“Ai de vós, quando todos vos elogiarem, porque os antepassados deles fizeram o mesmo com os falsos profetas.” Lucas 6:26

Nasci em 1962, e desde o meu primeiro choro, parecia que meu roteiro de vida definido por Deus já estava amarrado à fé, à luta e à contradição humana. “Os teus olhos me viram a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos todos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda.” Salmo 139:16.

Sou filho de pais adventistas convertidos pouco antes dos 120 anos do grande desapontamento de 1844, o que parecia indicar em 1964 que logo veríamos Jesus Cristo sobre as nuvens do céu. Aqueles que evangelizaram meus pais, entendiam que a pregação adventista seria quase como uma repetição moderna da pregação de Noé. Acreditava-se que poderia haver um ligação entre esses dois períodos. “Pois assim como foi nos dias de Noé, também será a vinda do Filho do Homem.” Mateus 24:37.

Aos dois anos, fui apresentado à igreja, dedicado ao Senhor, carregado por mãos que acreditavam profundamente na missão. “Ensina a criança no caminho em que deve andar, e, ainda quando for velho, não se desviará dele.” Provérbios 22:6.

Minha mãe, obreira bíblica, mulher simples, guerreira e esposa dedicada, criou seu casal de filhos nos caminhos de Deus, supondo que todos os pastores que conhecia fossem intocáveis “ungidos” do Senhor. Aliás, cresci cercado por pastores que, na minha inocência, eu também  acreditava serem modelos de santidade.

Naquele tempo, o diabo parecia se manifestar furioso durante os cultos — gritos, possessões, escândalos — e a igreja orava, cantava, repreendia, e ele ia embora derrotado. Hoje, parece mais confortável com a IASD, falando suavemente através de pregadores não exorcizados, ocupando púlpitos com naturalidade.

Antes, era fácil discernir quem era o inimigo. Agora, me pergunto se ele não aprendeu a vestir terno e gravata, ocupar púlpitos, falar manso e sorrir com elogios.

Meu pai, Eisenhower, militar e agente de inteligência em comunicação, falava com paixão sobre as doutrinas bíblicas no evangelismo. Ele fundou a igreja do Despraiado, hoje Santa Helena, em Cuiabá, junto com outros irmãos. Doou terreno para a construção da sede da Missão Mato-Grossense. Distribuiu centenas de Bíblias, projetores de slides, financiou pregação, encaminhou muita gente ao batismo.

Era colportor, campeão de vendas por vários anos, campeão também de Recolta repetidas vezes. Pregava com poder, defendia a denominação com energia. Era polemista do tipo que enfrentava debates com outros evangélicos e reformistas. Trabalhou numa das lanchas missionárias que atendiam ribeirinhos e dirigiu um ônibus de atendimento médico pelo interior do Estado.

Convivi com pastores considerados referências: Itanel Ferraz, João Batista, Wesley Blevins, em Cuiabá, Ataliba Huff, Ari de Oliveira, Derli Reis, em Campo Grande, e tantos outros cujos nomes se perderam na memória. Mas foi também no convívio com alguns desses líderes que meu pai descobriu o lado oculto do ministério. Soube de encontros secretos, de pastores amantes da linda cantora esposa de um outro pastor, de sexo em grupo entre obreiros, até mesmo envolvendo filhas do presidente da Missão.

Quando meu pai denunciou, quando ele falou a verdade que ninguém queria ouvir, foi ele quem caiu. Dizem que adulterou. Sem processo, sem defesa, foi excluído publicamente em um sábado, da igreja onde era líder, enquanto minha mãe — professora da Escola Sabatina dos primários — assistia sem entender nada. Hoje acredito que ele foi injustiçado, punido por expor a bandalheira sexual da pastorzada.

No meio desse terremoto espiritual, sofri um acidente de moto que rompeu meu plexo braquial e quase destruiu meu braço esquerdo. Para meus pais, parecia um castigo divino. Minha mãe fez voto de vegetarianismo estrito para que eu sarasse. Meu pai perdeu temporariamente a fé. Eu continuei vivendo, tentando entender onde Deus estava no meio do caos.

Trabalhei como locutor de rádio, fui colportor no Mato Grosso do Sul, ainda muito jovem. Vivia experiências poderosas: pessoas que sonhavam conosco trazendo livros como Grande Conflito e Vida de Jesus. Escrevia artigos à mão, datilografava e enviava para a CPB. Alguns foram publicados. Um dia, entrei numa igreja e vi um pastor usando um artigo meu como texto do seu sermão. Senti que talvez Deus estivesse confirmando meu caminho.

Casei e, com uma filhinha de seis meses, decidi estudar para ser pastor. Colocamos nossas coisas no bagageiro de um Fusca amarelo, cobertas com uma lona de plástico azul, e partimos de Campo Grande para Belém de Maria, Pernambuco.

Estudei um ano no ENA, fiz amigos, convivi com missionários americanos, equatorianos e brasileiros dedicados. O pastor Monteiro, que havia sido um erudito rigoroso, sofrera um acidente e não lembrava mais de sua vasta formação — lembrava apenas do amor de Jesus e promovia grupos de oração e estudo na mata. Eu buscava exatamente isso: consagração e profundidade espiritual.

Ao final do primeiro ano, eu e minha esposa planejávamos estudar em San Martín, na Argentina. Veio a guerra das Malvinas e a fronteira fechou. Sobrou o IAE, onde funcionava o SALT, como opção.

No primeiro dia de aula do segundo ano, ao responder ao professor Orlando Ritter que eu estava ali para servir melhor a Deus, ouvi que eu deveria ter ficado em casa e servido onde estava. Aquilo doeu. Mesmo assim, obtive a melhor média da história do curso teológico até então: 9,93, Summa cum Laude.

O problema era que eu fazia perguntas. Sobre o dom profético, a personalidade do Espírito Santo, a natureza de Cristo. Perguntas que ecoavam pelos corredores. Como eu era o único a insistir, fui chamado à secretaria.

O secretário, Horne P. Silva, chamou-me para conversar e transmitiu o recado do diretor do SALT, Wilson Endruveit: se eu continuasse perguntando, ele bloquearia meu chamado e eu não seria contratado. O tempo passa, e hoje vejo muitos exaltando Wilson Endruveit em prosa e verso, homenageando-o como um grande líder. É curioso como a história seleciona seus heróis.

Recebi dois chamados: Amazônia ou redação da CPB, para onde eu já escrevia artigos. Deixei que escolhessem, acreditando que a Obra era de Deus e Ele dirigia tudo. Conheci bastidores em Tatuí, destaque para a tirania e subserviência ao Sistema do editor Rubens Lessa, manipulação, falsidade, imoralidade…

Decepcionado, dois anos depois, pedi demissão e voltei ao rádio em Campo Grande. Orlando Ritter estava certo: eu serviria melhor a Deus onde já estava.

Com o apoio do irmão Ennis Meier, criei o adventistas.com. Há mais de 30 anos desempenho meu ministério aqui, enquanto trabalho no rádio secular como jornalista e animador. Revolucionamos a igreja com nosso conteúdo na web. Ensinamos os membros a não concordar com tudo. Reagis. Protestar. Discutir.

Entre as vitórias, desmascaramos Tércio Sarli, que não chegou à DSA. Um pastor veio do Rio de Janeiro para me intimidar, com ameaças de morte “da parte de Deus”. Sabotaram meu carro para que eu perdesse o controle da direção. O Todo-poderoso nterveio — o carro parou sozinho, como se alguém o estacionasse.

Um ex-colega de seminário me procurou com proposta indecente: queria comprar o site para recuperar emprego na Obra, como se fosse o herói que derrotou o herege da Internet.

Recebi visitas dignas apenas do pastor Horne P. Silva, que me deu razão sobre a questão da Trindade não-bíblica e agradeceu por revisar seu livro sobre a não obrigatoriedade do dízimo — que nunca foi lançado. Mas existiu! Ele disse que permaneceria no sistema para miná-lo internamente, falando aos anciãos de Igreja. Assad Bechara também me procurou, desejando me utilizar num ministério paralelo de publicações. Depois parece que sumiram com ele.

Quarenta anos depois, vejo meus ex-colegas jubilados, bem de vida, homenageando Wilson Endruveit e outros, enquanto eu continuo aqui, estudando, divulgando ideias dissonantes, mantendo um ministério que muitos fingem não ver, mas que mudou a história adventista no Brasil.

Minha mãe permanece firme na fé, assistindo cultos pelo YouTube e orando como sempre fez: “Querido Deus, amantíssimo Pai, que habita nas alturas dos Céus…” Meu pai, embora limitado pela demência, ainda insiste: “É tudo pela graça de Deus, e Cristo logo vai voltar”.

E eu? Eu continuo aqui. Criticado, ignorado, ridicularizado, chamado de herege, extremista, perturbador. No silêncio do meu teclado, no microfone de rádio secular, no espaço invisível da internet. Sem medalhas, sem homenagens, sem aplausos…

Enquanto gente hipócrita e perseguidora recebe placas, abraços, discursos emocionados, elogios póstumos, eu recebo resistência, ataques, esquecimento. Mas seguimos em frente. Porque nossa motivação nunca foi reconhecimento humano. Foi — e ainda é — a busca sincera por Deus, pela verdade, pela justiça. Foi — e ainda é — fidelidade à verdade e ao Deus que vê o que os homens escondem.

Não desistimos. Alguns têm aplausos. Eu tenho cicatrizes. Mas permaneço. Porque, no fim, não são as homenagens que importam. É quem permanece fiel. E o Senhor conhece os Seus.

E isso basta.

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