REFLEXÃO: O movimento millerita procedia de Deus? Ou Deus faria Sua obra em parceria com Satanás?

A imagem é uma caricatura satírica que representa a “Grande Decepção” do Millerismo, no século XIX. O movimento, liderado pelo pregador batista William Miller, previu a segunda vinda de Jesus Cristo em 1843 ou 1844. A caricatura mostra os seguidores de Miller, conhecidos como milleritas, sendo lançados de uma casa em ascensão (representando a ascensão ao céu) quando a profecia falhou.

Aquela terça-feira, 22 de outubro de 1844, amanheceu carregada de expectativa. Para milhares de cristãos espalhados pela América do Norte, aquele seria o dia glorioso em que Cristo voltaria visivelmente às nuvens do céu. Porém, quando o sol se pôs e a noite avançou silenciosa, nada aconteceu. A tão aguardada Segunda Vinda não se materializou. O resultado foi devastador.

O milerita Hiram Edson registrou com palavras que ecoam até hoje a dor coletiva daquele momento: “Nossas mais caras esperanças e expectativas foram frustradas, e um espírito de luto nos dominou como nunca antes… Choramos, e choramos, até o amanhecer.” Não se tratava apenas de decepção; era um colapso emocional, espiritual e identitário. Todo o edifício teológico construído ao redor das datas e cálculos proféticos de William Miller parecia desmoronar diante de seus olhos.

E, no entanto, algo extraordinário aconteceu. Em vez de abandonarem a fé, muitos milleritas escolheram continuar acreditando — não apenas sem confirmação, mas contra evidências visíveis, exigindo um tipo de fé que se sustenta no invisível. Se desejavam permanecer crentes, teriam de fazê-lo sem qualquer apoio empírico, “mantendo a fé por meio do que não se vê”.

Foi exatamente isso que aconteceu. Aqueles que perseveraram após o Grande Desapontamento, longe de se dispersarem completamente, reorganizaram-se, reinterpretaram sua teologia e redobraram seus esforços. Dessa persistência improvável nasceu a denominação que hoje conhecemos como Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Não é exagero afirmar:

Sem o Grande Desapontamento, não haveria adventistas!

A Bíblia utilizada pela esmagadora maioria dos milleritas — a King James Version — incluía esses livros identificados como “apócrifos” entre o Velho e o Novo Testamento.

Desde 1611, essa inclusão não era opcional: foi determinada por mandato real, e durante mais de dois séculos os protestantes de língua inglesa consideravam os Apócrifos parte integrante de suas Bíblias impressas. Somente no final do século XIX, por pressões econômicas e doutrinárias de sociedades bíblicas, os apócrifos começaram a ser sistematicamente removidos das edições protestantes.

E ao analisar honestamente o período inicial do movimento millerita e dos primeiros adventistas sabatistas — especialmente antes de 1863 — emerge um dado histórico incontestável e cuidadosamente ocultado pela narrativa oficial da Igreja: havia entre eles uma abertura real, declarada e documentada aos Apócrifos, em especial ao livro apócrifo/pseudoepígrafo conhecido como 2 Esdras (ou 4 Esdras).

Essa abertura não foi marginal, acidental ou fruto de curiosidade isolada. Ela surgiu de dentro do movimento e foi promovida por um dos seus nomes mais influentes naquele período: Thomas F. Barry.

Barry tornou-se uma figura chave ao defender publicamente que alguns textos intertestamentários, especialmente 2 Esdras, continham profecias inspiradas e relevantes para os últimos dias. Seus sermões e artigos — como o conhecido “The Day and Hour Now Known”, publicado em 17 de outubro de 1844 no periódico millerita The Voice of Truth — propagaram a ideia de que 2 Esdras não apenas corroborava a interpretação profética de William Miller, mas que possuía autoridade espiritual comparável à das Escrituras do Antigo e do Novo Testamento.

Ou seja:

Quando milhares aguardavam a volta de Cristo naquela terça-feira silenciosa, uma parte significativa da estrutura teológica que os sustentava era moldada por interpretações que usavam textos intertestamentários não apenas como material devocional complementar na KJV, mas com status de fonte profética central, servindo de base para cálculos escatológicos e expectativas doutrinárias.

Isso equivale a dizer que sem os apócrifos não haveria Igreja Adventista hoje

A influência de Barry não se limitou ao seu círculo imediato. Suas interpretações fomentaram um ambiente teológico no qual os milleritas fortaleceram a confiança nessa coleção mais ampla de escritos como realmente inspirados. A partir dos sermões de Barry, arraigou-se uma tendência clara no movimento: reexaminar e ampliar o conceito de Escritura Sagrada, também para os livros intertestamentáios.

Essa abertura encontrou reforço nas visões de William Foy, um profeta milerita amplamente respeitado antes do surgimento público de Ellen Gould Harmon (White). As visões de Foy apresentavam paralelos profundos com o conteúdo de 2 Esdras, tanto em estrutura quanto em imagens e temas: viagem guiada por anjo, livro selado, cena de juízo e transição final. Para muitos mileritas, o fato de um profeta reconhecido relatar visões que refletiam diretamente um texto apócrifo serviu como confirmação implícita de sua inspiração.

Mesmo após a chamada Grande Decepção, em 1844–1845, quando vários ensinos de cronologia escatológica falharam, o uso e a valorização dos Apócrifos não desapareceram. Ao contrário: alguns milleritas reinterpretaram as profecias, mas mantiveram 2 Esdras como escritura inspirada. Esse movimento de continuidade demonstra que a aceitação dos Apócrifos como inspirados não foi um acidente temporário, mas um elemento estruturante para uma parte significativa do pensamento millerita.

Assim, dentro do contexto mais amplo do movimento — caracterizado por expectativa apocalíptica intensa, busca por novas revelações e reinterpretação constante das profecias — a ampliação do cânone entre alguns de seus líderes e seguidores se tornou um desenvolvimento central e determinante.

Em outras palavras:

– Thomas F. Barry promoveu ativamente 2 Esdras como inspirado.
– Suas interpretações estimularam outros a reconsiderar o cânone.
– William Foy reforçou essa aceitação com visões paralelas ao texto apócrifo.
– Após 1845, vários mileritas continuaram aceitando esses escritos como escritura legítima.
– Isso criou uma visão mais abrangente do que constituía “Palavra de Deus” para muitos pioneiros.

Esse quadro coloca uma questão inevitável e desconfortável para qualquer adventista honesto:

Se Deus estava guiando o movimento millerita, e se parte significativa dos seus líderes e profetas defendia e utilizava textos apócrifos como inspirados, então:

O movimento millerita procedia de Deus?

Porque a implicação lógica é inescapável:

Se procedia de Deus, então devemos reconhecer que Deus validou e utilizou os Apócrifos, especialmente 2 Esdras, como instrumento de revelação e confirmação profética. Portanto, o adventismo histórico deveria retornar àquilo que seus próprios pioneiros aceitaram como inspirado.

Se, por outro lado, rejeitamos os Apócrifos como satânicos, perigosos, falsos ou corrompidos, então estamos afirmando que a origem do movimento millerita e da Igreja Adventista está contaminada, e que Deus teria conduzido Seu povo usando materiais que hoje se afirma procederem de Satanás.

E isso levanta o ponto final e inevitável:

Deus faria Sua obra em parceria com Satanás?

Adventistas, respondam.

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