Série: Descobrindo as Riquezas da Teologia da Criação no Gênesis
5. O Padrão Rítmico de Ação — Trabalhar e Descansar em Deus

Por Edegard Silva Pereira

 

A teologia da criação lança as bases de um padrão rítmico de ação semanal, que consiste em trabalhar e descansar em Deus. Porque são aí conceitos antropológicos, as palavras trabalho e descanso ampliam os enunciados do mandamento do sábado, e trazem a tona prioridades, dignidades e idéias que são outras tantas novidades no mundo antigo e ainda desafiam o mundo moderno dos negócios.

 

O padrão rítmico de ação semanal

Com a concisão característica dos primeiros capítulos, Gênesis (2:2 e 3) o apresenta assim:

E, havendo Deus terminado no dia sétimo sua obra, que fizera, descansou nesse dia de toda a sua obra que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque descansou de toda a obra que, como Criador, fizera.

Este enunciado, que conclui o capítulo 1 (o capitulo 2 deveria começar no verso 4), afirma que o Criador estabeleceu para o ser humano um padrão rítmico de ação semanal semelhante ao que ele usou na criação, que consiste, basicamente, em alternar seis dias de trabalho com o descanso do sétimo dia. Aí este padrão rítmico de ação semanal surge como algo que foi preparado por Deus, já na criação, consumando a provisão de tudo aquilo que o ser humano precisa.

O padrão rítmico de ação semanal acha sua motivação na relação de parentesco que as narrativas estabelecem entre o ser humano e Deus. A  relação de parentesco aparece primeiro em Gn 1:26-28, na expressão "imagem e semelhança". (Traduzida na linguagem de hoje como parecido.) Que ela expressa tal relação de parentesco fica claro em Gn 5:1-3:

No dia em que Deus criou o homem, à semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão [Humanidade], no dia em que foram criados. Viveu Adão cento e trinta anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem, e lhe chamou Sete.

Ou seja, do mesmo modo que Sete era filho de Adão, a humanidade é filha de Deus! É devido ao fato de que o ser humano foi criado como “imagem de Deus” que se requer dele que tenha um padrão rítmico de ação semanal semelhante ao que Deus adotou na criação. Trabalhar e descansar dessa maneira faz que o homem se mantenha próximo de Deus. Pois seguir tal padrão significa trabalhar e descansar como alguém que é “filho” de  Deus, ou como alguém que é “semelhante” a Deus. E denota dar ao trabalho e ao descanso um novo sentido: trabalhar e descansar como “imagem de Deus”.

O que quer dizer trabalhar e descansar como “imagem de Deus”, segundo a intenção da teologia da criação? Certamente seus conceitos de trabalho e descanso não são os mesmos que os de seu ambiente, nem dos que temos hoje no setor produtivo; eles aparecem quando consideramos a maneira como as narrativas foram concatenadas no texto e as projetamos sobre o fundo cultural do Antigo Oriente Médio.

 

Trabalhar como “imagem de Deus”

Os mitos sociais desse ambiente interpretavam o trabalho como uma forma de exploração, porque objetivavam o modo de produção escravista, adotado por todos os povos da região. Por exemplo, o mito babilônico diz que os deuses, para poder dedicar-se a uma vida de prazeres, criaram deuses inferiores a fim de que trabalhassem para eles. Cansados de trabalhar para os deuses principais, os deuses inferiores rebelaram-se. Esse fato obrigou os deuses principais a criar o ser humano, para substituir os deuses inferiores no trabalho. Esse mito expressa a ideologia pela qual a elite babilônica justificava a exploração das classes populares no trabalho.

Mas a teologia da criação fala da criação do ser humano e do encargo dado a este por Deus de modo totalmente diverso. Gn 1:26-28 afirma que Deus criou o ser humano a sua imagem e semelhança, não para ser seu escravo ou servo de outro homem, mas para ser seu parceiro co-responsável na administração do mundo. Logo, o ser humano trabalha como “imagem de Deus” quando acolhe e aproveita devidamente aquilo que lhe foi preparado pelo Criador, e quando realiza a contento as tarefas pelas quais o Criador o tornou responsável —administrar o mundo como parceiro do Criador (Gn 1:26)—,  cuidar das criaturas que o Criador lhe entregou —plantas, animais e a mulher (Gn 2:15-17)—, e usar bem o direito de decisão, que Deus lhe deu, na criação (Gn 2:18-23).

Mas Gn 1:26-28 tem outras implicações: Deus também deu ao ser humano capacidade criativa e liberdade para exprimi-la em um mundo cheio de possibilidades. Se não fosse assim, o homem não corresponderia quanto a ser “imagem de Deus” no mundo, nem poderia instalar-se no mundo, fazendo dele seu lar. Isso quer dizer que o homem, como ser aparentado com Deus, é, à sua maneira, um ser criativo. E o trabalho é o modo que Deus lhe deu para realizar-se como ser criativo.

Nas entrelinhas dos relatos podemos ler que essa realização é impossível quando as pessoas são submetidas à escravidão ou são obrigadas a agir como autômatos, como acontece hoje nas linhas de produção de empresas, nas quais tudo é planejado e decidido pelos patrões, sem a participação dos trabalhadores, visando unicamente o lucro.

Esse tipo de trabalho, além de não realizar as tarefas que Deus atribuiu à humanidade, não realiza o trabalhador como ser humano criativo. Pode até realizar os que exploram as forças do trabalho, mas apenas como aproveitadores sem escrúpulos, cujos meios condenáveis contribuem para destruir o mundo e desumanizar o sistema produtivo. Tampouco oferece ao trabalhador verdadeiro descanso.

Em que sentido o ser humano pode repousar no sétimo dia como “imagem de Deus”?

 

Descansar como “imagem de Deus”

Voltemos a Gn 2:2 — no sétimo dia Deus “descansou”. Se bem essa expressão sugere um leve antropomorfismo, não convém acentuá-lo a ponto de imaginar que o Criador ficou cansado como nós ficamos depois de seis dias de trabalho. Nesse sentido, são oportunas as palavras de Isaías 40:28 — "Será que vocês não sabem? Será que nunca ouviram falar disso? O Eterno criou o mundo inteiro e o governa em todos os tempos. Ele não se cansa, não fica fatigado..." Então, o que significa o repouso de Deus ao qual Gn 2:2 se refere?

Gn 1:28 diz: "E Deus viu que tudo o que havia feito era muito bom”. Logo, “descansou no sétimo dia”. Ou seja, Deus pôde repousar, pois toda a obra e tudo aquilo que o ser humano precisa estava consumado. É importante que o seguinte fique claro: o descanso ao qual se refere o padrão rítmico de ação semanal consiste fundamentalmente em contemplação. Por conseguinte, o homem repousa como “imagem de Deus” quando contempla no sétimo dia a obra realizada nos seis dias anteriores, e pode sentir satisfação e contentamento porque foram cumpridos com responsabilidade os encargos que Deus lhe deu na criação. Em Gn 2:3 está claro: foi este tipo de descanso que Deus abençoou e santificou.

Portanto, este descanso abençoado e santificado foi dado unicamente às pessoas que cumprem com responsabilidade tais encargos divinos, e não a qualquer tipo de trabalho. Não foi dado às pessoas que vivem para correr atrás de status, poder e riqueza, ou as que se dedicam exclusivamente a cuidar de si mesmas, de seu conforto, do que é seu e de seu interesse particular. Só pode repousar como “imagem de Deus” quem trabalha como “imagem de Deus”, isto é, quem trabalha como parceiro co-responsável de Deus na manutenção da ordem da criação e está comprometido com  o bem-estar de todas as criaturas.

Pelo já visto, ficou evidente que a teologia da criação se refere a um repouso semanal, cujo conceito é muito mais amplo e profundo que o conceito atual de dia ou dias de folga. O que os trabalhadores modernos mais buscam nos dias de folga, geralmente dedicando-se ao lazer, é um alivio à pressão para produzir e verem-se momentaneamente livres do tirânico princípio da eficiência. Já  empresários e executivos buscam, nesses mesmos dias, obter um alívio passageiro às tensões provocadas pela competição selvagem entre empresas.

Se empresários e trabalhadores se dedicassem também a contemplar, em seu dia de folga, a maneira como trabalham as empresas modernas, logo descobririam que aquilo que foi preparado pelo Criador não está sendo acolhido e aproveitado, mas estragado. Convém ressaltar o seguinte aspecto positivo do padrão rítmico de ação semanal: a qualidade do trabalho determina a qualidade do descanso, e a contemplação no dia de repouso da obra realizada contribui para melhorar a qualidade do trabalho.   

Acredito que nenhuma outra visão religiosa, filosófica ou científica, confere uma dignidade tal ao ser humano, ao trabalho e ao descanso como o padrão rítmico de ação semanal da teologia da criação. Supera até o mandamento do sábado, como prescrição do dia de descanso, em abrangência e profundidade. Para constatar isto, demos uma olhadela no mandamento do sábado.

 

O sábado

Antes de tudo, convém notar o seguinte: o verbete hebraico que dá seu nome ao dia de repouso no Antigo Testamento é shabat, que significa parar o trabalho, cessar a atividade, e foi traduzido, nas versões em português, como sábado ou sétimo dia..

O Antigo Testamento contém diversos enunciados do mandamento do sábado. Tanto os mais lacônicos quanto os mais elaborados se reduzem a uma frase proibitiva categórica: “Não trabalharás no sétimo dia”. Alguns enunciados, como em Êx 23:12; 34:21 e Lv 19:3, não dizem mais que isso. É no Decálogo que o mandamento do sábado apresenta expressões positivas. No Antigo Testamento encontramos duas grandes formulações desse mandamento, uma em Êx 20:8-11, a mais conhecida, e outra em Dt 5:12-15.

Nas formulações do mandamento do sábado que vou citar a continuação, usarei o nome Javé (em vez da tradução “o Senhor”), como está no original hebraico, de propósito. O estilo antigo das formulações deixa claro quem deu o mandamento (Javé, o Deus de Israel) e para quem o deu  (para o antigo povo de Israel). 

A versão de Êxodo diz: “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar”. A de Deuteronômio só muda levemente e amplia: “Guarda o dia de sábado, para o santificar, como te ordenou Javé, teu Deus”. Em ambas, o sétimo dia se chama expressamente “sábado para Javé” (Êx 20:10; Dt. 5:14). E dizem de que modo deve ser praticado o “lembra-te” e o “santificar” no “sábado para Javé”: “Não farás trabalho”.

Quais são os motivos, segundo as formulações do mandamento, para não trabalhar no sétimo dia? São três.

1) A concepção deuteronômica (Dt 5:15) liga o mandamento do sábado com a tradição antiga de Israel sobre o êxodo do Egito:

“porque te lembrarás que foste servo na terra do Egito e que Javé, teu Deus, te tirou dali com mão poderosa e braço estendido; pelo que Javé , teu Deus, te ordenou que guardasses o dia de sábado. 

Aí o sábado acha a sua motivação numa confissão absolutamente básica para Israel: a libertação do Egito. Em cada dia sétimo Israel deve lembrar que seu Deus é um libertador que soube enfrentar escravocratas cruéis e que sempre terá o poder de enfrentar todos os dominadores de turno que ainda desejarão oprimir o seu povo. Portanto, o sentido básico do repouso do trabalho no sábado é lembrar essa liberdade, concedida como dádiva divina.

2) Já em Êx 20:11 a motivação é outra. Deve-se descansar no sétimo dia

...porque, em seis dias, Javé fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, Javé abençoou o dia de sábado e o santificou.

Segundo este enunciado, o dia de repouso se destina a lembrar ao homem que na criação ele foi provido abundantemente de tudo que é necessário e também de muitas coisas belas. Suas palavras recordam o relato da criação (Gn 2:1-3). O primeiro dia do homem foi de repouso. Só depois de contemplar a plenitude da criação durante o sétimo dia é que o homem começará seu primeiro dia de trabalho. Aqui a dádiva do repouso é a alegria com a criação (descrita em Is 58:13,14).     

3) A terceira motivação para o repouso sabático está no Livro da Aliança, em Êx 23:12, uma outra formulação do mandamento:

Seis dias farás a tua obra, mas, ao sétimo dia, descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho de tua serva e o forasteiro.

A única finalidade do sábado mencionada aqui é digna de nota: nesse dia deve-se prover repouso para as forças trabalhadoras dependentes. Esta formulação se refere a casos limites: o sábado foi instituído por causa dos particularmente esgotados e dependentes. Em primeiro lugar e com comovedora solicitude, são nomeados os animais que trabalham para o homem. E, a seguir, são nomeados os trabalhadores particularmente indefesos contra as ordens dos patrões, o filho da escrava e o trabalhador estrangeiro, os quais com demasiada facilidade são considerados como estando fora do espaço das leis do Deus de Israel.  

Mas as grandes formulações do mandamento sobre o sábado nas versões do Decálogo ampliam mais a dádiva do repouso para os trabalhadores dependentes. Êx 20:10 diz:

...não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu forasteiro das tuas portas para dentro.

A formulação paralela de Dt 5:14 ainda acrescenta: “...para que o teu servo e a tua serva descansem como tu”. O termo hebraico kamoka! significa  “de modo igual como tu!”. E na lei do ano sabático (Lev 25:1-7), Javé provê descanso até para a terra cultivada!

É importante notar os seguintes aspectos do repouso sabático:

1) Os mandamentos básicos que foram dados a Israel são todos benefícios. Propriamente, não são exigências, mas libertam de imposições. O sábado é um sinal lúcido disso, porque exprime a dádiva de tempo livre.

2) No mandamento, o sábado não recebe uma distinção particular quanto ao culto. Caso contrário diria: “Não trabalharás no sétimo dia. Nesse dia prestarás culto a Javé”. O repouso sabático se distingue meramente pela proibição de todo trabalho. Não leva a pensar em obrigações cúlticas, mas nas obras de Deus a favor do ser humano. E de fato, no tempo do antigo Israel, o mandamento sobre o sábado nada tinha a ver com o culto formal ou positivo de Javé.

 

Ampliação do trabalho e do descanso

Pelo já visto até aqui, podemos constatar facilmente que o conteúdo do padrão rítmico de ação semanal amplia e enriquece o mandamento do sábado. E isto se deve ao fato de que a teologia da criação do Gênesis foi elaborada depois dos mandamentos. Lembremos que a revelação é progressiva na Bíblia, e que o Antigo Testamento demorou mil anos para ser escrito, tempo suficiente para reformular e ampliar seus conceitos.   

Para constatar tal ampliação e enriquecimento, bastam quatro exemplos:

1) O mandamento enfatiza o “descanso para Javé”. Nada diz de significativo sobre o trabalho. Entretanto, já vimos isto, o padrão rítmico de ação semanal fala em trabalhar e descansar como “imagem de Deus”, o que dignifica o trabalho e quem o realiza, e dá ao repouso um sentido de responsabilidade para com a criação.

2) Ao enfatizar o repouso, o mandamento do sábado inicia uma equiparação de todos os homens perante Deus apenas no descanso. Prescreve aos israelitas que deixem que seus servos descansem no sétimo dia. Porém, a equiparação não acontece no trabalho — o mandamento admite que os israelitas tenham escravos!          

Na teologia da criação a equiparação é universal. Partindo da afirmação de que a humanidade foi criada como “imagem de Deus”, ela equipara todos os seres humanos não só pela imagem comum, mas também pelos valores fundamentais implicados nessa imagem, como grandeza, destino, igualdade, liberdade e fraternidade. E assim traz a tona prioridades, dignidades e idéias relacionadas com o homem, o trabalho e o descanso, que o mandamento do sábado desconhece. Portanto, dentro da concepção do padrão rítmico de ação semanal não há lugar para a escravidão.

3) A teologia da criação estabelece uma relação entre trabalho e descanso com base no fato de que ambos têm um referencial comum: sem olhar para a obra anterior de Deus na criação, o ser humano não encontra a relação devida nem para com o trabalho, nem para com o repouso. Quanto ao repouso, entende que o sétimo dia deve ser dedicado principalmente à contemplação da obra realizada nos seis dias anteriores de trabalho, a fim de verificar se os encargos dados por Deus ao homem na criação foram cumpridos com responsabilidade. Pois o repouso abençoado e santificado por Deus traz satisfação e contentamento só quando o homem cumpre tais encargos com responsabilidade.

O mandamento do sábado não expressa estes conceitos porque foi dado a Israel e foi formulado de acordo com a ordem de vida tribal muito antiga desse povo. Mas a teologia da criação pertence a outros tempos — tempos de amadurecimento, com um espaço mais amplo para idéias. Sua tocante noção de humanidade compartilhada encoraja o espírito de universalismo.

Juntos, o mandamento do sábado e o padrão rítmico de ação semanal, influenciaram a historia, o processo civilizador. Os povos antigos conheciam feriados e dias festivos, mas nada sabiam sobre um dia semanal regular de descanso. Isso era privilégio único de Israel. Mais tarde, por influência desse povo, a adoção de um dia semanal de descanso se universalizou paulatinamente.

 

O desafio nos dias de hoje

Os conceitos do padrão rítmico de ação semanal ainda desafiam o sistema produtivo moderno?

Sem dúvida, porque hoje vivemos num ambiente empresarial brutalmente competitivo, que exige o máximo de todos em tudo que se faz. A Nova Economia faz exigências impossíveis de ser satisfeitas: qualidade melhor, preço menor, inovações cada vez mais aceleradas. E as pessoas se sentem pressionadas para alcançar objetivos cada vez mais elevados nas áreas do trabalho, da riqueza, do estilo de vida, e a crescer enquanto o fazem. Quando os rendimentos baixos colocam o trabalhador numa situação difícil, o que fazem com ele e aplicar-lhe mais pressão: “Torne-se mais competente. Tente mais, faça um esforço maior e vai dar certo”. Isso tudo gera uma forma de estresse sem precedentes.

Tais exigências e pressões são os argumentos estúpidos que levam muitos a trabalhar tanto a ponto de não poderem mais dedicar atenção à família, de terem sono tranqüilo, refeições calmas e repousar nos dias de folga. São os mesmos argumentos que obrigam pais e mães a ficarem ausentes a maior parte do tempo e a deixam as crianças aos cuidados de terceiros. A família já era. A vida calma também já era. É só agitação, correria, preocupação desgastante. É essa a tão propalada qualidade de vida das sociedades modernas? Na realidade estamos agindo como tolos, imbecis e prepotentes quando pensamos estar praticando um bem verdadeiro ao sacrificar os aspectos mais sagrados da vida em prol... em prol do quê?  

O padrão rítmico de ação semanal ainda desafia investidores, empresas e trabalhadores modernos a reinventarem o trabalho e o descanso, a fim de que contribuam efetivamente para a dignificação do ser humano. Para tal, é preciso que estejam realmente comprometidos com a grandeza, e não apenas com estratégias que garantam lucro a qualquer custo. E é definindo o que significa existir como ser humano em toda interação de trabalho que a grandeza se diferencia da mediocridade.

Mas a questão do descanso não se esgota nos enunciados do mandamento do sábado e do padrão rítmico de ação semanal. Pelo contrário, segundo o Novo Testamento eles preanunciam o descanso completo e definitivo prometido por Deus a seu povo.

 

O descanso completo, definitivo

Nas Escrituras, o descanso do sétimo dia está contido na questão mais ampla da tranqüilidade. E os autores bíblicos falam da tranqüilidade, de modo variado e cada um na sua linguagem, como o grande bem de salvação prometido ao povo de Deus.

No Antigo Testamento, a tranqüilidade significa tanto o descanso depois do tempo sem estabilidade da peregrinação pelo deserto como também o repouso em face de todos os inimigos ao redor (Dt 12:9, 10; 25:19; Js 21:43-45; 2 Sm 7:1, 11; 1 Rs 8:56.) No Sl 95:7-11 o dom do repouso para os indivíduos está ligado à voz de Deus (ver também Hb 4). Estas passagens atestam o fato de que a tranqüilidade do homem é um dom sublime e uma capacidade que não se entende por si, estando unida profundamente à confiança em Deus. Nesse contexto, não é de se admirar que no Antigo Testamento a prescrição do dia de descanso tenha um papel importante. 

A prescrição do dia de descanso (e dos demais sábados) é vista no Novo Testamento como uma dádiva de Deus que cumpre, em medida limitada, a promessa de tranqüilidade e preanuncia seu cumprimento perfeito na obra redentora de Jesus Cristo. E é vista assim devido à natureza provisória das instituições do Antigo Testamento dentro da história da salvação. O que essas instituições preanunciam se realiza em Cristo. Demonstrar isso é o objetivo, por exemplo, dos Evangelhos, das epístolas aos Romanos, aos Gálatas e aos Hebreus.  

Dito de outro modo, o Novo Testamento entende o repouso do sétimo dia como um prelúdio e início do descanso definitivo e completo oferecido por Deus em Cristo. Segundo a Epístola aos Colossenses (2:16 e 17) os sábados, nos quais está incluso o sétimo dia, devem ser entendidos como “sombras do futuro”, o qual se tornou real em Cristo. Por isso, Jesus chama os homens para descansar nele (Mt 11:28), e lhes oferece a sua paz única (Jo 14:27), com a qual designa todo o bem-estar humano. O descanso que antes era “para Javé” no mandamento e como “imagem de Deus” no padrão rítmico de ação semanal, agora é “em Cristo”.(O Novo Testamento atesta que Jesus assumiu as prerrogativas de Javé.) Trata-se de um novo descanso e de um bem-estar de natureza interior, que o mundo não pode dar.

Também é um descanso e um bem-estar dos quais o Antigo Testamento podia oferecer uma dádiva limitada. Conforme já vimos, no sétimo dia a dádiva limita-se ao repouso do trabalho. Nesse dia e dessa maneira, o israelita podia ter parte no repouso que há em Deus. Mas Jesus traz o descanso completo, definitivo, para todos os seres humanos, a saber, o descanso da salvação, o repouso de todos os fardos e males desta vida. O novo descanso não está limitado no tempo, nem a lugar, nem a um povo, porque se encontra disponível em todos os lugares, todos os dias, sem exceção. Neste descanso, segundo a intenção da atividade terrena de Jesus, começamos a participar já agora de uma antecipação da tranqüilidade perfeita do mundo vindouro (Ap 21:4),

O descanso em Jesus é também o descanso da nova criação. A boa notícia no Novo Testamento, que legalistas e fundamentalistas não entendem ou não querem entender, é esta: os que vivem em Cristo não pertencem mais à criação original, que está condenada à destruição, mas a uma nova criação (Jesus é o criador das duas, segundo Jo 1:1-3 e Cl 1:15, 16). Eles não pertencem mais à velha humanidade originada em Adão, mas são novas criaturas em Cristo (Gl 6:15). Para os que estão unidos a Cristo, “as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (2 Co 5:17). Neste contexto, fica claro que o repouso oferecido pelo Antigo Testamento pertence às “coisas antigas” que já passaram, e “se fizeram novas” no descanso em Cristo. 

Neste descanso há uma ampliação não só do repouso, mas também dos aspectos relacionados com ele no mandamento do sábado e no padrão rítmico de ação semanal. A liberdade conquistada pelos cristãos, em Cristo, é completa em relação à liberdade conquistada pelos hebreus, em Javé, no Egito. E a alegria resultante da contemplação do que Deus proveu na criação original se amplia e se completa na alegria pelo que Deus proveu, mediante Jesus Cristo, na nova criação (entre outros, graça abundante, perdão completo, vida nova aqui e agora e vida eterna no reino de Deus).

Conheço gente que aceitou guardar o descanso do sábado segundo a lei de Moisés, mas ainda não aprendeu a descansar em Cristo. E isto acontece, talvez, porque alguns pregadores com tendências judaizantes enfatizam mais o descanso do sétimo dia (atualmente sobrecarregado de cultos e atividades religiosas) que o descanso em Cristo. Essa pobre gente não percebe que repousar no sétimo dia sem descansar em Cristo é próprio de judeus, não de cristãos. Por isso, há guardadores do sábado que não conseguem entrar no descanso completo e definitivo oferecido por Deus mediante Jesus Cristo. 

Minha posição é a seguinte: precisamos sim de um dia para descansar do trabalho; todavia precisamos mais ainda do descanso completo em Cristo, que nos abre o caminho para o gozo da tranqüilidade perfeita no reino vindouro de Deus.

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