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A passagem de Gênesis 6:1-4 é um dos textos mais debatidos das Escrituras, pois descreve um episódio misterioso: “os filhos de Deus” tomaram para si “as filhas dos homens”, gerando descendentes conhecidos como gigantes ou nefilins. Para alguns, essa narrativa é simbólica ou meramente mitológica. Entretanto, uma análise honesta do texto original, do contexto bíblico e das tradições judaicas antigas indica que o relato deve ser entendido de forma literal — descrevendo seres celestiais reais que se corromperam, unindo-se fisicamente a mulheres humanas, o que gerou uma raça híbrida violenta.
O termo hebraico bene ha-Elohim, traduzido como “filhos de Deus”, é usado em outros lugares do Antigo Testamento — como em Jó 1:6; 2:1; 38:7 — sempre para se referir a seres espirituais, membros da corte celestial. Não há razão textual para alterar esse sentido em Gênesis 6. A tentativa de reinterpretar essa expressão como “filhos de Sete” (linha piedosa) ou “príncipes humanos” surge apenas séculos depois, principalmente como reação de intérpretes que desejavam afastar qualquer ligação entre anjos e procriação física. Contudo, os escritores antigos, tanto judeus quanto cristãos, entendiam essa narrativa de forma literal. O Livro de Enoque, que circulava amplamente no judaísmo do Segundo Templo, descreve detalhadamente a queda dos “Vigilantes” — anjos que abandonaram sua habitação celestial e tomaram esposas humanas, ensinando-lhes artes proibidas e gerando descendentes gigantes.
Essa leitura é confirmada por Judas 6-7 e 2 Pedro 2:4-5, que associam a queda de certos anjos a um pecado sexual comparável ao de Sodoma. O apóstolo Pedro liga esse episódio diretamente aos dias de Noé, mostrando que a corrupção provocada pelos “filhos de Deus” foi um fator determinante para o julgamento global do dilúvio. O Novo Testamento não suaviza o texto, mas o reafirma, reforçando sua literalidade.
A objeção mais comum contra essa visão é a de que “anjos não se casam” (Mateus 22:30). No entanto, Jesus estava falando sobre anjos fiéis no céu, não sobre seres celestiais que abandonaram seu estado original para pecar. Judas 6 enfatiza exatamente que esses anjos “não guardaram o seu estado original”, transgredindo os limites estabelecidos por Deus. Ao assumir forma física, puderam realizar atos que, no céu, seriam impossíveis ou proibidos.
Os resultados dessa união ilícita foram os nefilins, descritos como “homens poderosos” (gibborim), guerreiros de fama. A Septuaginta traduz nefilim como “gigantes” (gigantes), e a tradição judaica preservada no Targum, no Livro dos Jubileus e no próprio 1 Enoque confirma que eram seres de grande estatura, força e maldade. A violência e a corrupção moral que se espalharam na Terra foram tão intensas que Deus determinou o juízo do dilúvio, preservando apenas Noé, cuja genealogia era “pura” (Gn 6:9) — o que pode indicar não apenas integridade moral, mas também ausência da corrupção genética causada por essa hibridização.
As tradições judaicas posteriores, como o Midrash e escritos de Filon de Alexandria e Josefo, sustentam que os “filhos de Deus” eram anjos e que o resultado dessa união antinatural foi uma distorção do plano divino para a humanidade. Entre os primeiros cristãos, autores como Justino Mártir, Irineu de Lião, Tertuliano e Lactâncio mantiveram a interpretação literal, associando a narrativa de Gênesis 6 à origem de muitos demônios e espíritos malignos, resultantes da morte dos gigantes.
Portanto, a defesa da literalidade de Gênesis 6 não é um capricho moderno, mas a restauração de uma leitura coerente com o hebraico bíblico, com o restante da Escritura e com a compreensão histórica dos crentes ao longo dos séculos. Negar essa literalidade frequentemente significa impor ao texto uma filosofia naturalista ou uma teologia que tenta eliminar o elemento sobrenatural das Escrituras. Porém, aceitar a narrativa como literal nos leva a compreender melhor o contexto espiritual do dilúvio, a gravidade da corrupção antes dele e a continuidade da batalha entre o Reino de Deus e as forças espirituais do mal ao longo de toda a história bíblica.
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Referências:
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1 Enoque (tradição etíope)
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Livro dos Jubileus
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Targum Pseudo-Jônatas
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Filon de Alexandria, De Gigantibus
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Flávio Josefo, Antiguidades Judaicas 1.3.1
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Judas 6-7; 2 Pedro 2:4-5; Jó 1:6; 38:7
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Vailatti, Carlos Augusto. Os Filhos de Deus e as Filhas dos Homens: as várias interpretações dadas a Gênesis 6:1-4
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Cabral, João Lucas Régis. Judas e a estranha carne dos anjos sodomitas: o pecado de Sodoma em Judas lido através do mito dos Vigilantes
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Vieira da Silva, Ângelo. A literatura apocalíptica e o Livro dos Vigilantes