A Etiópia é uma das terras mais enigmáticas e fascinantes do mundo. Única nação africana que jamais foi colonizada pelos impérios europeus, ela guarda em suas montanhas e mosteiros uma herança espiritual milenar, profundamente entrelaçada com a história bíblica. Muitos a consideram o berço da humanidade, pois foi em seu solo que arqueólogos encontraram o fóssil de Lucy, o mais antigo ancestral humano já descoberto.
Mas o verdadeiro tesouro da Etiópia não está apenas nas suas rochas antigas — está na fé do seu povo. Os cristãos etíopes negros preservaram, com coragem e fidelidade, a verdade divina, resistindo à pressão de impérios, de invasores e até das potências religiosas da Europa. Enquanto o cristianismo ocidental se desviava de várias práticas originais, a Igreja Etíope Tewahedo permaneceu guardando os mandamentos de Deus em sua forma mais pura — inclusive o Sábado do sétimo dia, instituído na Criação e escrito pelo próprio dedo do Senhor.
Durante séculos, seus monges, sacerdotes e fiéis mantiveram as Escrituras em língua antiga (ge’ez), preservaram os cânticos e rituais da Antiga Aliança e nunca deixaram de honrar o dia santificado por Deus desde o Gênesis. Para eles, o sábado continua sendo o “selo do Criador”, um memorial vivo da Criação e da fidelidade eterna.
Além disso, a Etiópia deveria ocupar um lugar de mistério e reverência na imaginação de todo o mundo cristão. Há lendas que afirmam que a Arca da Aliança — o cofre sagrado que guardava as tábuas dos Dez Mandamentos — teria sido levada para lá há milênios, onde até hoje seria mantida sob proteção divina. Os etíopes se consideram herdeiros diretos da fé de Israel, descendentes da Rainha de Sabá e do rei Salomão, portadores de uma linhagem espiritual que atravessa os séculos.
E como se tudo isso não bastasse, uma das versões mais antigas e ilustradas da Bíblia é protegida e preservada em solo etíope, lançando luz e comprovando a ligação entre essa nação e a história da revelação divina. Esse documento revela detalhes perdidos da antiguidade bíblica e serve de ponte entre o tempo dos patriarcas e a fé dos primeiros cristãos africanos.
Assim, a Etiópia se ergue como um farol da fé antiga e da perseverança espiritual do povo negro, que manteve acesa a chama da verdade em meio às trevas da história. Seus monges e sábios provaram que a obediência a Deus vale mais que o poder dos reis e mais que as imposições dos impérios. E entre todas as heranças que legaram ao mundo, nenhuma é mais preciosa que esta:
“O Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.” (Gênesis 2:3)
Cristãos etíopes ainda guardam o sábado?
Sim, muitos cristãos etíopes mantêm o sábado do sétimo dia como dia de guarda, especialmente dentro da Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo, que é uma das mais antigas tradições cristãs do mundo.
Explicando:
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A Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo tem uma herança muito próxima do judaísmo bíblico, herdada dos tempos em que o Antigo Testamento tinha forte presença na cultura etíope.
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Por isso, eles guardam tanto o sábado (sábado judaico) como o domingo (dia da ressurreição de Cristo).
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O sábado é visto como um dia sagrado de descanso e adoração, em memória da Criação e da Lei mosaica.
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O domingo é celebrado como o dia da nova aliança e da ressurreição.
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Em termos práticos:
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Os fiéis costumam frequentar os serviços religiosos no sábado, abster-se de trabalho e guardar o dia com reverência.
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No domingo, também há celebrações litúrgicas — é um dia de alegria e comunhão.
Contexto histórico:
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Essa prática vem desde os primeiros séculos do cristianismo na Etiópia, quando a fé foi introduzida (por volta do século IV, sob o rei Ezana).
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Diferente da cristandade ocidental, que mais tarde abandonou o sábado, a Igreja Etíope nunca rompeu com essa doutrina bíblica.
Portanto, sim, os cristãos etíopes — especialmente os ortodoxos — ainda observam o sábado do sétimo dia, ao lado do domingo, como dias distintos com significados complementares.
Como os cristãos etíopes guardam o sábado?
Resumo claro e documentado sobre como a guarda do sábado aparece nos textos e na liturgia da Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo, com trechos e contexto histórico.
️ 1. Fundamento histórico e doutrinário
A Igreja Etíope Tewahedo segue uma tradição que combina Antigo e Novo Testamento de modo literal e contínuo. Isso se reflete no respeito simultâneo ao sábado (Criação e Lei) e ao domingo (Ressurreição).
✍️ “Nós guardamos o sábado por causa da Criação, e o domingo por causa da Ressurreição.”
— Abuna Giyorgis de Sägla, teólogo etíope do século XV.
Essa frase, frequentemente citada nos estudos etíopes, resume a teologia prática da dupla guarda.
2. O Fetha Negest (A “Lei dos Reis”)
O Fetha Negest, compilado no século XIII (traduzido do árabe e amplamente usado como código canônico na Etiópia), contém instruções legais e eclesiásticas sobre o sábado.
Fetha Negest, cap. 16 (tradição etíope):
“O sábado será honrado conforme o mandamento, pois nele Deus repousou de suas obras. Que ninguém trabalhe ou cause trabalho, mas se entregue à oração e à leitura das Escrituras.”
O texto deixa claro que o sábado é parte da ordem moral, não apenas cerimonial, e deve ser observado junto com as festas cristãs.
⛪ 3. A liturgia sabática etíope
Nos livros de orações e cânticos (Deggwa), há hinos específicos para o sábado, chamados Zema Sanbat, que exaltam o descanso divino e a harmonia da Criação.
Trecho traduzido do Zema Sanbat (liturgia tradicional em ge’ez):
“Abençoado é o sétimo dia,
dia em que o Senhor repousou de todas as Suas obras.
Nele os justos encontram paz,
e a terra se alegra sob o brilho do Criador.”
Esses hinos são cantados nas vigílias de sexta para sábado — um costume que ecoa o modelo judaico, onde o dia começa ao pôr do sol.
4. Prática atual
Até hoje, nas aldeias e mosteiros etíopes:
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O sábado é guardado com abstinência de trabalho e jejum parcial, terminando com celebração eucarística.
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O domingo segue como dia festivo, com procissões, música e comunhão.
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Alguns mosteiros e comunidades rurais não realizam atividades agrícolas aos sábados.
Pesquisadores como Sergew Hable Selassie (The Church of Ethiopia, 1970) e Getatchew Haile (A Study of the Sabbath in Ethiopian Church Tradition, 1988) documentam que essa dupla observância permanece viva entre fiéis e monges.
5. Síntese teológica
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Sábado: memorial da Criação e da Lei de Deus.
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Domingo: memorial da Ressurreição e da redenção em Cristo.
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Ambos formam, na visão etíope, “os dois pilares do descanso de Deus” — um natural e outro espiritual.
“Quem profana o sábado nega a criação; quem despreza o domingo nega a ressurreição.”
— Homilia Etíope de São Takla Haymanot (séc. XIII).
Cristãos etíopes já enfrentaram e resistiram a um decreto dominical
Essa parte da história é uma das mais fascinantes e pouco conhecidas do cristianismo mundial, pois mostra como a Igreja da Etiópia resistiu à tentativa de Roma de abolir a guarda do sábado.
Abaixo está o resumo completo, com contexto, nomes e citações históricas.
⚔️ CONFLITO ENTRE A IGREJA ETÍOPE E ROMA
Século XVI – “A Guerra do Sábado”
️ 1. Contexto inicial
No século XVI, o imperador etíope Lebna Dengel (conhecido pelos portugueses como “David II”) buscava ajuda militar contra invasões muçulmanas vindas de Adal. Em troca dessa aliança, o Papa e o rei de Portugal enviaram missionários jesuítas para “unificar” a fé etíope com Roma.
Entre eles, o mais famoso foi o Padre Manoel de Almeida e, mais tarde, o Padre Pedro Páez, seguido pelo Padre Afonso Mendes, nomeado Patriarca da Etiópia pelo Papa.
⚖️ 2. O choque doutrinário
Quando os jesuítas chegaram, ficaram surpresos e escandalizados ao descobrir que os cristãos etíopes:
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Guardavam o sábado do sétimo dia (de sexta ao pôr do sol até sábado à noite);
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Circuncidavam seus filhos ao oitavo dia;
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Evitavam carnes consideradas impuras (como porco e mariscos);
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E celebravam tanto o sábado quanto o domingo como dias distintos.
Para Roma, essas práticas eram vistas como “judaizantes” — e deveriam ser abolidas.
3. O decreto do Patriarca Afonso Mendes
Em 1624, Afonso Mendes, o novo patriarca católico imposto pelo Papa, declarou oficialmente:
“O sábado é abolição da graça e retorno à Lei de Moisés;
quem o guardar, será anátema e excomungado.”
Ele ordenou:
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Que todas as igrejas e mosteiros abandonassem o sábado;
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Que os sacerdotes ensinassem o povo a santificar apenas o domingo;
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Que fossem destruídos livros e cânticos ligados ao sábado.
⚔️ 4. Rebelião e resistência
O decreto gerou revolta em toda a Etiópia, especialmente entre os monges e o clero do norte (na região de Tigré e Gojjam). Os mais respeitados monges, como Abba Za-Mikael Aragawi e Abba Takla Haymanot, foram lembrados como defensores da “Lei do Sétimo Dia”.
A oposição cresceu tanto que:
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As comunidades romperam com o patriarca católico;
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Monges e fiéis proclamaram que “melhor morrer do que profanar o sábado de Deus”;
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A guerra civil eclodiu, conhecida depois como “A Guerra do Sábado” (The Sabbath Schism).
5. Expulsão dos jesuítas e restauração do sábado
Em 1632, o novo imperador Fasilidas (filho de Susenyos, que havia se submetido a Roma) expulsou os missionários jesuítas e rompeu oficialmente com o Vaticano.
Ele restaurou a antiga fé etíope e declarou:
“A fé dos nossos pais é pura;
o sábado é o dia da bênção do Criador.
Nenhum estrangeiro nos ensinará a mudar o que Deus santificou.”
Desde então, a Igreja Etíope Tewahedo nunca mais aceitou interferência papal, e a guarda do sábado permaneceu intacta até hoje.
6. Fontes históricas
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“The Jesuits in Ethiopia”, de C.F. Beckingham (Cambridge, 1954)
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“History of Ethiopia”, de E.A. Wallis Budge (Oxford, 1928)
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Relatos de Pedro Páez (publicados em 1627)
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Cartas de Afonso Mendes, arquivadas na Biblioteca da Ajuda (Lisboa)
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Crônicas Reais Etíopes (Kebra Nagast e Fetha Negest)
✝️ 7. Legado espiritual
Essa resistência é lembrada pelos etíopes como um ato de fidelidade à Lei divina acima das pressões humanas. Até hoje, nos mosteiros do Lago Tana e nas montanhas de Lalibela, o sábado é guardado como símbolo da criação e da liberdade espiritual.
“Aquele que guarda o sábado, guarda o selo do Criador.”
— Tradição oral etíope, atribuída a Abba Takla Haymanot.