Perigos que Ameaçam o Movimento Leigo - 6: NÃO BASTA FAZER, É PRECISO SER

Por Edegard Silva Pereira

O autor formou-se em Teologia no Colégio Adventista do Prata, Argentina. É Mestre em Ciências da Religião e Mestre em Comunicação Social. Foi pastor da IASD entre 1965 e 1988. Atualmente dedica-se a realizar palestras em empresas sobre desenvolvimento humano, numa perspectiva cristã.

Ser, fazer e ter são as categorias fundamentais da natureza humana. Classificam em si todos os comportamentos do homem. Essas categorias têm conexões mútuas. Estudiosos do comportamento humano tem insistido nesta relação essencial: a vida flui no sentido do ser para o fazer e deste para o ter. No Novo Testamento verificamos que a nova vida que Jesus veio trazer também flui nesse mesmo sentido. Para Jesus o valor supremo da ação é ser, enquanto para o judaísmo, é fazer.     

Muitos desses estudiosos do comportamento humano lamentaram o fato da civilização ocidental, principalmente a sociedade norte-americana, ter colocado o fazer e o ter como os valores determinantes do ser. A IASD, por influência do judaísmo e da sociedade norte-americana, na qual se originou, coloca um fazer particular, que consiste em obrigações precisas e circunstanciadas, como o valor supremo da ação, e que determina o “ser um adventista”. Esta atitude revela que a IASD não compreendeu e não expressa corretamente a religião de Cristo. Seguir por esse rumo é outro perigo que ameaça o movimento leigo, porquanto significa desviar-se do Novo Caminho e seguir pela velha trilha mundana do fazer, que não leva a lugar nenhum.

A experiência de Saulo nos ajuda a entender a relação entre ser, fazer e ter no contexto do cristianismo. Como bom fariseu que era, Saulo achava que a religião consistia em fazer certas coisas para ter prestígio na comunidade dos fariseus, como estudar as Escrituras, guardar os mandamentos da lei, participar dos ritos e combater a “heresia” cristã. Mas o encontro que teve com o Glorificado no caminho para Damasco mudou completamente o rumo de sua vida (Atos 9:1-31). Daí em diante, o mais importante para ele era ser. 

 

Ser o quê?

Fiel à intenção de Jesus (veja João 17:20 e 21), Paulo expressa o que devemos ser: “um com Cristo”, que significa comprometer-se, engajar-se e ligar-se com Ele por uma vontade comum. Nunca significa participar da natureza divina. A diferença entre o homem e Deus sempre é reconhecida e mantida nessa unidade divino-humana. O apóstolo explica detalhadamente como chegamos a ser “um com Cristo” em  concepções tão ricas como:

      A do batismo, pelo qual somos unidos com Cristo “na semelhança da sua morte e da sua ressurreição” - Rom. 6:5.

      A da santa ceia: somos membros do corpo de Cristo ao participar do cálice (“a comunhão do sangue de Cristo”) e do pão (“a comunhão do corpo de Cristo”) - 1 Cor. 10:16 e 12:27.

      A de nossos corpos como “membros de Cristo” – 1 Cor. 6:15.

      A do matrimônio: a unidade entre marido e mulher (os dois se tornam “uma só pessoa”)  como testemunho da unidade de Cristo com a igreja – Efe. 5:30 e 31.

      A da igreja como “corpo de Cristo” – Rom.12:5.

      E em expressões como “Cristo em vós” (Col. 1:27), “revestidos de Cristo” (Rom. 13:14), “temos a mente de Cristo” (1 Cor. 2:16), ou “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim" (Gál. 2:20).

Paulo entende que o batismo, a santa ceia, o matrimônio cristão e a igreja significam a participação no novo modo de ser em Cristo.  Só quando chegamos a ser “um com Cristo”, já seja como indivíduos ou como comunidade, é que realmente passamos a ser uma “nova criatura”,  temos uma “nova vida” e estamos prontos para realizar a obra de Deus. Então se cumpre na comunidade de fé o propósito da vida terrena de Jesus expressado em João 17:21 — seus membros estão ligados entre si, a Cristo e ao Pai por uma vontade comum, do mesmo modo como Cristo está unido ao Pai por uma vontade comum. Mas o que vemos hoje não é uma comunidade cristã unida em Cristo, mas dividida por questões doutrinais.

Na religião do espírito ensinada e vivida por Jesus Cristo, o ser vem em primeiro lugar, pois ele determina o fazer e o ter: todos os comportamentos do homem vêm de dentro dele, das profundezas de seu ser (Marc. 7:14-23); e o fazer e o ter (por exemplo, funções ou cargos religiosos) que não vêm do ser é hipocrisia (Marc. 7:6-8). Portanto, o que precisa mudar no homem, para que ele ingresse no reino de Deus, é seu modo de ser. Daí que Jesus cumpre a promessa de interiorizar no homem (renovação do ser pelo Espírito) a vontade de Deus (Jer. 31:31-34; 2 Cor. 3:6).

A maioria das pessoas espera que a religião lhes diga o que devem fazer para ter a salvação, as bênçãos de Deus, uma vida melhor... Nessa esperança está a raiz do legalismo e da hipocrisia, isto é, da religião do mérito conquistado pelo fazer, de viver de aparências. Quando as pessoas fazem ou deixam de fazer alguma coisa porque é lei ou mandamento, já não pertencem à religião de Jesus que é essencialmente graça de Deus. Uma coisa é fazer porque é mandamento, outra coisa é fazer porque vem do ser renovado pela graça. Quem está unido a Cristo faz a vontade de Deus naturalmente, porque está ligado com Ele por uma vontade comum, isto é, já não precisa da letra da lei. Ainda nos dias de hoje, o Evangelho da graça de Deus é motivo de escândalo para os legalistas e os hipócritas...

 

O alvo da vida cristã

Em Efésios 4:13 e 15, Paulo indica claramente qual é o alvo da vida Cristã:

...até que todos cheguemos à unidade da fé e ao pleno conhecimento do Filho de Deus, à  maturidade, ao desenvolvimento que corresponde à estatura perfeita de Cristo... Mas, falando a verdade em espírito de amor, cresçamos em tudo no sentido de Cristo, que é a cabeça do corpo.

Noutras palavras, o alvo da vida cristã é atingir a plenitude humana, no sentido de Deus, assim como Jesus a atingiu em sua vida terrena. (Comparar com Fil. 2:5-11.) E atingimos essa plenitude só quando chegamos a ser “um com Cristo”, pois Ele é o Ser que nos faz ser o que nos foi dado por Deus na criação: seres humanos plenos. Precisamos entender que, em sua vida terrena, Jesus veio revelar não só a Deus, mas também o que significa ser um ser humano no sentido de Deus e mostrar como deveria ser a unidade entre o homem e Deus.

Na Bíblia, o homem é um ser em construção. Ele só atinge a plenitude humana unindo-se a Cristo. A seguinte tabela mostra as principais etapas de desenvolvimento humano que as pessoas podem atingir durante sua vida. Leia-a de baixo para cima.

Etapas de desenvolvimento

Nível de consciência

Medo

Desejo

A religião do nível de consciência

 7 Plenitude Realização da unidade divino-humana no sentido do Evangelho.

“Eu sou um com Cristo”.

Identificação com a humanidade de Cristo e com o reino de amor de Deus.

Superação do medo e da confusão. Confiança plena em Deus, como a de uma criança  em seu pai amoroso.

Renúncia à força terrível do ego —e a seus desejos—, que ignora e corrompe o ser.

Unidade com Deus em Cristo: “o Pai e eu somos um”.* Ligado com Deus por uma vontade comum.

6 Transhumani-dade

Consciência cósmica arquetípica.

Eu sou quem eu sou.

Identificação com o si mesmo.

De perder sua autonomia. Angústia existencial.

De estar bem consigo mesmo, de autonomia.

Religião “humana”.

Deus criador, fonte da vida. Presença do Outro (do cosmo) em nossa vida.

5 Humanidade Consciência autônoma. Realização de seu potencial

Estou bem comigo mesmo. Identificação com seu conjunto psicofísico.

De perder sua identidade social, suas idéias, sua razão.

De sucesso social.

Religião “social”, civilizadora. Deus que sustenta o indivíduo e a coesão social.

4 Personalidade
Consciência social.
Formalismo, dogmatismo, moralismo e legalismo

Eu sou isto, aquilo (profissão). Identificação com imagens do homem reconhecidas pela sociedade.

De fracasso, derrota.

De realizar a imagem que os outros têm dele, principalmente os pais.

Religião “individual”. Deus-Juiz de lei. O que deve e o que não se deve fazer.

3 Individualidade

Consciência parental.

Eu sou o filho, a filha de... Identificação com a imagem parental.

De não corresponder à imagem parental.

De unidade com o outro sexo.

Religião “genital”. Deus é aquele que preenche minhas lacunas afetivas.

2 Genitalidade

Consciência sexual

Eu sou meu sexo. Identificação com o próprio corpo.

De castração.

De união com o corpo.

Religião de poder. Serve-se de Deus para afirmar seu poder machista ou feminista.

1 Materialidade

Consciência material. Viver de aparências.

Eu serei mais fazendo e tendo mais.

Identificação com a matéria, com a matriz.

De perder o que possui, de passar necessidade.

De ter sempre mais dinheiro e coisas, e assim ser mais e melhor que os outros.

Religião do mérito.

Deus é o cumpridor de meus desejos. Se fizer isto, receberei como recompensa tal coisa.

* Unidade com Deus não significa “ser como Deus” (Gên. 3:5; Fil. 2:5-11). É o reconhecimento da diferença entre o divino e o humano, e, ao mesmo tempo, a superação do dualismo que separa ambas naturezas.

Transcendemos nosso nível atual na medida em que aumenta nosso conhecimento (no sentido bíblico) de Cristo e avançamos gradualmente rumo ao nível mais alto, tendo em mira participarmos de Sua plenitude humana. Somente se transcende o que se “aceita”, o que se “assume” mediante a fé que atua pelo amor. É uma ilusão querer alcançar a plenitude humana, no sentido de Cristo (ser um com Ele), mediante o “fazer” e o “ter”, o que é próprio das pessoas situadas nos níveis mais baixos de desenvolvimento humano.

O homem é um ser em construção não só individualmente, mas também historicamente. Podemos apresentar a evolução da humanidade, numa perspectiva religiosa, da maneira mais simples possível, em quatro etapas:

1 Religião “natural”. É a que diviniza as forças da natureza e se expressa em mitos. Exemplo: a religião dos cananeus.

2 Religião “social”. É a que diviniza a coesão social, cria divindades nacionais e se expressa em mitos sociais e cosmogônicos. Exemplo: a religião dos semitas da Baixa Mesopotâmia, com destaque para a de Babilônia.

3 Religião “sociológica”. É o caso do judaísmo, que acredita em um Deus único, cujas instruções originais visam a coesão social do “povo da Aliança” e elevar o homem a uma dignidade ontológica superior à das etapas anteriores (barbárie). O conjunto dessas instruções foi transformado em lei (religião externa) pelo judaísmo pós-exílico, para o qual a obediência a Deus consiste em fazer, isto é, em cumprir a lei, cujos preceitos estão inscritos em pedras e pergaminhos, e não no ser do homem. As sociedades que professam este tipo de religião têm tendências teocráticas. Outro exemplo é o islamismo. Enquanto o judaísmo gerou o cristianismo, um estágio mais avançado, o islamismo permanece preso aos padrões de uma religião sociológica medieval.

4 Religião do “espírito”. É a ensinada por Jesus Cristo. Nela tem valor o que vem do ser renovado por Deus em Cristo, das profundezas do interior do homem. Mantém aspectos fundamentais da anterior (seu Deus é o mesmo Deus único do judaísmo), porém supera suas limitações étnicas e geográficas e desafia o homem a atingir um patamar mais elevado de desenvolvimento humano. As exigências ou instruções de Jesus têm um caráter universal. Não foram dadas na forma de lei, mas como modo de ser. Como grandeza ético-espiritual, elas visam reunir e preparar a humanidade, em Cristo, para o reino de Deus, o reino da plenitude, no qual o homem atingirá, finalmente, a plenitude humana no sentido de Deus.

Essas etapas nos mostram que Deus tem um projeto histórico de desenvolvimento humano. Verificamos na Bíblia que a ação de Deus na história tem conduzido o homem a novas etapas desse desenvolvimento. A primeira foi na era do Antigo Testamento. A segunda foi iniciada por Jesus Cristo. E a última e definitiva será no reino vindouro de Deus.

Volto a insistir no seguinte: ninguém se torna cristão pelo fato de adotar um conjunto de doutrinas, ser membro de uma comunidade religiosa ou forçá-lo em moldes rígidos de autoridade eclesiástica (manifestações do fazer), e sim por passar por uma experiência transformadora, que consiste em chegar a ser “um com Cristo”, pelo fato de estar unido com Ele por uma vontade comum.

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