bancos e jazidas de cobre, e metade das terras de latifundiários foram expropriadas para que fossem distribuídas de forma igualitária entre o resto da população camponesa — a famigerada Reforma Agrária. Salários mínimos foram elevados, populações indígenas foram integradas ao sistema educacional, voluntários foram enviados para alfabetizar populações em áreas rurais, e leite passou a ser distribuído regularmente nas regiões mais pobres das cidades. O desemprego e a inflação diminuíram, e em 1971 o país foi um dos que mais cresceu na América Latina.

Mas o sonho logo virou pesadelo. Financiadas pelos Estados Unidos, as elites chilenas passaram a sabotar a economia do país; a prioridade era a proteção e a recuperação de seus monopólios. Sanções norte-americanas fizeram com que o capital estrangeiro fugisse do país, sob o amigável “encorajamento” do presidente norte-americano Richard Nixon, e a CIA investiu alguns milhões de dólares para garantir que a Confederação Nacional de Transportes fosse capaz de paralisar por duas vezes os caminhões de todo o país. Greves patronais também paralisaram indústrias e até mercados, levando o país a uma crise econômica e de abastecimento sem precedentes. A sabotagem foi então coroada pelo golpe civil-militar liderado por Augusto Pinochet, que no dia 11 de setembro de 1973 bombardeou o palácio presidencial de La Moneda. Allende nunca mais foi visto com vida, e Pinochet se proclamou o novo presidente do Chile.

A repressão que se seguiu — mais de 3 mil assassinados pelo regime, entre dezenas de milhares torturados e desaparecidos — esmagou qualquer esperança de resistência chilena às contrarreformas neoliberais promovidas por Pinochet. A Constituição de 1980, que vigora até hoje e que foi rejeitada por 78% dos chilenos em um plebiscito histórico no ano passado, privatizou massivamente setores como saúde, previdência e educação, aumentando ainda mais a desigualdade social no país e endividando uma boa parcela de sua população. A Lei Geral de Educação Universitária, aprovada em 1981, reduziu o financiamento das universidades públicas e acabou com sua gratuidade, enquanto permitia a criação de instituições privadas e confessionais por todo o país. Nesse mesmo ano Pinochet seria o convidado de honra em uma instituição privada e confessional: o Colegio Adventista de Chile (CACH).

O CACH comemorava naquele ano seu 75º aniversário — ele fora fundado em Púa em 1906, e se mudou em 1922 para as proximidades de Chillán, onde permanece até hoje. Durante muitos anos seus cursos de ensino superior serviram somente para obreiros da Igreja Adventista, como pastores e professores; somente a partir de 1963 o Colégio teria reconhecida sua formação de professores no Ensino Básico, a partir de um convênio com a Universidad de Concepción (UDEC). Este seria ampliado em 1979, já no governo de Pinochet, e o Colégio passa a ter reconhecidos seus cursos de Pedagogia em música, história e geografia, além da formação em Educação Básica. Todo o ensino superior do Colégio, que ainda dependia de seu vínculo com a UDEC para que fosse reconhecido pelo Estado chileno, começa a se ampliar ainda mais em 1981: no começo do ano é promulgada a Lei Geral de Educação Universitária, e em meados de maio Pinochet tem uma audiência especial com o Pr. João Wolff, presidente da Divisão Sul-Americana, e com o Pr. Werner Mayr, presidente da União Chilena.4

Estava preparado o terreno para a visita do presidente ao CACH em agosto, descrita em detalhes pela Adventist Review:5 “Todo o corpo discente e docente dos três níveis de educação se enfileirou ao longo da estrada que leva da entrada principal ao prédio da administração, cada um balançando uma bandeirinha ou aplaudindo para dar as boas-vindas ao comitê presidencial”. Os visitantes se posicionaram na sacada do prédio da administração e entoaram o hino nacional; então “dois alunos do jardim-de-infância levaram um buquê de flores para a primeira-dama, que o recebeu graciosamente”. O Pr. Sergio Olivares Peña, diretor do colégio na época, pronunciou então um belo discurso,6 apresentando as virtudes do colégio ao ditador e agradecendo-o por sua presença na celebração: “Fazemos público nosso agradecimento à sua Excelência pelo interesse especial do governo que você preside e pelo respeito e apoio à educação particular, uma das provas sendo sua presença aqui”. Ao término do discurso, trocaram um abraço acalorado. “Este evento grandioso será relembrado para sempre, tanto nos anais deste colégio quanto na mente dos estudantes e docentes”, disse o Pr. Olivares.

Pinochet e outras autoridades em frente ao dormitório feminino nº 1, em meio ao perfume das flores, se dirigem até o lugar onde esperam o diretor geral do CACH e outras autoridades do campus.
FonteAlma Colegial, n. 81
Da esquerda para direita: Coronel Joaquín Valenzuela Machado; sua esposa; esposa do Intendente Regional; General Roberto Soto McKinney; Primeira Dama; General Augusto Pinochet Ugarte; presidente da União Chilena da Igreja Adventista, Pr. Werner Mayr Braüer; esposa do diretor geral do colégio e o diretor geral do CACH, Pr. Sergio Olivares Peña. FonteAlma Colegial, n. 81
Presidente General Augusto Pinochet Ugarte dirigindo a palavra à comunidade do Colégio. Fonte: Alma Colegial, n. 81.
Depois do discurso do pastor Sergio Olivares, o abraço com o Presidente da República. FonteAlma Colegial, n. 81

A visita, que foi transmitida em rede nacional, ocorreu em um momento oportuno para ambos os lados.7 Os adventistas, a partir de então conhecidos como amigos do presidente, conferiram a Pinochet a fonte de legitimidade religiosa que lhe faltava, já que o general estava sob ataque do cardeal católico pelos desaparecimentos e casos de tortura em seu governo. A IASD, por sua vez, colheu os benefícios da nova amizade: a estrada de terra que levava ao colégio foi pavimentada, e no ano seguinte foi autorizada a criação do Instituto Profissional Adventista (IPA), com mais seis cursos de formação superior. Hoje o colégio, que é uma universidade autônoma desde 2002, tornou-se um centro acadêmico de excelência: só em 2019 estiveram matriculados mais de 2 mil alunos de graduação, e 94 de pós-graduação. 

Zelota entrou em contato com o Pr. Sergio Olivares e com a assessoria de comunicação do UNACH para conseguir mais informações sobre os acontecimentos, mas não obteve resposta até a data de publicação desta matéria.

Homenageando profissionais da violência

As eleições presidenciais no Brasil em 2018 foram das mais conturbadas na história recente do país. Ápice de uma crise política na Nova República, iniciada com o golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Rousseff em 2016, o período foi marcado pela violência, prometida ou concretizada: num ano em que a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco foi assassinada numa trama ainda não resolvida (mas com o envolvimento de milícias locais), o futuro presidente Jair Bolsonaro, na época candidato de extrema-direita possivelmente conectado a milícias cariocas, foi vítima de um atentado em plena campanha presidencial. Enquanto era carregado por apoiadores num comício em Juiz de Fora, Bolsonaro foi esfaqueado no abdômen por Adélio Bispo de Oliveira, que foi declarado portador de transtornos mentais e internado em um presídio federal por tempo indeterminado. Em uma entrevista a respeito do ocorrido, o general e futuro vice-presidente de Bolsonaro, Hamilton Mourão, acusou o partido da oposição pelo atentado e disse: “Se querem usar a violência, os profissionais da violência somos nós”.

Esta não foi sua primeira e nem seria sua última declaração polêmica. O general já tinha sugerido a possibilidade de uma intervenção militar em 2017, enquanto falava num evento da maçonaria: “Ou as instituições solucionam o problema político, ou então nós teremos que impor isso”, disse. Aquele ano ainda não era o momento, de acordo com seus “companheiros” do Alto Comando do Exército, mas a “intervenção” poderia ocorrer após “aproximações sucessivas”. Essas aproximações, que já ocorriam no governo de Michel Temeratingiram no governo Bolsonaro níveis jamais vistos desde a ditadura civil-militar. 

Os jornalistas Pedro Marin e André Ortega chamaram essas aproximações de “Carta no Coturno”, em livro homônimo:8 entendendo que a guerra “está sempre no horizonte da política”, as elites se adiantam e, sob os auspícios da legalidade e da “democracia”, se preparam para guerrear. Os militares, sendo oficialmente os “profissionais da violência” em uma democracia moderna, são a última fronteira entre o poder real e o “poder ideal” da república liberal, e por isso tornaram-se os fiadores do poder no Brasil — segundo Marin, a tutela destes sobre a política nacional se manteve mesmo depois da redemocratização nos anos 80, e agora torna-se explícita novamente. “Aliás, poder-se-ia dizer que a história mostrou serem as Forças Armadas mais permanentes do que o Estado, pois elas criaram o Estado de 1891, o de 1934, o de 1946 e o de 1964 em diante, enquanto continuavam ‘permanentes’.”9

Uma vez compreendidas a força e a importância do Exército na política brasileira, o bolsonarismo pode ser compreendido pelo que realmente é: um fenômeno subordinado aos militares, e não o contrário. “O problema é que, apesar de néscio, Bolsonaro não é forte – mas está rodeado por quem é. Serve tão somente como um entreposto de poderes, e talvez por isso seja tão néscio. Para os militares, serviu como salvo-conduto para entrar no governo, em troca destes servirem para cobrir sua retaguarda de um possível processo de impeachment”, argumenta o jornalista Pedro Marin em um de seus artigos

E que princípios guiam as ações de nossos generais? Um “medo hobbesiano” da desordem social,10 representada por quaisquer movimentos ou classes sociais que não estejam contentes com sua posição subalterna e miserável na sociedade. A Doutrina de Segurança Nacional (DSN) é uma “concepção ideológica […] militar do Estado que explica a importância da ‘ocupação’ de instituições estatais por parte dos militares, que seriam o pilar mais sólido da ordem social e da preservação política”, e “está no cerne da formação do pensamento de nosso Exército” explica André Ortega, coautor do livro supracitado.11 De acordo com a DSN, sempre geopoliticamente alinhada aos EUA, cabe ao Exército “na grande cruzada internacional contra o comunismo garantir a sangria das fileiras vermelhas dentro das próprias fileiras antes de um ‘confronto final”’. Ou seja, “já não cabe ‘mediar’ conflitos, mas perseguir”; isso porque o “subversivo não é um marginal, um elemento secundário, mas o inimigo central de toda existência civilizada ‘judaico-cristã””.12 

Mourão encarnou e atualizou com eloquência a DSN em agosto de 2018, numa palestra no banco de investimentos BTG Pactual que serviu como uma espécie de análise de conjuntura. Chamando os EUA de “irmão do norte”, Mourão contempla a formação de uma Segunda Guerra Fria, a possibilidade catastrófica de “guerras climáticas”, e enxerga a pobreza como um problema de segurança nacional, a ser controlado socialmente através das armas. O general também deixou transparecer certa insatisfação com nossa democracia, que estaria ultrapassada. “O sistema político que nós temos hoje, ele está esgotado”, afirmou Mourão. Esse descontentamento com a política republicana brasileira voltaria a transparecer em outra de suas falas — dessa vez no Centro Universitário Adventista de São Paulo, campus Engenheiro Coelho, na Aula Magna de 2019.
A Aula Magna dada por Hamilton Mourão, na tarde de 21 de agosto de 2019, foi o clímax de uma longa visita, onde, escoltado por líderes como o reitor Pr. Martin Kuhn e o diretor do campus Pr. Antônio Marcos, o general inaugurou o Núcleo da Saúde em Engenheiro Coelho. “Em 2019, o Unasp-EC passou a oferecer os cursos de Psicologia e Farmácia. Esse núcleo será ampliado em 2020 com o início da graduação de Medicina Veterinária e previsão de Odontologia para 2021”, diz a matéria no site da universidade. O curso de Odontologia, cuja autorização para abertura constava como pendente no MEC pelo menos até 2018, faz parte de um núcleo que o UNASP há anos visa expandir: de acordo com o Pr. Paulo Martini, ex-diretor do campus que fez campanha para Bolsonaro no púlpito em 2018, eles esperavam na época “que um próximo governo mude essas regras e que nós possamos novamente nos candidatar [a abrir Medicina]”.

A direção da universidade não poupou esforços para que a palestra de Mourão estivesse lotada: além de oferecer horas complementares aos alunos que comparecessem, estudantes que não quiseram se identificar relataram à Zelota que a energia elétrica dos dormitórios teria sido completamente desligada durante a Aula Magna. O general foi recebido na igreja com cânticos de corais e até com versos da música “Quero Pedir”, recitados no púlpito por uma criança. De fato, para a direção do UNASP, qualquer voz que não fosse institucional já seria ousada demais: em entrevista à Zelota, um estudante de jornalismo do campus que não quis se identificar relata ter feito uma cobertura do evento com outros estudantes da área, mas teve a publicação da matéria barrada pela direção sem qualquer justificativa.

Aviso colocado nos dormitórios, comunicando o horário da Aula Magna e o desligamento da energia. Fonte: foto retirada por aluna anônima do internato.

Iniciada a palestra, o general, em outra de suas análises de conjuntura, misturou sua insatisfação com o sistema partidário (que ele chama de “caótico”) e com a Constituição de 1988 (supostamente responsável pela crise econômica atual) a teorias da conspiração e negacionismo ambiental: ele declara que há “20 mil cubanos na Venezuela controlando as milícias e a inteligência”, e sugere, em meio a uma crise ambiental e incêndios que assolavam a floresta amazônica na época, que o desmatamento da Amazônia não chega perto dos 20% permitidos pela lei. Mourão ainda usou a palestra para defender a necessidade de uma Reforma da Previdência nos moldes do Chile de Pinochet, e prometeu privatizar o que puder ser privatizado. “As pessoas podem perder tudo, menos a fé”, disse o general enquanto era aplaudido efusivamente. 

Em resposta à Zelota, a assessoria de comunicação do UNASP afirmou que “a visita do general teve como objetivo apresentar a qualidade de ensino e infraestrutura do UNASP. Sobretudo, o UNASP não interfere em posicionamentos políticos/partidários/ideológicos de autoridades públicas convidadas.” Ela ainda explica que “como uma Instituição de Ensino Superior, somos submetidos ao Ministério da Educação (MEC), do Governo Federal, portanto, desde sua fundação, o UNASP se relaciona com as autoridades constituídas no âmbito federal, estadual e municipal, assim, a visita do Mourão fez parte dessa prática institucional.” Ela não respondeu, no entanto, a respeito da relação da visita com a aprovação de novos cursos, e tampouco respondeu qual o objetivo do desligamento da energia nos dormitórios do internato.

Não é possível servir a dois senhores

Em 1947, após o final da 2ª Guerra Mundial, o presidente da Associação Geral (AG), J. L. McElhany, pediu a Adolf Minck, presidente da IASD alemã, que tomasse as medidas corretivas necessárias para tirar elementos nazistas da liderança da igreja. Um ano depois, uma carta insatisfeita do governo norte-americano seria enviada para a Associação Geral; a igreja adventista era “uma das poucas em Berlim que ainda não fez a limpa até o momento. A maioria das denominações já cumpriu essa tarefa há tanto tempo que até se esqueceu do assunto.” A carta ainda comparou à IASD negativamente aos católicos; estes “na verdade tinham muito pouco a limpar, devido a sua forte oposição a todo o regime nazista durante o reinado de Hitler.”13 O próprio presidente da IASD alemã não colaborava: de acordo com um observador da AG no pós-guerra, Adolf Minck passava “mais tempo defendendo as ações dos membros que tentando mudá-las”, e criticava os poucos que admitiam seus erros. A polêmica se arrastou por anos a fio, e um pedido oficial de desculpas só foi publicado pela IASD alemã em 2005, 60 anos depois do fim da guerra.

Por que foi tão difícil para a IASD alemã reconhecer seus erros? Uma das razões está presente mesmo em nossos posicionamentos oficiais, e em última instância resulta em casos como os que observamos acima. O raciocínio dos líderes adventistas alemães colocava a integridade institucional acima de seus princípios e consciências, e preservar a igreja contra a ilegalidade e perseguições tornou-se o principal motivador de suas ações. Como diria Minck a McElhany, “nós quisemos ser leais a Deus, e ainda assim obedecer às autoridades como servos de Deus. E quisemos proteger a igreja do perigo”. 

A queda moral da igreja adventista na Alemanha, no Chile e no Brasil é o resultado final de uma prática que, eufemizada como respeito às autoridades constituídas, equivale a pouco mais que uma relação clientelista com o governo — sistema no qual políticos profissionais oferecem, em troca de apoio e legitimação (consenso eleitoral), todo tipo de assistência pública ao seu alcance (posições públicas, financiamento, autorizações etc.), enquanto as instituições beneficiadas satisfazem seus interesses corporativos com recursos ou autorização estatais.14 Naturalizada em períodos democráticos para a obtenção de favores, essa relação se cristaliza em ditaduras para assegurar a sobrevivência da instituição, o que explica em parte a dificuldade que a AG teve ao lidar com seus líderes alemães: “quem não é um cliente, que atire a primeira pedra”, Minck talvez pensasse.

E que opção nos resta enquanto igreja além do clientelismo? A história da igreja adventista oferece exemplos positivos: o empresário adventista holandês John Weidner salvou mais de 800 judeus através do movimento secreto de resistência Dutch-Paris, enquanto o pastor húngaro László Michnay salvou mais de 50 judeus em aliança com sua igreja local. Estas iniciativas partiram de membros e ministros corajosos na base popular da IASD, e nos trazem a esperança de caminhos melhores para seguirmos enquanto igreja.

Mas a Bíblia também oferece alternativas interessantes, de acordo com Richard A. Horsley, professor emérito de Línguas Clássicas e Religião na Universidade de Massachusetts e especialista em sociologia do Novo Testamento. O ministério de Jesus e dos apóstolos foi feito dentro de um dos maiores e mais cruéis impérios que já existiu — o Império Romano, cuja hierarquia política baseada em relações de patronos e clientes é praticamente a origem do termo “clientelismo”. De acordo com Horsley,15 as cartas de Paulo eram profundamente subversivas e desafiavam a ordem imperial, para a qual César era deus e patrono de todos: enquanto as assembleias políticas romanas (ekklesia, que hoje traduzimos como “igreja”) eram profundamente hierarquizadas e dominadas por patronos que detinham poder, dinheiro e prestígio, Paulo encorajava a formação de assembleias paralelas onde as pessoas se conectavam por laços horizontais de solidariedade, e não por relações verticais de favores e dívidas. É isso que significava, em última instância, “sair do mundo” — abandonar círculos onde reinavam formas corrompidas de relacionamento entre seres humanos e se engajar na criação de sociedades alternativas. 

Jesus, então, teria sido ainda mais subversivo:16 o ministério do Messias, realizado predominantemente entre camponeses analfabetos, desafiava abertamente a ordem imperial representada pelo sacerdócio e a ocupação romana da época. Jesus revitalizava o espírito comunitário de aldeias destruídas pela opressão imperial, e só aceitava em suas fileiras os ricos que abrissem mão do favor de Roma e compartilhassem suas riquezas com os pobres (Mt. 19:16-30, Lc 19:1-10). Afinal, se o “reino de Deus está entre nós” (Lc. 17:20-21), por que esperar por favores de reinos do mundo? Por que bajular reis que esmagam os filhos do Rei do universo? A resposta de Jesus, registrada em Mateus 22:21, não é dogma, mas um convite ao diálogo: somos nós que decidimos o que pertence a Deus e o que pertence a César, com a ajuda da Bíblia e do Espírito Santo. Possamos dar-Lhe a resposta certa, para que a salvação finalmente entre em nossas casas.

Notas:

1.  Blaich, R. “Health Reform and Race Hygiene: Adventists and the Biomedical Vision of the Third Reich”. Church History, 65(3), 1996, p. 425-440.

2.  Blaich, R. “Religion under National Socialism: The Case of the German Adventist Church”. Central European History, 26(3), 1993, p. 255-280.

3.  Alomia, Harold. “Fatal Flirting: The Nazi State and the Seventh-day Adventist Church”. Journal of Adventist Mission Studies, Vol. 6, No. 1 (2010), p. 2-14.

4.  Adventist Review, 28 de maio de 1981, p. 24 (512).

5.  Adventist Review, 29 de outubro de 1981, p. 14 (1038).

6.  A transcrição do discurso pode ser encontrada em Alma Colegial, n. 81, p. 98.

7.  Lawson, Ronald. “Church and State at Home and Abroad: The Evolution of Seventh-Day Adventist Relations with Governments”, p. 301. Journal of the American Academy of Religion, Vol. 64, No. 2 (Verão, 1996), p. 279-311.

8.  Marin, Pedro; Ortega, André. Carta no Coturno: A volta do Partido Fardado no Brasil. São Paulo: Baioneta, 2019.

9.  As Forças Armadas na Constituição. Em: FERREIRA, Oliveiros. Forças Armadas Para Quê? Rio de Janeiro: Grd, 1988, p. 121.

10.  Marin & Ortega, 2019, p. 31-40.

11.  Ibid., p. 111.

12.  Ibid., p. 114.

13.  Blaich, 1993.

14.  Bobbio, Norberto; Matteuci, Nicola; Pasquino, Gianfranco, ed. Dicionário de política, trans. VARRIALE, Carmem. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004, p. 177-179.

15.  Horsley, Richard A. Paulo e o Império: Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004.

16.  Horseley, Richard A. Jesus e o império: O reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2003.

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