COVID19 NO BRASIL: Por que estamos numa ditadura constitucional?

Imagem: Valter Campanato / Agência Brasil – Montagem: Gabriel Pedroza / Justificando

Por João Paulo Rodrigues de Castro, analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça, mestrando em Direito pela UNB.

Perguntava Abrahan Lincoln em quatro de julho de 1861, nas primeiras semanas da Guerra de Secessão: “ um governo de necessidade deve ser forte demais para as liberdades de seu povo ou fraco demais para manter sua própria existência”? A pergunta poderia ser reformulada, em tempos atuais, frente a um inimigo invisível, o Covid-19: “uma democracia pode lutar contra uma guerra bem sucedida e ainda assim ser uma democracia quando a guerra terminar?  

No caso brasileiro, o trauma com a ditadura militar gera a falsa ideia de que todo estado de exceção deve ser precedido de um golpe de estado. Todavia, se atentarmos à natureza comum da lei marcial e do estado de sítio, veremos que já estamos vivendo sob uma ditadura.  

Como alerta Bobbio[1], a ditadura deve ser entendida como o mecanismo usado para superar uma crise violenta e que comporta acréscimo extraordinário dos poderes do executivo. O ditador é basicamente o nomeado para exercer a autoridade absoluta no estado de exceção, especialmente na república. Daí a conclusão de Rossiter[2] quanto à redundância do predicado constitucional atribuído ao termo. Toda ditadura é constitucional. Se não for, é ditadura soberana, e já estamos a falar de um fenômeno de fato, autônomo, manifestação do poder constituinte. 

A concepção histórica da ditadura, a da República Romana, envolvia a concessão legal do poder autocrático a um homem de confiança, que governa o estado em alguma emergência grave, restaura os poderes normais do governo e devolve esse poder às autoridades regulares tão logo seus propósitos tenham sido cumpridos.  

Três características eram peculiares à ditadura romana. (I) A limitação ao tempo, seis meses de mandato para o cumprimento do objetivo. (II) O escolhido para o cargo era um estranho ao governo, com altíssima reputação. Fábio Quinto Máximo, por exemplo, foi nomeado ditador em 271 d.c, após o êxito na primeira guerra púnica. (III) terceira regra, e a mais importante, e a que afasta ainda mais a ditadura romana da ditadura dos tempos modernos: o ditador deve destituir-se do cargo tão logo a normalidade seja restabelecida. Maquiavel acentuou que essa última característica era mais que um dever, era uma glória para os romanos: “se algum deles chegasse à ditadura, sua maior glória consistia em prontamente colocar isso em dignidade para baixo novamente” [3]

Apesar da peculiaridade da ditadura romana, há um elemento comum a todas as ditaduras, a unir a portentosa ditadura romana às mais atrozes ditaduras modernas: a capacidade de aflorar como fenômeno não regulado. Mesmo em Roma, a prática surgiu a partir do costume constitucional, e não do direito positivo. Nos países que optaram por regular a situação excepcional, estabelecendo os direitos passíveis de suspensão durante a crise, o Direito foi suplantado em razão do estado de necessidade. A França, de onde herdamos o estado de sítio (état de siège), acabou cedendo à força dos fatos, acrescentando uma quinta cláusula no art. 9º da Lei de 1849, “permitindo às autoridades violar outros direitos cujo gozo sem restrições contribuiria para a desordem da ordem pública”. Como o absinto pode enlouquecer o homem, o direito de consumir a bebida foi suspenso com base nesse dispositivo durante toda a calamidade, evitando os excessos acarretados pelo álcool, mesmo no ficcional sítio de isolamento.[4] 

Na Alemanha, que também sempre optou por regular previamente o estado de exceção, o art. 48 da Constituição de Weimar foi usado de maneira irregular mesmo antes da ascensão de Hitler ao poder. Ainda em 1930, o Chanceler Brüning encaminhou um pacote de medida econômica ao parlamento, em meio a uma grave crise fiscal que assolava a jovem República Alemã. Diante da rejeição da medida, fechou o Parlamento, que só voltaria a funcionar em 1932. No retorno, em vez de suspender os decretos inconstitucionais do Chanceler, o parlamento – dominado por sociais-democratas – inacreditavelmente aprovou uma moção de confiança, sob o argumento de que: “somente uma república unida de amigos poderia salvar a democracia de Weimar”.[5]

No Brasil de 2020, a crise gerada pelo “coronavírus” instaurou a ditadura constitucional entre nós, assim entendida a possibilidade de adotar toda e qualquer medida inconstitucional para superar a crise, respeitada apenas a arquitetura constitucional. Nos estados, o direito de reunião foi suprimido a fórceps por governadores, a despeito de medida restritiva dessa envergadura só ser possível formalmente no estado de defesa, pelo Presidente da República e com o aval do Senado Federal (art. 136, § 1º, I, “a”, da CF). No Distrito Federal, proibiram toda a mercancia, mas o governador resolveu manter lojas de construção abertas.  Talvez haja fogo vindo por aí, e o melhor seja adiantar a construção de bunkers.

Na União, o direito ao gozo de férias remunerado (art. 7º, XVII, da CF) foi suspenso por medida provisória para depois do descanso dos trabalhadores (MPrv 939). Antes disso, as empresas aéreas já tinham sido agraciadas com medida provisória (MPrv 925), para evitar o estorno em massa de passagens aéreas. Em tempo, já se fala em moratória de tributos, específica para o combalido setor aéreo. 

Apesar da inconstitucionalidade dos atos, considerados isoladamente; todas as medidas tomadas durante a crise pelas autoridades brasileiras preservaram as instituições, que se mantém unidas, todas em defesa contra o vírus. Tudo considerado; não há dúvida. Caímos na vala comum das ditaduras constitucionais.

Ditadura instaurada, vício reconhecido, seria possível a cura…, regressando à democracia? A injustiça quanto aos critérios de salvamento na crise certamente fará surgir vozes revolucionárias, clamando pela instauração de uma ditadura soberana, termo cujo significado no dicionário ditatorial é a tomada do poder de fato pelo povo.  A derrocada nessa empreitada será imposta aos descamisados pela fome desordenada. Os intelectuais, por sua vez, serão rendidos pela razão histórica, dada a longevidade alcançada por toda a ditadura do proletariado de fato instaurada. 

O que fazer então para voltar à democracia? Rendição! Isso mesmo, tudo voltará à normalidade sem que façamos nada a respeito. Tudo estava previsto no contrato social, incorruptível e com força de lei. Afirmava Rosseau sobre os termos do acordo: “a inflexibilidade das leis, que as impedem de se ajustar aos acontecimentos, pode, em determinados casos, torná-las perniciosas, e causar, por elas, a perda do Estado no momento da crise”[6]. Se é impossível escapar do pacto político; juridicamente, devemos nos afastar da ideia de que o momento da aplicação do direito é autônomo, “juridicizando” o estado de exceção, como defendia Schmitt[7], para defender ou repudiar as medidas autoritárias. No primeiro caso, seríamos defensores da ditadura, como de fato foi Schmtt, aclamado como o jurista do Terceiro Reich. Em caso de repúdio, seríamos rebeldes de nossa própria causa, cada qual apoiado em algum princípio de nossa multifacetada carta constitucional. 

Sejamos, então, rigorosamente formalistas, o que no fundo implica aceitar a derrotabilidade das regras por razões extra-jurídicas, políticas. Aceitemos, como Agambem[8], que a cristalização do sistema rígido de normas com a vida é problemático, senão impossível, e que uma tendência anômica desemboca no estado de exceção com a ideia do soberano como lei viva. Aceitemos a verdade com a força dos fatos, lavando as mãos como Pôncio Pilatos.

João Paulo Rodrigues de Castro, analista judiciário do Superior Tribunal de Justiça, mestrando em Direito pela UNB.

Fonte: Porquê estamos numa ditadura constitucional

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