
Entre todas as nações da Terra, a Etiópia se ergue como um testemunho vivo da fidelidade do povo negro ao Deus Criador. Em meio às montanhas e desertos antigos, entre mosteiros escavados na rocha e templos de pedra erguendo-se em direção ao céu, os cristãos etíopes preservaram, com pureza e coragem, a fé original dos patriarcas, dos profetas e dos apóstolos.
Enquanto muitos povos foram seduzidos por impérios e filosofias estrangeiras, a Etiópia permaneceu livre e fiel, guardando os mandamentos do Altíssimo e honrando o Sábado santificado na Criação. Foi ali, entre monges de pele negra e corações inflamados pelo Espírito, que o quarto mandamento nunca foi esquecido.
Nos cânticos em ge’ez, nas orações antigas e nos livros sagrados copiados à mão, ecoa o mesmo testemunho:
“O Senhor abençoou o sétimo dia e o santificou.” (Gênesis 2:3)
Mas o legado etíope vai ainda além da obediência. Nas suas Escrituras e tradições, a cosmologia bíblica da Criação foi preservada com espantosa fidelidade.
Os textos sagrados falam de uma Terra firmemente estabelecida sobre fundamentos, com os céus estendidos como um firmamento, e as águas divididas acima e abaixo, conforme o relato do Gênesis.
Os livros de Enoque e Jubileus, preservados integralmente apenas na Etiópia, descrevem o universo como uma obra ordenada e simétrica, feita pelas mãos do Criador — a abóbada celeste sustentando as luminárias que regem o dia e a noite, e o círculo da Terra repousando sob o olhar de Deus.
Essa visão sagrada da Criação nunca foi apagada. Nos comentários e hinos dos antigos monges, o mundo é descrito como um templo, e o firmamento como a abóbada do santuário, separando o domínio divino do domínio dos homens. O cosmos inteiro é visto como uma liturgia viva, onde cada elemento — Sol, Lua, estrelas e ventos — cumpre sua função segundo a vontade do Altíssimo.
A cosmologia original das Escrituras (terra plana, firmamento sólido, águas acima e abaixo, pilares da Terra) está presente nos textos sagrados e comentários medievais etíopes. Eles preservam fortemente elementos da cosmologia bíblica tradicional, que é mantida inalterada pela Igreja Ortodoxa Etíope Tewahedo atual, embora não faça da forma da Terra um ponto doutrinário central.
Vamos dividir para ficar claro:
1. A Cosmologia Bíblica na Tradição Etíope
Os manuscritos antigos em ge’ez — a língua litúrgica da Etiópia — contêm traduções diretas do Antigo Testamento hebraico e de apócrifos como 1 Enoque, Jubileus e Livro de Adão e Eva, todos preservados apenas na Etiópia em sua forma integral.
Esses textos apresentam claramente a cosmologia bíblica clássica:
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A Terra como um disco ou planície sólida, firmemente estabelecida sobre fundamentos;
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Um firmamento (ou cúpula) que separa as “águas de cima” das “águas de baixo”;
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O Sol, a Lua e as estrelas movendo-se dentro dessa abóbada;
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“As extremidades da Terra” e “os quatro cantos do mundo”, conforme expressões constantes nas Escrituras.
Exemplo:
“E Deus fez o firmamento no meio das águas, e separou as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam sobre o firmamento.” (Gênesis 1:7)
A tradução ge’ez do Fetha Negest e dos comentários de Abba Giyorgis de Sägla (séc. XV) mantém essa visão de maneira literal.
️ 2. A influência dos livros apócrifos preservados apenas na Etiópia
A Igreja Etíope é a única no mundo que conserva o Livro de Enoque como parte de seu cânon bíblico — e esse livro descreve uma cosmologia completamente “enociana”, coerente com a concepção bíblica antiga da Terra plana sob o firmamento de cristal.
“E vi os ventos nos quatro cantos da Terra… e o círculo sobre o qual repousam os céus.” (1 Enoque 18:2-5, tradução ge’ez)
Essas descrições eram entendidas como realidades espirituais e físicas ao mesmo tempo: o mundo criado como um templo, ordenado e harmônico, com Deus acima dos céus e o abismo abaixo.
️ 3. Interpretação teológica e simbólica
Nos comentários teológicos medievais (como os de Abba Salama e Yared), essa cosmologia é explicada como estrutura sagrada do universo, e não apenas geográfica.
O “firmamento” simboliza a separação entre o Criador e o criado, e o “disco da Terra” é visto como o altar do mundo, sustentado por Deus.
Mesmo assim, até os séculos XVII–XVIII, os monges e cronistas etíopes falavam da Terra como “estendida”, “plana”, “circular” e “fundamentada sobre colunas”, em perfeita harmonia com a cosmologia bíblica literal.
4. A posição moderna da Igreja Etíope
Hoje, a Igreja Tewahedo não ensina oficialmente que a Terra seja plana, mas preserva em seus textos litúrgicos e comentários o vocabulário e as imagens da cosmologia bíblica antiga — sem reinterpretá-las em termos científicos modernos.
Isso quer dizer que a visão cosmológica tradicional é respeitada como parte da herança espiritual, e não como um erro.
Para o fiel etíope, o importante não é a forma geométrica da Terra, mas o fato de ela ter sido criada, ordenada e sustentada por Deus.
✝️ 5. Síntese
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Antigamente: a cosmologia etíope era 100% compatível com a cosmologia bíblica da Terra plana e do firmamento.
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Nos livros sagrados: como 1 Enoque, Jubileus e Gênesis ge’ez, essa visão é explícita e coerente.
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Hoje: a Igreja não discute o formato da Terra, mas mantém a simbologia original como parte da fé e da liturgia.
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Resultado: a Etiópia continua sendo a guardiã viva da cosmovisão bíblica antiga, onde céu e terra formam um único templo criado por Deus.
Assim, os cristãos etíopes se tornaram guardiões da cosmologia bíblica, da aliança e do próprio ritmo da Criação. A fé deles não se fragmentou com o passar dos séculos, pois está enraizada na Palavra preservada, nos mesmos livros que revelam os mistérios do Céu e da Terra, como o Livro de Enoque, o Livro dos Jubileus e o Livro da Criação de Moisés — todos venerados como testemunhos da ordem divina.
Não é por acaso que tantas tradições apontam a Etiópia como a morada da Arca da Aliança, o relicário que guarda as tábuas com os Dez Mandamentos escritos pelo dedo de Deus. Nesse solo sagrado, o tempo parece manter o compasso da eternidade — e o povo etíope, com sua fé inquebrantável, continua a recordar ao mundo que a Criação tem um Autor, o Céu tem um Firmamento, e o Sábado tem um Senhor.
A Etiópia, berço da humanidade e fortaleza da verdade, permanece como um farol de fidelidade nas trevas da história. Enquanto o mundo esquece as origens, os filhos da Etiópia continuam a cantar o cântico antigo da Criação — o mesmo cântico que ecoou no Éden, quando a luz foi separada das trevas e o Criador viu que tudo era muito bom.