Série: Descobrindo as Riquezas da Teologia da Criação no Gênesis
6. O Início do Mal no Mundo — O Aspecto Problemático e Estranho do Pecado

 

Por Edegard Silva Pereira

Gênesis 3 conta a história da entrada do pecado no mundo. Aí a teologia da criação faz uma distinção sutil, porém decisiva no pensamento bíblico, a saber, que o pecado não tem origem, somente início, porque se fosse possível dar uma explicação clara e definitiva de sua causa primordial e de seus componentes, não se poderia considerar ilegítimo seu irrompimento no mundo. Aqui veremos o seguinte: mediante o uso responsável e propositado de imagens espirituais, esse capítulo explica o início do pecado, mas mantém a origem do mal no mais profundo mistério. Isto significa que a teologia da criação se abstém de considerar a origem do mal ou do pecado como evidente e natural.

 

Questões preliminares

Quem medita sobre a existência do mal no mundo e procura compreender a realidade chocante do pecado defronta-se normalmente com a pergunta: Qual é a origem do pecado? Ou a amplia indagando: Qual é a origem do mal? Segundo Bavinck, a origem do mal é o maior  problema da vida, depois do ser, e a cruz mais pesada do intelecto.

Devido às limitações deste artigo, não é possível abordar a fundo a complexidade dessa pergunta e de sua resposta. Digamos apenas que a pergunta e a resposta têm variado e dividido os espíritos. É óbvio que a resposta depende muito da compreensão que se tem do que é o mal. Ela será, naturalmente, diferente dependendo do sentido dado ao mal, por exemplo, se ele é visto como uma anormalidade geral, uma destruição incontestável das relações humanas; ou se ele é compreendido no sentido bíblico de desobediência ao mandamento divino, ruptura da comunhão com o Criador, enfim, rebelião contra o seu domínio. Em virtude disso, podemos perceber quão complexa e variável pode apresentar-se tanto a indagação quanto à resposta sobre a origem do pecado.

Aqui quero fazer justiça ao Gênesis. Para tal, me dedicarei unicamente ao estudo de sua resposta à questão sobre a existência do mal, respeitando a sua própria intenção de falar não da origem, mas do início do pecado no mundo. Conseqüentemente, rejeito a maneira bastante comum e equivocada de interpretar as imagens espirituais do capítulo 3, que consiste em transferir para tais imagens conjeturas dogmáticas, as quais afirmam que o pecado tem origem na substancialidade de um poder perverso e autônomo. E, assim, fazem que a teologia da criação diga o que ela não diz. Para esta teologia só a consideração da existência do pecado tem sentido. Pois, como constamos mais adiante, toda tentativa de explicação causal não só complica mais o problema, mas também dissolve o pecado.

O que faço aqui é inventariar o verdadeiro sentido das imagens espirituais de Gn 3, seguindo o método adotado neste estudo, cujos passos principais são: respeitar a forma como as narrativas estão concatenadas no texto, projeta-las sobre o fundo cultural do Antigo Oriente Médio e estabelecer um paralelismo com os mitos, cujas idéias contestam.

 

O mal não é criação de Deus

Não é sem motivo que a história da queda segue imediatamente depois da história da criação. Elas foram concatenadas no texto para deixar claro o seguinte: o Deus criador não é o autor e causa do mal.  Facilmente constamos estas implicações nessa concatenação: o mal não pode ser explicado como criação de Deus, porque não se pode relacionar a existência do mal com a criação; por isso, o problema do pecado é bem diferente daquele que diz respeito às origens do céu e da terra; o pecado não existia antes da queda e tem caráter existencial.

Essa formulação e suas implicações visam refutar os mitos do ambiente, os quais imputam a responsabilidade da existência do mal à divindade. E os mitos expressam uma ou outra das seguintes correntes de pensamento sobre a origem do mal: o monismo, que têm a tendência de atribuir tudo a Deus, inclusive o pecado; e o dualismo, que concebe uma antítese entre dois princípios primordiais, a luz e a sombra, explica a origem do mal indicando uma oposição eterna entre o bem e o mal. Oposição que, segundo os mitos, caracteriza o mundo divino. Estas explicações são consideradas blasfêmias tanto no judaísmo como no cristianismo. A elas a Igreja tem respondido com afirmações como as seguintes: “Deus é luz, e não há nele treva nenhuma” (1 Jo 1:5); Deus é o único bom (Mt. 19:17); “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vem lá do alto, descendo do Pai das luzes” (Tg 1:17).

Mas a concatenação de Gn 3 não é só com as narrativas da criação, é também com tudo o que segue depois. Esse capítulo separa duas condições radicalmente distintas da realidade e da vida humana. A primeira, descrita nos capítulo 1 e 2, é a história da criação do mundo original, um mundo “muito bom” caracterizado pelo jardim do Éden. O termo Éden significa "delícia" no hebraico, e evoca a idéia de "abundância", "gozo" e "prazer". Aí o pecado ainda não existia e o ser humano vivia em seu estado original de inocência e comunhão direta com Deus. Na segunda, descrita nos capítulos 3 a 50, começa a história do pecado, da destruição e da destituição da realidade. Em Gn 3 o início do pecado é o ponto crucial no qual a vida deleitosa se converte em vida de sofrimento e o mundo bom original em "vale de lágrimas". Nesse ponto, começa também o desenrolar da história da salvação. 

 

O homem como ser livre

Não se pode compreender Gênesis 3 a menos que primeiro se entenda o homem como ser livre, e o mundo como criado para que o ser humano pudesse expressar nele a liberdade. Gn 2:16,17 testemunha da liberdade original do homem em relação à soberania de Deus.

E o Eterno deu ao homem a seguinte ordem: — Você pode comer as frutas de qualquer árvore do jardim, menos da árvore que dá o conhecimento do bem e do mal. Não coma a fruta dessa árvore; pois, no dia em que você a comer, certamente morrerá.

A fruta da árvore é a figura da liberdade que Deus deu ao ser humano: a liberdade própria de uma criatura, isto é, ele tem completa liberdade dentro do campo do bem, mas o campo do mal lhe está proibido. (Nas Escrituras, o bem é o que é bom para o homem; e o mal é o que é mau para o homem.) O ser humano estará seguro e protegido como criatura enquanto exercer sua liberdade e seu direito de decisão com responsabilidade. Mas se atentar contra a soberania do Criador se colocará forçosamente numa situação extrema de perigo, porque ela é o elemento fora do qual o ser humano não poderia viver como criatura de Deus. Contudo, o homem pode optar pelo conhecimento do mal e dar outro rumo à vida.

A figura do fruto proibido mostra que o mal não era uma realidade nem no mundo divino, nem no mundo humano original. Existia apenas como conhecimento possível. Revela a verdade última da existência: o segredo de que somos livres. Fornece uma compreensão do lugar central que o livre-arbítrio ocupa nos assuntos humanos: somos livres para definir quem somos em cada momento dado. E essa é a condição humana: o homem é um ser que faz opções.

Também indica que o homem está situado entre dois chamamentos contraditórios: manter-se submisso ao domínio de Deus, e viver; ou rebelar-se, e deixar de existir como criatura de Deus. Por um lado, Deus persuade o ser humano. Persuade para que o ser humano use com responsabilidade sua liberdade e seu direito de decisão, escolhendo realizar-se como criatura de Deus e assim usufruir a vida em sua plenitude. Por outro lado, e a par da persuasão divina, há também a sedução que incita o homem para que se desencaminhe, para que atente contra a soberania de Deus.

A ordem divina denota que, no mesmo dia em que comesse o fruto proibido, o ser humano deixaria de existir como criatura de Deus. Refere-se à perda da criaturalidade, e não à morte física. Esta chegou mais tarde. Depois de comer o fruto proibido o homem se transformou na pessoa que ele escolheu ser, isto é, alguém feito por si mesmo, um produto de sua própria vontade, de suas escolhas e atitudes. Segundo o Novo Testamento, a criaturalidade é recuperada somente na nova criação (novo ser humano) em Cristo. Daí que, no Novo Testamento, a nova criação já é a salvação.

A seguir veremos os aspectos principais do pecado, implicados na narrativa de Gn 3.

 

A sedução

O relato da sedução em Gn 3:1-6 é um diálogo da serpente com a mulher. Seu trecho principal está relacionado com Gn 2:16, 17:

Mas a cobra afirmou: — Vocês não morrerão coisa nenhuma! Deus disse isso porque sabe que, quando vocês comerem a fruta dessa árvore, os seus olhos se abrirão, e vocês serão como Deus, conhecendo o bem e o mal. A mulher viu que a árvore era bonita e que as frutas eram boas de se comer. E ela pensou como seria bom ter conhecimento. Aí apanhou uma fruta e comeu: e deu ao marido, e ele também comeu.

Em algumas culturas antigas, a cobra era o símbolo do mal. No Gênesis ela encarna o aspecto problemático e misterioso do pecado. Em primeiro lugar, sua figura serve para mostrar que o pecado vem ao homem como sedução que acontece no diálogo entre as criaturas. Nesse diálogo, somente o homem pode ser seduzido a “ser como Deus”, porque ele é a única criatura feita a “imagem de Deus”, a fim exercer o domínio no mundo. Sobre a cobra é importante notar o seguinte: no verso 1 está explícito que ela é um dos animais “que Deus tinha feito”, e não o poder demoníaco disfarçado de serpente ou incorporado nela, como querem alguns intérpretes.

Aqui o disfarce do pecado é outro. Ele vem ao ser humano na forma de sedução que engana e desencaminha. Faz vencer a sua escuridão apresentado-se como uma luz, a semelhança do bem. Não é claro, porque vem com propostas "elevadas", as quais têm sua origem no mundo de Deus. As "delícias" e "encantos" dessas propostas atraem e prendem o homem. Entre outras coisas, oculta o fato de que Deus, o qual por ser Deus conhece todas as coisas, conhece também o mal, mas não o pratica e até o proíbe. Em vez de "abrir os olhos", o pecado produz cegueira. Aquele que se deixa seduzir não percebe a realidade como ela é, porque a sedução o faz confundir a luz com as trevas, o bem com o mal. Com seu raciocínio, a cobra não propõe escolher as trevas, mas procura atrair os olhos do ser humano com o brilho da luz. Agindo desse modo, a sedução obstrui o caminho para que o ser humano não veja e não conheça o pecado.

Daí que a intenção de Gn 3 seja a mesma das Escrituras. Elas conhecem o pecado e revelam seu modo de agir. Retiram a máscara do pecado e mostram a cegueira que ele produz. E preservam tal cognição porque querem conduzir a visão das pessoas verdadeiramente interessadas em enfrentar o pecado. Nos mandamentos elas vão ver-se como transgressoras e vão desejar a salvação. E a salvação lhes é oferecida no Evangelho.

 

O desencaminhamento

Pecado é uma palavra ausente em Gn 3. Não o nomeia como faz Paulo em Rm 5:12-21. Mas suas ricas imagens mostram que o pecado vem ao homem na forma de desencaminhamento. Este termo expressa melhor a maneira como as Escrituras definem o pecado: "extraviar-se", "errar o alvo", uma ação sem valor por não ter resultado.

Em Gn 3:4, 5 o desencaminhamento tem caráter existencial, porque o que destrói a felicidade é a vida pecadora e mentirosa.  Ele transcende a mera transgressão do santo mandamento de não comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. É algo muito mais complexo e profundo. A expressão "vocês serão como Deus" traz a tona o aspecto mais terrível do pecado: sua capacidade não de divinizar, mas de desumanizar. Na palavra “ser” encontra-se a chave para definir o desencaminhamento: é uma orientação falsa da natureza humana, cuja essência consiste na recusa do homem de ser verdadeiramente humano, como lhe foi dado na criação.

Na narrativa, comer a fruta proibida e querer ser como Deus é a mesma coisa. Refere-se ao poderoso e ilegítimo impulso, suscitado misteriosamente pela serpente, de auto-elevação do plano humano para o plano divino. Ou seja, é o impulso estranho e muito louco de não querer ser o que é, a fim de ser o que não é, nem pode ser. Aí o pecado não é algo que afeta ocasionalmente o comportamento humano. É, isto sim, a característica fundamental que determina todo o modo de ser da humanidade, conseqüentemente, todo o seu modo de pensar e agir. Isso fica claro na sucessão de historias contadas em Gn 4 a 11, as quais mostram como o pecado age no mundo.

O que o ser humano pretende com essa auto-elevação? Pretende constituir-se no centro de si mesmo e de seu mundo. "Ser como Deus" significa que a humanidade não quer depender mais de Deus, a fim de constituir-se em o deus de si mesma.

Resumindo: segundo a teologia da criação, o pecado é muito mais que uma questão moral, é uma questão existencial. É algo que determina por completo a forma de pensar, de querer, de exercer a vontade, de escolher, de agir, isto é, todo o modo de ser, toda a forma de vida individual e coletiva.

Isso fica claro ao considerarmos as marcas do desencaminhamento.

 

As marcas do desencaminhamento

A primeira marca é atentar contra a soberania de Deus. O diálogo entre a cobra e a mulher é em torno de Deus. Não nega a realidade de Deus, mas expressa desconfiança na maneira como Deus exerce o domínio na vida humana. A cobra questiona o caráter e a idoneidade de Deus como soberano do homem. Argumenta que a proibição de comer a fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal e a ameaça de morte se deve ao fato de que Deus quer limitar a capacidade do ser humano, impedindo-o de atingir o estágio divino da existência. Segundo a cobra, esse estágio não é exclusividade de Deus. O ser humano pode atingi-lo mediante a auto-elevação.

O desencaminhamento é, antes de tudo, a ruptura da unidade do homem com Deus. Sua matriz é o desejo desordenado do homem de vincular toda realidade do universo a seu ego, mediante uma existência dirigida exclusivamente em proveito próprio. Daí que se manifesta em toda atividade humana como sendo um desejo ilimitado de conhecimento, poder, prazer, riqueza e glória.

A segunda marca é a negação do ser natural. A cobra seduz à insatisfação existencial ao argumentar que não há vantagem para o ser humano limitar-se a sua condição original. Se desejar e usar convenientemente suas potencialidades e as potencialidades de seu mundo, ele pode se auto-elevar da condição humana "inferior" que lhe foi imposta e atingir a condição divina superior. Sendo que o homem não pode ser como Deus, o que ele faz é orientar sua existência não no sentido do “ser”, mas  no sentido do “ter”. É acumulando conhecimento, prestígio, riqueza e poder que o homem se sente um “ser superior”..

Mas o pecado é uma terrível ilusão. O ser humano imagina que está subindo para atingir um estágio superior de vida, semelhante ao divino, quando em realidade está caindo até uma condição inferior à que lhe foi dada na criação. Quando o homem quer ser como Deus, não se realiza como ser humano porque não deseja esta realização. Mas tão pouco se realiza como ser divino porque o homem não é Deus, nem o pode ser por mais que o deseje. Realiza-se sim como ser decadente. Os estudiosos da Bíblia costumam designar, com muita propriedade, o início do pecado no mundo como a "queda" existencial do ser humano.

A terceira marca é alienação. Ao separar-se de Deus, o homem se aliena de sua condição humana e daquilo a que ele pertence. Gênesis 3 e 4 se referem, como conseqüência do pecado, ao ser humano alienado:

  • De Deus — Adão é Eva têm medo da presença de Deus (3:8).
  • De seu ser natural — Adão e Eva sentiram vergonha de sua nudez (3:7). 
  • Do mundo — Adão e Eva são expulsos do paraíso, do mundo muito bom criado por Deus  (3:22-24). 
  • Do próximo — Caim diverge de seu irmão Abel e o mata premeditadamente (4:8 e seguintes). 

A vida do ser alienado pelo pecado não tem sentido. E a morte é o ponto mais distante da alienação. Na morte, o ser humano é completamente separado de Deus, da humanidade e da realidade. Abandonado numa sepultura, não tardará muito tempo para ser esquecido.

A quarta marca é autodestruição. O Gênesis (2:17 e 3:11) assinala a morte, isto é, o não ser, como o resultado final do pecado. Pecado é desprezar e combater, no sentido mais profundo, a condição humana. Por isso, o pecado transforma o homem no maior inimigo de sua humanidade. E é combatendo sua condição humana que o homem prepara sua autodestruição.  

 

A raiz de todas as perturbações

Segundo Gn 3, o desencaminhamento é a causa de nossas múltiplas e profundas perturbações, e a razão pela qual a ordem da criação se alterou. Valendo-se de Adão e Eva como figuras federativas, a narrativa quer dizer o seguinte: o que aconteceu com Adão e Eva, é o que aconteceu com todas as pessoas, em todos os lugares e épocas, isto é, toda a humanidade caiu em pecado. E o pecador é visto nas Escrituras como um ser dividido, existencialmente perdido, sem força nem sanidade reais e impossibilitado de exprimir-se numa ação boa e normal.

É fácil constatar historicamente o seguinte: todos os seres humanos, de qualquer lugar e época, devoramos o fruto proibido; o homem sempre usou seu conhecimento para o bem e para o mal; o conhecimento que o homem tem acumulado e transmitido de geração em geração só serviu para aumentar seu poder; e o conhecimento que o homem busca não é sobre si mesmo. Por isso tudo, o conhecimento não fez com que o homem tivesse mais sabedoria e fosse mais humilde, nem o levou ter mais amor, bondade, compaixão, solidariedade e tolerância. Logo, na medida em que o homem acumula rapidamente, nos dias de hoje, mais quantidade e mais variedade de conhecimento, mais perigoso e ameaçador ele se torna. 

Em Gn 3 estão implicadas quatro perturbações, das quais derivam todas as demais.

1. A perturbação do relacionamento com si mesmo. Esta perturbação desponta na vergonha que o ser humano caído em pecado sentiu por estar nu, isto é, de mostrar-se como realmente é, de deixar aparente seu ser natural. A falta de concordância entre o que o homem é e o que deveria ser produz sérios conflitos de identidade. Esta perturbação aparece nos indivíduos que não se conhecem, não sabem quem realmente são; nos que têm ódio de si porque não se aceitam e não se amam; e naqueles que têm medo de enfrentar e expor seu verdadeiro eu.

2. A perturbação do relacionamento com a vida. Pecado é um pacto com a morte, a negação da vida. E  o homem caído em pecado encontrou muitas maneiras de negar e destruir a vida — a própria e a que há no mundo. Tal destruição, durante milênios, tem sido enorme. Esta perturbação aparece nas pessoas fechadas para a vida, com medo da vida, e que, por isso, passam o tempo sedando muitas das funções da vida e dando mostras da inabilidade de viver.

3. A perturbação do relacionamento com o mundo. Expulso do paraíso, o homem caído em pecado não tem outra alternativa senão instalar-se na estepe árida, onde a sobrevivência é muito difícil. A estepe árida  (mencionada em Gn 3:23) é uma boa figura das enormes dificuldades que o homem sempre teve para instalar-se no mundo, seu lar. Esta perturbação aparece também nas pessoas que são incapazes de aceitar e enfrentar a realidade, porque têm medo do mundo e se sentem inseguras nele. A tendência destas pessoas é construir um mundo imaginário particular para nele viver.

4. A perturbação do relacionamento com o outro. O pecado é, em primeiro lugar, uma grave perturbação do relacionamento com o Outro absoluto, Deus. Perturbação assinalada na figura exemplar do ser humano que, depois de cair em pecado, se esconde da presença de Deus. Logo, refere-se à perturbação do relacionamento com o próximo: Adão culpa a Eva pela queda (Gn 3:11,12), o assassinato de Abel por Caim (Gn 4:8), a maldade da geração pré-diluviana (6:1-7), entre outros.

Todos sabemos das enormes dificuldades que os seres humanos temos para assumir o compromisso de amar-nos uns aos outros. Desde tempos remotos, as interações humanas têm sido marcadas pelo medo, pela desconfiança, por contendas de todo tipo, por atitudes pouco ou nada amistosas. A verdade é que, por causa dessa perturbação, vivemos em um mundo onde parece que todos estão contra todos e ninguém se sente seguro.

 

Culpa e desculpa

Gn 3:8-24 nos leva ao cerne da questão. Indica claramente o que é pecado e o que o fez entrar no mundo: é a culpa do ser humano por deixar-se seduzir pelo mal. E revela que o ser humano não se responsabiliza por essa culpa. O que ele faz é transferi-la para outro, valendo-se da desculpa. Isto está claro no diálogo que ocorre quando o ser humano caído em pecado se enfrenta com Deus. Este indaga a Adão — Comeste da árvore de que te ordenei que não comesses? Adão responde — A mulher que me deste para ser minha companheira me deu a fruta, e eu comi. Então Deus questiona a Eva — Que é isso que fizeste? E Eva responde — A cobra me enganou, e eu comi. Cada resposta é uma desculpa que assume a forma de uma acusação gratuita, na qual se transfere a culpa para outro participante da relação pecaminosa.

Mas as desculpas não diminuem a seriedade da transgressão e o juízo correspondente. No julgamento do primeiro pecado, Deus não esquece nenhum dos participantes. A cada um torna patente a culpa e rejeita a desculpa. No veredicto sobre cada um, inclusive a cobra, diz: "Por causa do que você fez..."  Julgamento, castigo e expulsão do paraíso não deixam dúvidas sobre a culpa e seus efeitos.

A causa do pecado é a culpa. No julgamento divino do primeiro pecado, a culpa do ser humano não é resultado de outra causa senão sua própria atitude de rebelião, desobediência e alienação. Há culpa quando alguém se deixa seduzir e se deixa vencer pelo mal. Dizer "a cobra me enganou" ou "o diabo me enganou" dá no mesmo. Responsabilizar o poder diabólico pelo pecado não nos livra da culpa, do mesmo modo que Eva não se livrou da culpa responsabilizando à cobra. A resposta sobre a origem do mal, baseada na superioridade dos demônios que dominam fatalmente a existência humana, não seria mais uma desculpa pelo pecado? Não seria a forma que encontramos para continuar discutindo sobre a culpa e alienar-nos pela transferência da culpa para outros? Com efeito, a Bíblia não vai tão longe assim na busca pelas origens do pecado. Ela admite apenas que os seres humanos se tornaram aliados dos demônios no atentado contra a soberania de Deus.

 

O enigma do pecado

Voltemos a falar da cobra, que em Gn 3 é a imagem do enigma do pecado. Aí ela simboliza o poder destruidor do pecado, o qual as Escrituras consideram algo anormal e estranho, que se manifesta e se faz sentir em todos os lugares, atacando a própria vida, tornando caótica a realidade. A cobra também expressa o caráter sem-sentido e sem-motivo do pecado, e que ele é enigmático e insolúvel, porque não tem razões, causas, pressuposições, nem motivos. E o pecado se torna cada vez mais incompreensível à medida que se considera a bondade, a glória e os sábios desígnios do Deus. A rebelião contra este Deus é cada vez mais grave e obscura. A transição da bondade original da criação para uma existência sem sentido, também torna impossível toda explicação da origem do mal. Em Gereformeerde Dogmatiek, Bavinck diz: "Não sabemos de onde ele é nem o que ele é. O pecado é presente e não tem direito de existir. Existe e ninguém explica a sua origem. Entrou sem motivo no mundo, porém tornou-se o motivo para todo pensamento e ação dos seres humanos".

Embora sejam abundantes os escritos que estabelecem ligações entre o início do pecado no mundo e o poder demoníaco, nada fica esclarecido com tais ligações. Pelo contrário, complicam ainda mais o problema e colocam o mistério do mal em uma profundidade impenetrável. Em primeiro lugar, tais escritos diluem o pedado (a culpa do ser humano) quando defendem a idéia de que ele é o resultado da atividade e superioridade do poder demoníaco, e quando apresentam o retrato de uma humanidade desarmada e impotente, tragicamente derrotada pelo poder fatal do reino das trevas. Em segundo lugar, essa resposta à pergunta sobre a origem do mal coloca o mistério do pecado em uma profundidade ainda mais impenetrável: se os demônios são anjos caídos, como explicar a origem do mal considerando a pureza dos seres celestiais, o fato de que eles vivem na presença de um Deus perfeito em sua bondade e num ambiente tão puro como é o céu?...

Por exemplo, a novela criada com base em uma interpretação equivocada das Escrituras, que apresenta como a origem do mal a rivalidade que houve no céu, em tempos remotos, entre Lúcifer e o Filho de Deus. Suas explicações nesse sentido parecem não ter fim. Quanto mais tratam de explicar o mistério da origem do mal, mais obscuro ele fica.  

A Bíblia nos apresenta outra imagem quando fala do pecado em relação ao poder demoníaco. O pecado não tem sua origem na superioridade do poder demoníaco que fatalmente seduz e vence o homem, mas na culpa do ser humano que se manifesta no deixar-se seduzir e deixar-se vencer. O homem é pecador porque escolheu ser assim.

O Senhor Jesus ensinou que o ser humano mesmo é a sede do pecado. A fonte de onde flui o mal é o coração humano, e os caminhos que percorre são os que partem do interior do homem para o exterior (Mc 7:21-23; Mt 23:25; Lc 11:39). E Jesus não fala do coração como algo fora do homem. Mas usa essa expressão para referir-se ao centro mesmo do ser humano, à totalidade de sua existência.

Em Gn 3, não encontramos uma tentativa de esclarecer a origem do mal através de uma referência ao poder demoníaco. O primeiro pecado está afastado desse ponto de vista fatalista e trágico. Fica somente contra o pano de fundo da bondade original do homem e da beatitude de sua vida em comunhão com o Criador. A narrativa afirma claramente que a cobra "era um dos animais que Deus havia feito". Ou seja, não busca a origem do mal ultrapassando os limites da vida humana, nas distâncias espaciais ou nas profundezas insondáveis. O ser humano não é dominado por um poder fatal. Por isso, ainda pode esconder-se no meio das árvores do jardim porque tem medo da presença divina. A pergunta de Deus é: "O que você fez"; não é: "O que fizeram com você?"  A responsabilidade do ser humano é evidente. Por isso, sua ação pecaminosa é respondida com maldição, juízo e expulsão do paraíso (Gn 3:8, 10, 23 e 24).

A narrativa expressa mais esta verdade sobre a condição humana: somos responsáveis pelo que decidimos ser, pela maneira como pensamos e agimos. Geralmente, ignoramos essa responsabilidade. O que fazemos é buscar as razões fora nós por tudo de ruim que nos acontece. Logo, culpamos às forças externas por nossas ações. Raramente nos perguntamos: Como decidi agir ou reagir deste modo?

A narrativa de Gn 3 tende à aceitação da responsabilidade, por parte do ser humano, pelo irrompimento do pecado. E não poderia ser de outra maneira, porque o testemunho das Escrituras é este: só quando a culpa não é ocultada, mas confessada, é que Deus acolhe e salva o ser humano do poder destruidor do pecado.

O conhecimento do pecado oferecido pela teologia da criação não se esgota na história da queda. O Gênesis nos conta outras histórias nas quais mostra como o pecado age no mundo. É o que veremos no próximo artigo.

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